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A interatividade é uma característica relevante no atual contexto tecnológico e pode ser determinada sob vários aspectos relacionais. Associada à comunicação, seu significado tem origem na possibilidade de estabelecer um relacionamento simultâneo entre os seres humanos e os diversos ambientes que os cercam, provocando reconfigurações mútuas. O avanço da tecnologia e da comunicação trouxe mais vida a esse conceito, fazendo com que o termo passasse a ser usado de forma indiscriminada e livre, sem manter relação estreita com o princípio de seu significado. Muito se tem indagado sobre o que efetivamente acontece em uma sala de aula. Imagina-se desde a clássica ideia da sala de aula até as ideias classificadas como mais modernas. O que na verdade todos concordam é que em uma sala de aula ocorrem diferentes situações ao mesmo tempo, e em um período muito curto de tempo.

Essa dinâmica da sala de aula ocorre na maioria das vezes com situações imprevistas, como uma colocação inesperada de um aluno, um barulho, uma conversa, uma discussão e tantas outras situações que podemos colocar como contingências, e demandam do professor estratégias de atuação ao mesmo tempo em que a ação ocorre.

85 O trabalho da docência é dirigido a alunos e a presença deles é obrigatória e prevista na lei, no caso do Brasil, é assegurada pela Constituição Federal de 198817. Tardif denomina os alunos de clientes involuntários. Para esse autor, a obrigatoriedade pode vir a neutralizar o trabalho dos que atuam com ele, uma vez que esse profissional necessita da participação dos alunos para efetivar sua atividade. Nesse caso, o professor precisaria, de certa forma, convencer subjetivamente seus alunos, com o intuito de neutralizar possíveis resistências.

Podemos identificar essa formatação presente no discurso pedagógico atual, como a ideia de “motivar” os alunos. Com essa pretensão, cabe ao professor convencer os alunos de que a escola é uma coisa boa para eles, ou seja, é necessário que os alunos acreditem no que é dito de forma a se envolverem e, consequentemente, permitir que o professor exerça seu trabalho e que tudo ocorra sem grandes perturbações, tanto para os docentes como para os alunos em geral.

No caso da docência, Tardif aponta outras questões. Esse trabalho carrega certa vulnerabilidade, uma vez que a docência lida com grupos de alunos, com uma coletividade que é pública, diferente, por exemplo, de médicos ou terapeutas, que atuam de forma quase sempre individual e em ambientes restritos. Aqui uma consideração sobre o tema:

A docência é um trabalho cujo objeto não é constituído de matéria inerte ou de símbolos, mas de relações humanas com pessoas capazes de iniciativa e dotadas de uma certa capacidade de resistir ou de participar da ação dos professores. (TARDIF, 2005, p. 35)

A ambiguidade da docência é própria da atividade de lidar com seres humanos. Trata-se de um trabalho em que o objeto sempre escapa, pois, como coloca Tardif:

[...] a escolarização repousa basicamente sobre interações cotidianas entre professores e os alunos. Sem essas interações a escola não é nada mais que uma imensa concha vazia. Mas essas interações não acontecem de qualquer forma: ao contrário, elas formam raízes e se estruturam no âmbito do processo de trabalho escolar e, principalmente, do trabalho dos professores sobre e com os alunos. (TARDIF, 2005, p. 23)

17 Art. 208 § I- educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade,

assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009) (Vide Emenda Constitucional nº 59, de 2009)

86 Para Tardif (2005), no que se refere à relação de trabalho, quando colocamos o outro na categoria de objeto, temos com ele uma atitude de indiferença, a anulação ética de um ser sem subjetividade. Tal formatação foi sendo construída historicamente com a modernidade, pois é a partir dela que a razão técnica passa a valorizar o controle instrumental do ser humano e de tudo que o rodeia. O trabalho com e entre seres humanos envolve características delicadas, tais como as emoções e os juízos de valores suscetíveis a constantes reformulações, como esclarece o autor:

Esse trabalho sobre o ser humano evoca atividades como instruir, supervisar, ajudar, entreter, divertir, curar, cuidar, controlar, etc. Essas atividades se desdobram segundo modalidades complexas em que intervém a linguagem, a afetividade, a personalidade, ou seja, um meio em vista dos fins: o terapeuta, o docente, o trabalhador de rua, engajam diretamente sua personalidade no contato com as pessoas e estas julgam e os acolhem em função dela. Componentes como o calor, a empatia, a compreensão, a abertura de espírito, etc., constituem, então, trunfos inegáveis do trabalho interativo. (TARDIF, 2005, p. 33)

Philippe Perrenoud também aponta como essa relação interativa e intersubjetiva é implícita da docência, em que vínculos muitos complexos são estabelecidos nas relações educativas. “Sedução, chantagem afetiva, sadismo, amor e ódio, gosto pelo poder, vontade de agradar, narcisismo, medos e angústias jamais estão ausentes da relação pedagógica” (PERRENOUD, 2000, p. 151).

