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1. O PATRIMÔNIO E O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO

1.2 A emergência da noção de patrimônio urbano

A noção de patrimônio evoluiu a partir dos monumentos e obras de arte, e começou a se alargar de tal modo que o patrimônio urbano passou a ser reconhecido como uma categoria particular. À medida que foi adquirindo valor mobilizado por uma construção social, também se tornou sistematicamente um fator importante na elaboração de políticas urbanas. As ações de salvaguarda por meio de legislação específica foram paulatinamente configurando as intervenções nos centros antigos de inúmeras cidades.

Ao longo dos séculos XIX e XX, a noção de patrimônio se encontra vinculada à função pragmática de rememoração – representando riqueza, história e genialidade, bem como à de preservação (Choay, A alegoria do patrimônio, 2006). Com o advento da modernidade, as intervenções no espaço urbano começaram a se processar seguindo o ritmo acelerado das cidades industrializadas. Mais adiante, as alterações na dinâmica urbana provocaram mudanças no modo de consumo e de lazer, configurando as bases para o surgimento de uma sociedade voltada para o espetáculo (Debord, 1997).

Com a emergência do urbanismo como disciplina, buscou-se com o planejamento e a racionalização do espaço urbano resolver os problemas relativos à metropolização das cidades. Com base na teoria funcionalista, o espaço urbano visa a atender a três funções principais propostas na Carta de Atenas: habitar, trabalhar e circular (Le Corbusier, 1993). Para promover a transformação das antigas estruturas em espaços funcionais, diferentes tipos de edifícios passaram a ser postos abaixo, sendo os monumentos históricos preservados de modo isolado. Sobre essa prática, Choay (2006, p. 179) faz o seguinte comentário:

A história da doutrina do urbanismo e de suas aplicações concretas não se confunde, de modo algum, com a invenção do patrimônio urbano e de sua proteção. As duas aventuras são, todavia, solidárias.

Quer o urbanismo se empenhasse em destruir os conjuntos urbanos antigos, quer procurasse preservá-los, foi justamente tornando-se um obstáculo ao livre desdobramento de novas modalidades de organização do espaço urbano que as formações antigas adquiriram sua identidade conceitual. A noção de patrimônio constitui-se na contramão do processo de urbanização dominante.

Partindo da observação da autora, verifica-se que essa concepção também testemunha o surgimento da noção de patrimônio urbano. O fundamento ideológico do termo surge com as constatações teóricas3 do arquiteto Gustave Giovannoni (1998), que o utilizou no reconhecimento da influência do ambiente sobre o conjunto edificado. Desse modo, “o conceito de monumento histórico não pode designar um edifício isolado, separado do contexto das construções no qual se insere” (Choay, 2006, p. 200). Com esse direcionamento, Giovannoni lançou a base da noção de patrimônio urbano ao

3 A respeito da obra teórica e de planejamento de Gustave Giovannoni é importante mencionar que acabou se consolidando na bem-sucedida recuperação do centro histórico de Bolonha, no início da década de 1970. Tratava-se do Plano de Conservação Integrada, que tinha na conservação do patrimônio cultural e histórico da cidade a sua principal motivação. Sua metodologia se tornou uma espécie de paradigma, adotada não somente na Itália, mas em muitos outros países (Kühl, 2013).

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propor ligar as dimensões de proteção e conservação às duas categorias de edifícios – as grandes obras da arquitetura e as menores e modestas – de modo que o espaço antigo da cidade forme um monumento único. Por esta abordagem, também atribuiu um valor de uso e um valor museal aos antigos conjuntos urbanos (Kühl, 2013).

No desenho da cidade, as formações antigas começaram a adquirir identidade conceitual na contracorrente do urbanismo moderno. Os movimentos de preservação de monumentos serviam principalmente de complemento à lógica de renovação urbana; ou seja, à decisão daquilo que deve ou não ser preservado. Somente após a Segunda Guerra Mundial surgiu, de fato, um movimento em defesa da salvaguarda da paisagem urbana, ampliando a discussão e a reflexão sobre suas especificidades. Em 1964, a Carta de Veneza reconhece que “o monumento é inseparável do meio onde se encontra situado”4. Desta forma, aos poucos o continuum do tecido urbano se tornou um elemento importante na valorização do monumento histórico, associado à arquitetura banal da cidade. O reconhecimento de diferentes tipos de edifícios no tecido urbano acabou provocando a preservação generalizada de objetos identificados como patrimônio urbano.

