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1. O PATRIMÔNIO E O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO

1.3 A patrimonialização do espaço urbano

Embora até o momento não tenhamos falado do que trata especificamente o processo de patrimonialização dos espaços urbanos, foi possível observar que se encontra próximo à evolução da noção de patrimônio.

O uso do termo tornou-se o mais adequado, visto que patrimônio se refere a um objeto, ideia ou lugar que não estava à espera de sua descoberta ou mesmo do reconhecimento dos vestígios de seu passado (Veschambre, 2008).

A patrimonialização diz respeito à ação de reconhecimento do estatuto de patrimônio por um agente mediador, principalmente o Estado. Envolve um valor venal, científico e comunicacional; ou seja, uma trilogia de critérios que caracteriza a patrimonialização do espaço urbano (Leniaud, 1992). No âmbito das políticas públicas, esse processo diz respeito à ação de diferentes atores envolvidos no estabelecimento do caráter patrimonial dos objetos e a tudo que pode interferir no ato de patrimonializar. Esse processo notabiliza a ação pública em resposta à necessidade de revalorização dos centros tradicionais.

O interesse em recuperar sua importância enquanto órgão vital coloca em questão o patrimônio urbano na evolução da cidade. Por essa perspectiva, leva-se em consideração que “le patrimoine n’existe pas a priori; tout objet est susceptible d’en faire partie quand il a perdu sa valeur d’usage; dans l’affirmative, il est affecté d’une valeur patrimoniale” (Leniaud, 1992, p. 3). Falar de patrimônio nesse contexto significa reconhecer que ele resulta de uma estrita produção social cuja perspectiva de uma projeção no futuro atende a finalidades ideológicas, políticas e econômicas.

De modo geral, os estudos sobre a patrimonialização enquanto produção do status social do objeto patrimonial têm sua análise voltada para a obrigação de guardar o patrimônio para as futuras gerações. Nesse sentido, Jean Davallon utiliza a expressão filiation inversée, forjada por Jean Pouillon, para caracterizar essa valorização acordada ao objeto patrimonial:

Il s’agit tout d’abord d’une transmission qui s’opère à partir de ceux qui reçoivent et non de ceux qui donnent. D’où la place centrale de la découverte de l’objet – ce qui en fait une trouvaille –, même si ceux qui le découvrent l’ont toujours eu sous les yeux. La main est donc du côté des héritiers, non de celui des donateurs. Cela ne signifie pas, loin s’en faut, que les premiers s’affranchissent des seconds; il y a au contraire une reconnaissance d’une valeur, d’une supériorité, d’une antériorité – bref, d’une grandeur – de ceux qui ont produit l’objet de patrimoine. Ils sont même considérés comme des êtres qui sont aux origines de la culture, de notre culture (Davallon, 2002, p. 74).

A análise do autor sobre “la fabrication du patrimoine” coloca em discussão as razões para um objeto ascender ao status de patrimônio. Na medida em que essa valorização ocorre no presente, Guy Di Méo (2008, p. 87) considera que a patrimonialização aplicada a um objeto, seja ele qual for, não tem nada de natural:

La patrimonialisation et ses processus ne sont donc nullement neutres.

De manière tout aussi générale, on observera qu’ils reposent sur une conception occidentale, linéaire et ouverte du temps qui est largement celle de la modernité européenne. En ce sens, la patrimonialisation rejoint, comme on l’a déjà vu, l’idéologie du développement durable.

A esse respeito, Benhamour (2012, p. 11) comenta que “la valeur scientifique fait du patrimoine un objet de savoir et de mémoire”. Sendo o patrimônio aquilo que é considerado digno de ser conservado, conhecido, celebrado e transmitido para as gerações seguintes, Héritier Stéphane (2013, p.

4) focaliza o ato de patrimonializar sobre as intenções e os sentidos:

Les processus, dits de patrimonialisation, incorporent des biens (objets, personnages, sites, lieux historiques, bâtiments, monuments, etc.) en effectuant une opération complexe associant, souvent de manière combinée et non exclusive, l’oubli (de la part des sociétés humaines) et l’abandon (de la part des propriétaires ou des usagers), la destruction (par la guerre, le temps), la sélection (par des institutions), la

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revendication (par certains groupes), la reconnaissance de tout ou partie d’une société.

