O campo educacional está organizado a partir da ciência moderna, que apresenta em seu fundamento a valorização da racionalidade, da solidez, do concreto e a exclusão da experiência sensível, considerada como insustentável e não confiável. Essa perspectiva da ciência define para a educação um saber de forma regulada, um
como fazer. No entanto, por ser a sala de aula um ambiente repleto de contradições
e imprevistos, as informações prescritas acabam por ser ineficientes frente a uma atividade complexa e repleta de imprevisibilidade, razões que nos levam a entender os motivos da ineficácia do aspecto meramente técnico para o trabalho do professor. Para Voltolini (2018), o professor é convocado a ter o que ele denomina de
engenhosidade, ou seja, estar apto a se utilizar da habilidade de improvisação em
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[...] o problema principal desse modelo formativo, centrado no domínio teórico-conceitual para fins de aplicação prática, é o quanto exclui o papel do sujeito, alimentando e se alimentando de um velho sonho cientificista representado no campo pedagógico pela perspectiva de trabalho da pedagogia experimental – que concebe o trabalho docente como da ordem de uma engenharia... que se opõe à engenhosidade.(VOLTOLINI, 2018, p. 55)
Dessa forma, entendemos a docência como uma profissão que se ocupa diretamente de seres humanos e subjetividades e, portanto, tem em sua essência a complexidade e os fatores da casualidade, indicativos opostos aos prescritos pelo saber de um expert.
Termos como: saber do professor, competências profissionais, mesmo que pensados com o senso crítico que evita a excessiva objetivação, ainda portam o risco de nos fazer pensar que isso tudo pode ser agenciado totalmente pelo professor na cena pedagógica, visto que ele o desenvolveu em sua formação e experiência. (VOLTOLINI, 2018, p. 64)
O apontamento feito traz o sujeito do inconsciente para a esfera do saber educacional, possibilitando a amplitude necessária para o entendimento da engenhosidade docente. Para o autor, mesmo os saberes de um expert não excluem saberes implícitos de experiências vividas. Estes influenciariam diretamente na elaboração de conceitos, uma vez que o pensamento humano é composto por inúmeros fatores que o determinam, levando Freud a afirmar que “o eu não é senhor em sua própria casa”.
O sujeito em questão é aquele capaz de refletir sobre a complexidade dos dados que se lhe apresente a realidade e desta reflexão levantar hipóteses, pesquisar respostas, extrair conclusões e tirar delas sua conduta. Ele é um sujeito capaz de tomar a realidade como um objeto pensável. (VOLTOLINI, 2018, p. 65)
O conceito do professor reflexivo, já abordado neste estudo, também faz menção à engenhosidade do professor como uma capacidade proveniente da reflexão. Esse conceito entende a engenharia como construída a partir de experiências anteriores que, colocadas em suspenso, apontam para reais possibilidades de sua utilidade. Uma vez flexibilizada, perderá o caráter de engenharia, aproximando-se de uma engenhosidade.
83 Temos nessa corrente um avanço frente à concepção racionalista. Apesar de permanecerem no terreno do sujeito epistêmico, problematizamos que o conhecimento a partir unicamente da reflexão, permanece unicamente no campo da ciência racional. Para nós, essa concepção é limitadora, pois entende a existência do inconsciente como uma negativa do consciente, ainda predominando fundamentalmente a epistemologia. Para Voltolini, o princípio epistêmico é uma das possibilidades de simbolizar, não a única:
A função simbólica, para a psicanálise, é um processo mais amplo, que pode ser definido, globalmente, como processo de representação. Essa representação não teria, em princípio, a função de dominar a realidade [...] a própria realidade será construída pela representação, que cumpre em primeiro plano, a função de referenciar o sujeito tirando-o do mundo caótico informado pelos sentidos [...] Freud chamará de realidade psíquica (VOLTOLINI, 2018, p. 66)
O sujeito do inconsciente produz consequências para a construção epistêmica, não para desestruturar o raciocínio, mas para instrumentalizar-se, uma vez que necessita da racionalidade para organizar sua satisfação.
No campo da docência, o sujeito do inconsciente relaciona-se ao imaginário, pautado pela lógica do mito, preenchendo um campo desconsiderado pela epistemologia e seu sujeito. O fato de negá-lo não impede sua existência, pois ele está presente até mesmo no campo da racionalidade, de forma a possibilitar as inúmeras invenções da humanidade. Ressaltamos que essas invenções não ocorrem de forma puramente individual, pois o ato de refletir envolve, por si só, a participação de outro, ainda que este não esteja presente – um bom exemplo é o caso dos autodidatas que, mesmo parecendo estar sozinhos, sabemos estar rodeados (direta ou indiretamente) por um Outro, no sentido lacaniano. De acordo com a psicanálise, nomeamos esse caso de transferência.
O tema transferência é de fundamental importância para a educação. Inúmeros estudos já abordaram esse assunto. Entre o professor e seu aluno existe algo não contemplado pelas propostas pedagógicas de formação, particularidade atrelada ao que estamos nomeando de engenhosidade:
A engenhosidade do professor é um bom nome a dar ao que se passa na cena pedagógica porque, primeiro, marca o caráter gerúndio dessa cena – típico do campo transferencial – e, segundo, destaca que o professor tem de
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lidar com elementos que escapam a qualquer planejamento, pois ele não sabe, nem pode saber, como será afetado pelo encontro com o aluno. (VOLTOLINI, 2018, p. 69)
Frente ao colocado, percebemos quanto é significativa para a docência a condição de sujeito de seu saber e como o reconhecimento da engenhosidade docente carrega em si inúmeras possibilidades desconsideradas nas formações. Considerá-la já traria para o campo da formação docente a perspectiva da implicação subjetiva do professor. Quem sabe esse reconhecimento permitisse aos professores a saída da condição de impotência e a oportunidade de retomar o vigor perdido na profissão.