O retorno à valorização dos laços históricos do espaço urbano coincide com o período de ascensão da materialização da cultura, no qual a “[...]

confluência de interesses econômicos e estéticos disseminou-se rapidamente a partir dos Estados Unidos e tornou-se a quintessência da expressão do capitalismo empresarial em regiões distantes do globo” (Ghirardo, 2009, p. 31).

Isso representou um marco no crescimento dos setores de serviços, comunicação e informação, os quais, aliados às técnicas publicitárias, passaram a seduzir a sociedade para o consumo em massa.

No cenário internacional, na contramão do processo de urbanização dominante, ganharam destaque as políticas de conservação e preservação preconizadas pela França e pela Inglaterra. A legislação francesa destinada à proteção do patrimônio nacional, criada em 1962, conhecida como Loi Malraux, criou os setores de salvaguarda, o que representou uma verdadeira reviravolta na percepção do patrimônio urbano. As chamadas conservation areas,

4 ICOMOS, 1964. Carta de Veneza: Definições, artigo 1.

estabelecidas pelos ingleses em 1967, dizem respeito às “[...] áreas de especial interesse arquitetônico ou histórico, cujo caráter deseja-se preservar ou promover” (Castriota, 2007, p. 18). De fato, a experiência francesa tomou dimensão internacional quando a UNESCO reconheceu o conceito de patrimônio urbano identificado com políticas culturais, com reflexo direto na preservação e valorização dos bairros antigos das cidades. Embora não sendo a legislação inglesa a precursora na Europa, foi a primeira a acrescentar a ideia da preservação monumental no âmbito da conservação dos centros históricos, com isso integrando uma ação conjunta entre os planejadores urbanos e os chamados “arquitetos de monumentos”.

A partir da década de 1970, o patrimônio urbano passou a ganhar corpo definitivamente ao englobar tanto edifícios notáveis quanto a arquitetura banal da cidade. As políticas de preservação foram surgindo por meio de legislações específicas de planejamento urbano e pela atribuição de diferentes categorias de zonas de proteção. Partiu-se do pressuposto de que a administração pública deveria encontrar formas de implementar políticas de conservação, por meio de legislação prevista no planejamento urbano. Seguindo a Convenção para a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural de 19725, adotada pela UNESCO, os Estados-membros assumiram o compromisso de assegurar a identificação, a proteção, a conservação, a valorização e a transmissão do patrimônio às futuras gerações. Vale salientar que nesse período vários países, sobretudo na América Latina, viviam sob regimes ditatoriais, sendo o patrimônio um recurso para as estratégias de afirmação dos valores e símbolos nacionais.

Consequentemente, não havia interesse em delimitar as zonas de proteção, posto que implicaria critérios mais rigorosos para a preservação.

A consolidação de novas concepções sobre o espaço urbano recebe novo impulso através da UNESCO com a publicação, em 1975, da Declaração de Amsterdã6, com o patrimônio edificado compreendendo os núcleos urbanos e cidades de interesse histórico e cultural. Suas diretrizes foram um passo

5 Informações disponíveis em http://whc.unesco.org/uploads/activities/documents/activity-562-2.pdf. Acesso realizado em 21/12/2016.

6 ICOMOS, 1975. Declaração de Amsterdã.

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importante para o planejamento urbano baseado na conservação urbana integrada, que colocou em destaque a necessidade de intervenção financeira do Estado, e sua influência no desenvolvimento socioeconômico das áreas urbanas degradadas.

