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2.2 Nomear Deus: o ponto de partida da hermenêutica bíblica

2.2.5 A relação entre poética e política

Segundo Ricoeur, o que ele faz a partir de agora é ligar a investigação da múltipla nominação de Deus ao poder revelador da linguagem poética. Assim, três observações balizarão a transferência do texto para a vida. A primeira observação é a seguinte: “Primeiramente, uma questão prévia: assumirei a idéia de que a nominação de Deus depende do verbo poético? Direi: em um certo sentido e até certo ponto sim.”178.

De acordo com Ricoeur, esse sentido se resume em três pontos:

1) A linguagem poética é aquela que rompe com a linguagem cotidiana e se constitui em foco da inovação semântica. 2) A linguagem poética, longe de celebrar a linguagem por si mesma,

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Idem, p. 198-199. 178

83 abre um novo mundo, que é a coisa do texto, o mundo do poema. 3) O mundo do texto é o que incita o leitor, o ouvinte, a compreender a si mesmo diante do texto e a desenvolver, imaginativa e simpaticamente, o si suscetível de habitar esse mundo desdobrando os seus possíveis mais próximos. Nesse sentido, a linguagem religiosa é uma linguagem poética. Aqui, a palavra “poética” não designa um “gênero literário” (...), mas o funcionamento global de todos esses gêneros enquanto sítio da inovação semântica, da proposição de um mundo, da suscitação de uma nova compreensão de si.179

Porém, Ricoeur pondera que a linguagem religiosa não é simplesmente poética. Ela é poética de uma maneira específica, que faz do caso particular um caso único, excêntrico. Sua diferença se encontra na nominação de Deus, uma vez que todos os gêneros literários que foram apresentados, da narração à parábola, constituem o falar-Deus. Assim sendo, ao invés de abolir alguma característica do poema, essa especificidade acrescenta aos traços comuns do mesmo um arqui-referente, Deus. Tal arqui-referente, ao mesmo tempo em que coordena os textos, lhes escapa. Então, quando tocado pelo “nome” de Deus, o verbo poético sofre uma mutação de sentido, que é importante delimitar.180

Ricoeur reconhece a tentação de associar essa mutação de sentido exclusivamente ao papel das expressões-limite (o Nome inomeável, o paradoxo, a hipérbole, a extravagância). Todavia, mesmo que essas expressões-limite tenham a virtude de chamar a atenção para a especificidade da linguagem religiosa, elas não a constituem por inteiro. Antes, apenas trabalham no meio de uma linguagem essencialmente analógica ou metafórica. Conseqüentemente, essas expressões limite vêm qualificar, modificar, retificar essa linguagem analógica ou metafórica. Sobre isso, Ricoeur diz:

(...) narrativas, profecias, leis etc., não se estabelecem no nível do conceito, mas no do esquema. Como Kant diz a respeito do esquema do conceito, são procedimentos, metódicos, para fornecer imagens não ao conceito, nem mesmo à Idéia (...), mas ao Nome. Ou, para empregar outro vocabulário, mais familiar à epistemologia moderna, esses esquemas são modelos, ou seja, regras para produzir figuras do divino: modelo do monarca, do juiz, do pai, do marido, do rabino, do servo. Esses modelos não são apenas, nem mesmo principalmente, modelos para figurar-se o

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Idem, p. 200-201. 180

84 divino, mas para figurar-se o companheirismo de Deus com o seu povo, com os homens, todos os homens. Esses esquemas, esses modelos permanecem muito diversificados, heterogêneos, e são incapazes por si mesmos de constituir um sistema.181

Ricoeur continua:

Além disso, não há um sistema que não seja conceitual. Mas a sua inclinação é a da representação antropomórfica, do ídolo. É preciso então substituir o funcionamento do modelo na dialética no Nome e do Ídolo. O Nome trabalha o esquema, o modelo, fazendo-o mexer-se, dinamizando-o, invertendo-o em uma imagem oposta (assim Deus assume todas as posições da figura familiar: pai, mãe, marido, irmão e finalmente Filho do homem). Do mesmo modo que a Idéia segundo Kant exige que se supere não apenas a imagem, mas o conceito, ao pedir que se “pense mais”, o Nome subverte todos os modelos, mas apoiando-se neles.182

De acordo com Ricoeur, o papel das expressões-limite é compreendido na dialética do Nome e do Ídolo. Isso porque essas expressões-limite são o complemento e o corretivo dos modelos. Portanto, não se pode reduzir a mutação da linguagem poética em linguagem religiosa, debaixo da pressão da nominação de Deus, ao único jogo das expressões-limite. O lugar dessa mutação é o conjunto de modelos e de seus modificadores. Logo, a poética do nome de Deus, que se manifesta no trabalho dos modelos, não é abolida. Antes, é intensificada pelo paradoxo, pela hipérbole e por todas as expressões primárias que geram em grau mais elevado de conceituação a “via negativa”. Essa última, por sua vez, não se concebe senão em sua relação com a via analógica, da qual ela é o complemento e o corretivo.183