Atribuir novos significados e usos aos objetos caracteriza a patrimonialização pela atribuição de um status de referencial, cujos aspectos materiais e imateriais são menos relevantes se comparados à ancoragem simbólica e às singularidades que conferem identidade. Nesse sentido, a busca dos vestígios do passado invadiu as cidades, gerando uma patrimonialização excessiva do espaço urbano, capaz de colocar várias dinâmicas urbanas em funcionamento pela ação de diferentes atores. Como afirma Rautenberg (2004, p. 78), “il existe un ordre institutionnel de la patrimonialisation par lequel l’objet commun est intégré dans l’ordre patrimonial par l’entremise d’une politique publique de gestion des biens collectifs (le patrimoine est ici construit par la loi ou le règlement) [...]”. Logo, a ação de patrimonializar o espaço urbano é um processo social de seleção e atribuição de valor aos objetos que nele existem, capaz de justificar sua proteção.

No processo de patrimonialização do espaço urbano, Rautenberg (2003) identifica duas diferentes categorias. A primeira, por designação, visa a reunir a sociedade em torno daquilo que foi reconhecido como patrimônio pelo poder político ou grupo hegemônico, como resultado da atividade científica realizada pelos especialistas. A segunda, por apropriação, encontra-se em grupos sociais diversos empenhados na conversão do objeto em patrimônio. Essa dupla abordagem permite que o processo de patrimonialização ocorra em diferentes escalas territoriais, conforme o significado que possui para certo grupo social. O processo de patrimonialização segundo uma relação dialética opera sobre os objetos, devendo o status de patrimônio ser frequentemente reafirmado e renovado, sob pena de cair no esquecimento (Veschambre, 2008).

Atualmente, tudo assume uma potencialidade patrimonial, uma distinção simbólica, que depende sobretudo de atender a critérios sobre o que deve ser preservado. A escolha sobre a seleção patrimonial não é imutável e pode ser reativada inúmeras vezes obedecendo a critérios variados. No entanto, conforme Greffe (2003), apresenta três critérios apontados como essenciais:

1- Científico: a dimensão patrimonial de certo objeto precisa revestir-se de caráter científico para que revestir-seja de valor único, insubstituível e de representatividade no seio da sociedade.

2- Econômico: ao ser patrimonializado, o objeto se reveste de valor econômico, sua depreciação e perda representam prejuízo financeiro em diferentes setores.

3- Comunicacional: é responsável pela visibilidade e conhecimento em torno do objeto patrimonial, uma vez que não havia a consciência de seu valor cultural.

Com a extensão sucessiva de objetos, atores e projetos, as etapas da patrimonialização são apresentadas com algumas variações por diferentes autores. De modo simplificado, o objeto toma corpo e passa a existir a partir de um processo esquematizado por uma sequência de fases. Apesar de apresentarem diferenças entre si, possuem em comum três mudanças de status na construção do patrimônio: de valor, quando é identificado; de estado, com sua conservação ou restauro; e de uso, quando transformado em objeto de exposição (Di Méo, 2007). No momento em que o objeto é selecionado, as várias etapas do processo de patrimonialização entram em ação, de maneira sucessiva e encadeadas umas nas outras. Tais operações serão mais bem detalhadas quando se falar da abordagem comunicacional da patrimonialização.

Diversos pesquisadores têm esquematizado o processo de patrimonialização apresentando suas etapas essenciais (Di Méo, Processus de patrimonialisation et construction des territoires, 2007). A leitura das cinco fases propostas por Hugues François et al. (2006) oferece um entendimento do processo que transforma um objeto vulgar em patrimônio.

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Figura 4: As diferentes etapas do processo de patrimonialização

Fonte: François et al., 2006, p. 691.