A autora Mireille Cifali (2001) também aborda a questão da interatividade na docência. O ensino está inserido no campo das profissões que lidam com o ser humano, assim, confronta-se com diferentes situações sociais complexas, submetidas à temporalidade, misturando o que é da ordem social com a institucional e pessoal. Esse espaço de atuação leva a uma conduta particular do pensar, de uma ética em ação e de uma formação regulada em que a palavra pode qualificá-la.

A relação que estabelecemos com o outro ou com o social é pautada fundamentalmente na afetividade, no passional. Para a docência, essa condição do trabalho o coloca em uma situação vulnerável: quando se trabalha com o outro, ele nos toca, por inúmeras vezes se opõe e resiste, também nos provoca encantamento, ou seja, são sentimentos ambíguos.

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As pessoas com quem trabalhamos fatalmente nos remetem ao essencial de nossas vidas de homens e mulheres: à impotência e à ignorância, à sexualidade e à morte, à dependência ...oscila-se, então, entre uma a outra quando não se dispõe das ferramentas para se referenciar. Primeiro aceitamos ser tocados e, com isto se torna perigoso para nossa própria sobrevivência psíquica, estabelecermos mecanismos de defesa. Como não se pode viver todo o tempo tocado, protegemo-nos com uma armadura institucional e é aí que nasce nossa indiferença, nosso cinismo, nosso rir por dentro de seu sofrimento; nós o transformamos em um objeto manipulável que não devemos “aborrecer” e cuja agressividade deve ser domada. (CIFALI, 2001, p. 105)

O ofício da docência, por mais elaborado que possa ser, por si só não resguarda o professor de derrapagens, de tomadas de poder, de rejeitar um aluno que o decepciona. É logico que a docência exige uma programação, uma preparação, para ordenar, para prever algo e para esperar seus efeitos. No entanto, na relação com o outro um imprevisto pode acontecer. É necessário se programar, pensar em uma lógica da ação à espera de um resultado. Ainda assim, é preciso entender que os efeitos previstos podem não ser exatamente aqueles pelos quais esperamos na relação com o outro. Se isso acontecer, o que foi programado levará a uma variável diferente, obrigando outra lógica de ação. Quer se queira ou não, as ações ultrapassam as intenções e as palavras. (CIFALI, 2001)

Nessa atividade ligada diretamente às relações humanas, a probabilidade do acaso é constante, e quando a situação é de incerteza, acabamos por tomar decisões que se alteram, se ressignificam, se refazem, é nesse sentido que entendemos que o que estar por vir cotidianamente na atividade docente requer uma engenhosidade. Assim, seria importante para o professor aceitar ser surpreendido, inventar na hora que for necessário, ter intuição, da qual poderá emergir uma palavra, um gesto, que poderá ser apreendido pelo outro. Para tanto, ele terá que ter um pensamento próprio, uma necessidade de refletir e escapar do jogo do automatismo. Esse princípio de atuação não decorre unicamente da aplicação de teorias, mas da apreensão de algo que não é necessariamente visível. Como para a criação artística, o saber e a técnica são importantes, mas não são nada se não forem incorporados, integrados a si e interiorizados. (CIFALI 2001)

Aquilo que contraria a prescrição torna-se, então, experiência palpitante, descobre-se que se pode ter ideias e enfrentar. Atitude de curiosidade, de descoberta, de associação que nos mantêm inteligentes. Encontrar uma solução que não exista ainda, que júbilo prestar-se a isso. Não é essa atitude

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que se sonha preservar na criança, curiosidade ardilosa que ordena e põe em relação aquilo que não estava dado? Ainda falta aceitar que o mundo nunca é sob medida para nós, que a realidade não é ordenada para se adaptar a nós e para nos satisfazer. (CIFALI, 2001, p. 106)

Podemos crer, portanto, que a atividade docente, por se tratar de uma profissão relacional, não tem como privilegiar os aspectos metodológicos de caráter instrumental, tendência das formações, cujo propósito é dimensionar as qualidades do que seja um bom professor. No entanto, esse é o caminho tomado por boa parte dos estudos sobre o tema.