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2.2 Nomear Deus: o ponto de partida da hermenêutica bíblica

2.2.3 A consciência da polifonia bíblica

Dando continuidade à sua argumentação, Ricoeur propõe a tese de que é a nominação de Deus pelos textos bíblicos que especifica o religioso no interior do poético. A essa tese, seguem duas observações. A primeira observação é a seguinte:

(...) a própria palavra “Deus” pertence a título primordial a um nível de discurso que chamo de originário em relação a enunciados de tipo especulativo, filosófico ou teológico, tais como “Deus existe”, “Deus é imutável, todo poderoso”, “Deus é a causa primeira” etc. (...) Escutar a pregação cristã, para o filósofo, é primeiramente desfazer-se de todo saber ontoteológico160. Mesmo e sobretudo quando a palavra “Deus” nele figura. O amálgama entre Ser e Deus é sob esse ponto de vista a sedução mais sutil.161

158 Ibidem. 159 Cf. RICOEUR, 1996, p. 188-189. 160

Ontoteologia, no sentido heideggeriano que Ricoeur dá a essa palavra, é diferente de ontologia. Na ontoteologia, Deus seria o ente supremo, embora pareça um ente desse mundo.

161

78 Conforme Ricoeur, é também na ordem das pressuposições que se mantém a escuta da pregação cristã. Contudo, num sentido de que a pressuposição não é mais autofundação, começo de si e por si. Antes, é assunção de um sentido antecedente, que precede o sujeito desde sempre. Conseqüentemente, o escutar exclui o fundar e o movimento rumo à escuta requer uma segunda renúncia. Essa renúncia é do si humano, em sua vontade de domínio, de suficiência e de autonomia. A ela se aplica o verso da mensagem de Jesus que diz: “Pois quem quiser salvar a sua vida, a perderá (...)” (Lucas 9:24 NVI)”.162

Para Ricoeur, essa dupla renúncia, ao objeto absoluto e ao sujeito absoluto, é o preço a ser pago para entrar na modalidade de linguagem radicalmente não-especulativa e pré-filosófica. Portanto, é tarefa de uma hermenêutica filosófica reconduzir do duplo absoluto da especulação ontoteológica e da reflexão transcendental para as modalidades mais originárias da linguagem. Por meio de tais modalidades os membros da comunidade de fé interpretam a sua experiência por si mesmos e pelos outros. Nesse ato, Deus é nomeado.163

A segunda observação de Ricoeur é a seguinte:

A nominação de Deus nas expressões originárias da fé não é simples, mas múltipla. Ou antes, ela não é monocórdia, mas polifônica. As expressões originárias da fé são formas complexas de discurso tão diversas quanto narrações, profecias, legislações, provérbios, preces, hinos, fórmulas litúrgicas, escritos sapienciais. Essas formas de discurso nomeiam Deus todas juntas. Mas elas o nomeiam diversamente.164

Ricoeur considera que cada uma dessas formas de discurso envolve um estilo particular de confissão de fé, no qual Deus é nomeado de maneira original. Segundo ele, o admirável é que estrutura (forma) e querigma (confissão) sejam apropriados um ao outro em cada forma de discurso. Nessa apropriação mútua se diversifica a nominação de Deus.165

162 Cf. RICOEUR, 1996, p. 190. 163 Ibidem. 164 RICOEUR, 1996, p. 190. 165 Cf. RICOEUR, 1996, p. 190-191.

79 Avançando um pouco mais, Ricoeur atenta para a nominação de Deus na narrativa, na profecia, na prescrição, na sabedoria e no hino. No que se refere à narrativa, ele diz:

(...) é preciso dizer que nomear Deus é em primeiro lugar um momento da confissão narrativa. É na coisa contada que Deus é nomeado. (...) Na medida em que o gênero narrativo é primeiro, a marca de Deus está na história antes de estar na palavra. A palavra é segunda, na medida em que confessa o traço de Deus no acontecimento.166

No que tange à profecia, Ricoeur afirma:

Agora Deus é significado como voz do Outro por trás da voz profética. Dito de outro modo, Deus é nomeado em dupla primeira pessoa, como fala de um outro em minha fala. (...) A tensão entre narração e profecia se expressa assim em uma dialética do acontecimento e gera uma inteligência paradoxal da história, como simultaneamente fundada na rememoração e ameaçada pela profecia. É assim que até mesmo no gênero profético Deus é nomeado em e pelo acontecimento e não apenas como voz por trás da voz.167

No que se refere à prescrição, Ricoeur diz:

Deus é então nomeado como autor da lei. Tomada nela mesma, esta nominação não é falsa: pertence ao sentido dessa nominação que eu perceba a mim mesmo como designado em segunda pessoa por Deus: “Tu amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, toda a tua força e todo o teu pensamento.” Esse tu sou eu.168

No que tange à sabedoria, Ricoeur afirma:

A nominação de Deus nela é menos personalista que na prescrição e na profecia, seja que o nada de Deus seja enfrentado à incompreensibilidade de Deus, até mesmo a seu silêncio e à sua ausência, seja que a própria Sabedoria seja celebrada como uma entidade transcendente quando muito personalizada.169

E, no que se refere ao hino, Ricoeur diz:

Novamente a relação com Deus se interioriza com o hino de celebração, de súplica e de ação de graças. Não é mais apenas o 166 RICOEUR, 1996, p.191. 167 Idem, p.192. 168 Idem, p.193. 169 Idem, p.194.

80 homem que é um “tu” para Deus, como no envio profético ou no mandamento ético, é Deus que se torna um “tu” para o tu humano. Esse movimento para a dupla segunda pessoa se completa no salmo de reconhecimento, assim como o movimento para a dupla primeira pessoa culminava na voz profética como voz do Outro.170

Ricoeur conclui fazendo uma síntese das nominações de Deus nos diferentes gêneros literários. Ele afirma:

Assim, Deus é nomeado diversamente na narração que O conta, na profecia que fala o Seu nome, na prescrição que O designa como fonte do imperativo, na Sabedoria que O procura como sentido do sentido, no hino que O invoca na segunda pessoa. É por isso que a palavra “Deus” não se deixa compreender como um conceito filosófico. (...) A palavra “Deus” diz mais que a palavra “Ser” porque ela pressupõe o contexto inteiro das narrativas, das profecias, das leis, dos escritos de Sabedoria, dos salmos etc. O referente “Deus” é assim visado pela convergência de todos esses discursos parciais. Ele exprime a circulação de sentido entre todas as formas de discurso em que Deus é nomeado.171

É válido ressaltar que esse assunto será retomado na análise do artigo Em direção a uma hermenêutica da idéia da revelação, publicado em 1977. Por enquanto, basta o que está apresentado.