Considerando que o patrimônio envolve, além de um bem físico, uma herança e uma construção social baseada numa herança coletiva, a apropriação representa uma questão essencial do processo de patrimonialização. Embora o número de etapas possa variar de acordo com os autores, grosso modo, todos mostram concordar que o patrimônio é resultado de três grandes modificações:

de status, quando recebe autenticação; de estado, quando conservado e protegido; e de uso, quando posto em exposição. Mais adiante comentaremos com mais detalhes cada uma das fases do processo de patrimonialização, conforme desenvolvidas por Jean Davallon, em que se observa que não operam de modo linear, mas interativo.

Segundo Choay (2006, p. 22), por uma perspectiva histórica, “todo objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem ter tido na sua origem um destino memorial”. Com base na distinção entre monumento e monumento histórico estabelecida por Riegl (2003), os principais valores atribuídos aos objetos sob o vocábulo patrimônio urbano são de rememoração (histórico) e de contemporaneidade (de arte e de uso).

A posição adotada por Nathalie Heinich (2009), numa abordagem sociológica pragmática, chama atenção para a compreensão dos critérios na escolha do objeto de patrimônio. “Il s’agit là de comprendre les opérations patrimoniales dans leur signification aux yeux des intéressés, en s’attachant à toutes les composantes de la situation observée – mots, gestes, objets, actions de tous ordres” (Heinich, 2009, p. 33). Assim, no campo da sociologia dos valores, a autora explora em profundidade as operações que levam à atribuição de status de objeto patrimonial. Com base no inventário, considera que a construção social do patrimônio envolve diferentes questões tocantes à relação entre sujeito e objeto. A transformação de um objeto em patrimônio, embora não possua um valor imanente, é reconhecida como se dele fosse indissociável.

O patrimônio como objeto de estudo das ciências sociais, em particular pela sociologia urbana, permite refletir sobre os efeitos da patrimonialização.

Sobre essa questão, Emmanuel Amougou (2011, pp. 19-29) considera que:

[...] une objectivation critique de ces processus nous paraît féconde et d’une importance non négligeable. Ces différentes opérations, au plan sociologique où nous l’entendons, ne constituent que des

« phénomènes particuliers » au sens de Norbert Élias, constitutifs du processus de patrimonialisation global que doit analyser la sociologie.

C’est peut-être l’une des contributions décisives de la sociologie critique dans la compréhension des phénomènes ou mécanismes qui caractérisent la ‘frénésie patrimoniale’ qui semble caractéristique des formations sociales actuelles.

Por essa perspectiva crítica, a patrimonialização representa um mecanismo de afirmação e legitimação do espaço urbano. Nesse sentido, é relevante mencionar a adoção do conceito de gentrification como forma de expressar a segregação socioespacial nas áreas urbanas patrimonializadas, evocada pela socióloga britânica Ruth Glass8 (Leite, 2004). Ao se produzir o

8 A reabilitação urbana deu origem a uma vasta literatura, em particular de origem anglo-saxônica, quanto aos estudos sobre a gentrification operada especialmente nas áreas centrais das cidades, com destaque para os centros históricos. Esse fenômeno parece dirigir os esforços

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objeto patrimonial, produz-se também a maneira como ele será consumido.

Segundo Davallon (2006), as discussões envolvendo o lugar do patrimônio na sociedade contemporânea têm servido de pano de fundo para diversas explicações e críticas atuais sobre a patrimonialização.

Contudo, é importante lembrar as discussões apresentadas por Henri Lefebvre (O direito à cidade, 2001) em sua obra O direito sobre a cidade, na qual deixa claro que, em termos sociais e políticos, as estratégias de classes visam à segregação. Ou seja, Lefebvre buscou demonstrar que a separação e o isolamento não são uma tendência atual ou unicamente inerente às intervenções vinculadas à renovação urbana introduzida pela industrialização. Nesse sentido, a reapropriação do espaço urbano encontra-se relacionada à estetização dos modos de vida dominantes, portanto, esbarra em questões amplas e encontra-se em constante reelaboração quanto ao compartilhamento de experiências e práticas sociais que legitimam as políticas patrimoniais.