A segunda observação de Ricoeur conduz ao passo decisivo no trajeto da poética para a política. Ele a exprime da seguinte maneira: “(...) esse jogo combinado de modelos e de seus modificadores continua de modo inteiramente significativo na prática que resulta da transferência dos textos para a vida.”184. Essa prática não é exterior à compreensão dos textos da fé, uma vez que tais textos não esgotam o seu sentido em um funcionamento puramente interno. 181 RICOEUR, 1996, p. 201. 182 RICOEUR, 1996, p. 201-202. 183 Cf. RICOEUR, 1996, p. 202. 184 RICOEUR, 1996, p. 202.

85 Contudo, eles visam a um mundo que pode ser habitado. Assim, o “refazer” o mundo segundo a visada essencial do poema faz parte da essência da poética. Acerca disso, Ricoeur afirma:

Nesse sentido, a aplicação de que falava a antiga hermenêutica é o momento terminal da compreensão. Prefiro empregar aqui a outra linguagem, mas que considero rigorosamente sinônima: compreender-se diante do texto. Por sua vez, compreender-se diante do texto não é algo que se passe apenas na cabeça ou na linguagem. Isso é o que o Evangelho chama de “pôr a Palavra em prática”. Sob esse ponto de vista, compreender o mundo e mudá-lo são fundamentalmente a mesma coisa.185

Conforme Ricoeur, a força lógica e prática das expressões-limite da Escritura não será a de recomendar certo tipo de conduta. Entretanto, será a de exercer no coração da experiência ordinária, tanto ética quanto política, uma suspensão geral, em benefício do que pode ser chamado, por simetria, de experiências-limite da vida.186

A terceira observação de Ricoeur é a seguinte: “(...) são esses “modelos” que podem alimentar uma reflexão ética e política na medida em que regram a antecipação de uma humanidade liberta e ressuscitada.”187. Para ele, a teologia hermenêutica se encontra entre as teologias da transcendência de Deus e as teologias políticas. Ou seja, suas águas vem das teologias da transcendência de Deus e vão para as teologias políticas. Isso se dá, principalmente, de duas maneiras:

Em primeiro lugar a hermenêutica, em seu aspecto textual, põe o acento não sobre a relação dialogal entre o autor e o leitor, nem mesmo sobre a decisão do ouvinte da palavra, mas essencialmente sobre o mundo do texto. É sobre esse mundo do texto que ela modela a compreensão de si. Se a linguagem não é para ela mesma, mas em vista do mundo que ela abre e descobre, então a interpretação da linguagem não é distinta da interpretação do mundo.188

Assim sendo, segundo Ricoeur, a compreensão de si diante do texto é tão ampla quanto o “Mundo do Texto”. Ela tem o caráter multidimensional da 185 Idem, p. 202-203. 186 Cf. RICOEUR, 1996, p. 203. 187 RICOEUR, 1996, p. 203. 188 Idem, p. 204.

86 poética bíblica: cósmico, ético e político. Então, a amplitude do “Mundo do Texto” requer igual amplitude da aplicação. Essa aplicação é tanto práxis política quanto trabalho de pensamento e linguagem.189

De acordo com Ricoeur:

Outra razão para não substituir uma teologia política a uma teologia hermenêutica: se uma teologia hermenêutica desemboca deste modo em uma prática política, como sobre uma das dimensões de aplicação que completa a compreensão, em contrapartida ela não é absorvida nela, na medida em que ela é precisamente em primeiro lugar e fundamentalmente uma poética. Se insisti tanto em preservar a qualificação poética da nominação de Deus foi para preservar a preciosa dialética do poético e do político. Certamente a existência humana é existência política. Mas os textos nos quais a existência cristã compreende a si mesma não são políticos senão na medida em que são poéticos. Assim, os modelos para um companheirismo entre Deus e o seu povo e o resto dos homens constituem antes o que eu chamarei de uma “poética da política” que, para receber essa qualificação propriamente política, exige ser articulada sobre análises, saberes, interesses, organizações, etc.190

Conseqüentemente, conforme Ricoeur, esses modelos só atingem a política alimentando uma moral de convicção para sempre irredutível à moral de responsabilidade. Dizendo isso, ele finaliza o seu nomear Deus.191

2.3 Hermenêutica da idéia da revelação: caminho para uma