Por esse mesmo direcionamento, é importante observar que as Recomendações de Nairóbi (Cury, 2004) apontam para a salvaguarda dos conjuntos históricos ou tradicionais e o reconhecimento de seu papel na vida contemporânea das cidades. Desse modo, tornou-se mais perceptível a diferença entre a amplitude conceitual que abrange a noção de patrimônio urbano e suas práticas no âmbito da preservação, envolvendo uma compreensão mais ampla da representação dos edifícios, dos espaços urbanos e da própria cidade. Por conseguinte, o patrimônio urbano compreende o conceito de monumento histórico tal como descrito por Alois Riegl (2003), bem como reconhece a importância atribuída por Giovannoni ao contexto em que tais construções se encontram inseridas (Choay, 2006). Essa evolução conceitual, com base na integração das áreas envoltórias, toma corpo por meio de legislações que promoveram o surgimento de novas dinâmicas socioespaciais.

A emergência do patrimônio urbano relativo à salvaguarda materializa-se administrativamente na preservação e valorização do arquétipo de centro histórico – enquanto designação atribuída às áreas tradicionais das cidades.

Assim, em sintonia com o processo de globalização, “la ville est devenue le lieu par excellence de fabrication du patrimoine” (Rautenberg, La rupture patrimoniale, 2003, p. 147). Em consonância com a indústria do entretenimento, configura o fenômeno que Guy Debord (1997) denominou sociedade do espetáculo7, provocando a redefinição do padrão cultural no século XX. A irrealidade dirigida pela indústria do espetáculo, mediada pelas imagens, facilitou a introdução do patrimônio urbano na lógica mercadológica das práticas culturais.

Tal avanço conceitual aponta para a evolução das políticas patrimoniais quanto aos novos significados e usos atribuídos ao patrimônio urbano. A

7 Segundo Guy Debord, na sociedade do espetáculo, das relações interpessoais às sociais, tudo está mercantilizado e envolvido por imagens. “O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é simultaneamente o resultado e o projeto do modo de produção existente. Ele não é um complemento do mundo real, um adereço decorativo. É o coração da irrealidade da sociedade real” (Debord, 1997, p. 15).

“conservação patrimonial” (Jeudy, 2005) pela atribuição de valores aos objetos a serem preservados, empreendida no âmbito do Estado, dá especificidade àquilo que se decidiu conservar na cidade. Essa discussão recai nomeadamente sobre a noção de centro histórico, relacionada à recuperação e à valorização das áreas tradicionais da cidade, motivada pelo crescente interesse dos gestores locais na preservação e conservação do patrimônio urbano.

A atualização do processo de patrimonialização coincide com a própria ampliação da noção de patrimônio por uma visão dinâmica a seu respeito, que permite transformar seu status no tempo de acordo com as circunstâncias que ele mesmo atribui. Como parte integrante desse processo, a memória patrimonial é gerada por régimes d’authenticité e, portanto, depende de uma relação equilibrada entre os elementos que fazem parte desse ecossistema (Morisset, 2009). A análise da transformação dos centros históricos tornou-se comum nos estudos urbanos, com diferentes disciplinas a dar-lhe um sentido particular. Assim, as especificidades no conceito de centro histórico na reconquista das zonas desvalorizadas não tratam de um esquema único de transformação, mas de uma multiplicidade de processos operados por diversos atores.

Ao provocar mudança, a atualização do patrimônio remete à renovação tomando como recurso a memória patrimonial, tendo em vista promover uma nova percepção no presente, por uma visão cíclica do processo de patrimonialização. Com efeito, a leitura da noção de patrimônio evidencia um movimento que se traduz na evolução da sociedade e na sua relação com o passado e o ambiente. Desvela que sua constituição é formada de continuidades e rupturas.

De fato, a ampliação do conceito de patrimônio, revestida de uma maior participação de diferentes setores da sociedade, é uma discussão central nas questões relativas à política de preservação do patrimônio no século XXI. A ação de patrimonializar reflete o processo de transformação urbana, reconhecido como um instrumento indispensável para a governabilidade de muitas cidades contemporâneas. A noção de patrimônio urbano converge para o processo pelo qual, notadamente, os atores públicos atribuem sentido ao espaço urbano por

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intermédio dos mecanismos modernos de patrimonialização, e se caracteriza como uma política dirigida à valorização de potencialidades sociais e econômico-funcionais.