À medida que os centros históricos passaram a se referir a uma área institucionalmente protegida e valorizada, procurou-se garantir maior integração entre preservação das áreas centrais e sua inserção na economia da cidade. Por tal aproximação, a visualidade vem sendo considerada um elemento importante na percepção dos valores que conferem o estatuto de patrimônio urbano, bem como uma maior interação com o território em que se encontra. A paisagem é vista como essencial na percepção e compreensão da forma espacial que resistiu ao tempo. O patrimônio urbano tanto se encontra associado à preservação dos edifícios singulares quanto à preservação da paisagem urbana na inter-relação entre os diferentes elementos no contexto da cidade histórica.

Nessa linha de pensamento, o conceito de paisagem urbana formulado por Gordon Cullen (1983) põe em destaque sua representatividade e simbolismo sobre o imaginário social; ou seja, tanto em relação aos aspectos formais explícitos quanto aos valores simbólicos. O conceito proposto por Cullen (1983) diz respeito à paisagem urbana como a arte de tornar coerente e organizado, visualmente, o emaranhado de edifícios, ruas e espaços que constituem o

O primeiro é a ótica, que é a visão serial propriamente dita, e é formada por percepções sequenciais dos espaços urbanos, primeiro se avista uma rua, em seguida se entra em um pátio, que sugere um novo ponto de vista de um monumento e assim por diante. O segundo fator é o local, que diz respeito às reações do sujeito com relação à sua posição no espaço, vulgarmente denominado sentido de localização, “estou aqui fora”, e posteriormente, “vou entrar em um novo espaço”, e finalmente, “estou cá, dentro”; esse aspecto refere-se às sensações provocadas pelos espaços; abertos, fechados, altos, baixos etc. O terceiro aspecto é o conteúdo, que se relaciona com a construção da cidade, cores, texturas, escalas, estilos que caracterizam edifícios e setores da malha urbana (Adam, 2008, pp. 63-64).

Além desses aspectos interpretativos, Cullen (1983) propõe vários temas por meio dos quais apresenta a paisagem urbana como elemento organizador de processos interativos envolvendo o espaço e o ser humano. Seu conceito tem sido bastante utilizado como um eficiente instrumento para elaborar diagnósticos e prognósticos de intervenções no espaço urbano. Sobretudo a partir do início do século XXI, não há como negar que a ideia de ressignificação das paisagens urbanas tem sido explorada mediante os processos de patrimonialização que proliferaram por meio da ação intencional das instituições governamentais, dos grupos sociais organizados e dos interesses intrínsecos à economia de mercado.

Com base nos vestígios do passado, a construção de novos cenários urbanos continua sendo amplamente incorporada pelas políticas urbanas neoliberais das administrações municipais. Continuam incidindo, particularmente, sobre a sustentabilidade urbana, cultural e ambiental dos centros históricos, como recurso para o desenvolvimento econômico. Em razão do avanço da globalização das cidades, a UNESCO propôs, em 2011, recomendações visando garantir maior integração entre as estratégias de conservação, planejamento e gestão das suas áreas históricas com foco no desenvolvimento local. Essa problemática deu surgimento ao conceito de paisagem histórica urbana, que trata da

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[...] área urbana compreendida como o resultado de uma estratificação histórica dos valores e atributos culturais e naturais, que se estende além da noção de “centro histórico” ou “ensemble” para incluir o contexto urbano mais amplo e a sua localização geográfica. [...] Também inclui práticas e valores sociais e culturais, processos econômicos e as dimensões intangíveis do patrimônio relacionado com a diversidade e identidade (UNESCO, 2011, p. 3).

Diante do cenário de urbanização e globalização das cidades, em uma abordagem abrangente essa definição aponta para a evolução das políticas patrimoniais em termos de uma gestão sustentável das áreas históricas inseridas nos espaços urbanos. Nesse aspecto, propõe uma abordagem essencialmente relacional e socialmente inclusiva, sobretudo nos países em desenvolvimento, em que caberiam procedimentos e mecanismos para uma apropriação mais democrática quanto ao uso do espaço urbano. A paisagem histórica urbana como representação da permanência do lugar ao longo do tempo incorpora, além dos aspectos morfológicos, enfoques e significados que anteriormente não foram considerados relevantes.