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A EQM COMO FENÔMENO BIOPSICOCULTURAL: O QUE A

4 CONHECIMENTOS EM RELAÇÃO À EQM: TEORIAS SÃO COMO UMA

4.2 A EQM COMO FENÔMENO BIOPSICOCULTURAL: O QUE A

A morte é um fenômeno natural e biológico. Algum órgão falha, compromete o sistema, o organismo entra em colapso e morre. A quase-morte, embora colocada em certos contextos como um fenômeno biológico, não é natural. Ela precisa da intervenção humana, dos processos médicos necessários, para manter a integridade do sistema: ao falhar, o coração é eletrocutado, voltando a bater devido uma manipulação externa; as taxas de oxigênio no sangue e no cérebro são reestabelecidas via mecanismo artificial de oxigenação, e então a morte é revertida.

O nosso reconhecimento mental da morte é uma resposta às variações dos estados físicos do nosso corpo, por exemplo, respiração, circulação, os batimentos cardíacos, etc. Perdê-los e depois retomá-los, pode ser considerado artificial. Se na natureza, morrer é compreendido como um processo natural, “voltar da morte” ou da “quase-morte”, só pode ser apreendido como uma manipulação, e, como tal, pode ser considerada artificial. Nesse sentido, podemos classificar a experiência de quase-morte como um acontecimento extra-ordinário, onde a natureza foi manipulada.

Conforme assegurou Leach (1977), “os fenômenos que percebemos têm as características que lhes atribuímos por causa do modo como os nossos sentidos operam e do modo como o cérebro humano está organizado para ordenar e interpretar os estímulos que recebe” (LEACH, 1977, p.23). Reside aí uma ideia central do estruturalismo: o nosso modo de perceber o mundo se dá pela apreensão dos sentidos72.

Segundo Lévi-Strauss, a história tem o papel singular de dar forma ao tempo. Nessa acepção, o método estrutural serviria de caminho para à compreensão da natureza humana pela busca das propriedades fundamentais e universais. Se o cérebro, simbolicamente falando,

72 De modo geral, um método estrutural compreende que as criações humanas advêm de uma imitação da maneira que percebemos a natureza. O mito, por exemplo, seria uma forma de compreensão do mundo, onde as estruturas essenciais e universais de apreensão poderiam ser percebidas. Se assim for, possivelmente as narrativas dos informantes podem igualmente expressar tais estruturas.

funciona por oposições binárias, como acreditava Lévi-Strauss (1987), a oposição de morrer é viver. Então, o produto da cultura é a imitação simplificada de um fenômeno da natureza.

Em outras palavras, um fenômeno da natureza contraposto a outro de igual posição estrutural (nascer-morrer), pode ser observado nas narrativas das experiências de quase-morte, às quais, por exemplo, seriam um dos produtos da cultura. As visões e os elementos que compõem uma EQM, seriam símbolos primários compartilhados como um sistema ideacional, que quando narrados simbolizam uma ordenação cosmológica.

De modo análogo, podemos ver como isso se dá, não com elementos de vida e morte, mas com o espectro cromático, descrito por Edmundo Leach:

O espectro cromático, que vai do violeta, assando pelo azul, até o verde, ao amarelo, e ao vermelho, é um contínuo. Não existe um ponto natural em que o verde muda para amarelo e o amarelo par ao vermelho. O nosso reconhecimento mental da cor é uma resposta às variações na qualidade da produção luminosa, notadamente, na luminosidade entre o escuro e a luz, e no comprimento de onda luminosa, longa ou curta. [...] Isto constitui um padrão que se manifesta em muitas culturas além da nossa e, nesses outros casos, existe frequentemente um reconhecimento muito explícito de que o ‘perigo’ do vermelho deriva da sua associação ‘natural’ com sangue. [...] contudo, se quisermos criar mais um sinal com um significado intermediário, como atenção, escolhemos a cor amarela. Fazemos isso porque, no espectro, o amarelo situa-se entre o verde e o vermelho. (LEACH, 1977, p. 24).

Analogamente, é isso que se dá nas experiências de quase-morte. O exercício consiste então, em desvendar como as relações existentes na natureza são utilizadas para originar produtos culturais finais que congreguem as mesmas relações. Mesmo sabendo que nossa capacidade de apreensão é limitada pelos limites do corpo, é compreensível que tais produtos revelem algo sobre nossa capacidade de simbolizar. Se assim for, as narrativas das experiências de quase-morte ao apresentarem certas características universais, mostram-se como um caminho para explicar o funcionamento da mente humana?

Para Lévi-Strauss (2012), ao compreendermos como a natureza é apreendida por nós, humanos, seremos capazes de deduzir, seja por fatos, indícios ou raciocínio, sobre o mecanismo do pensamento. É sabido que a presença de universais empíricos, se assim podemos chamar, não é do interesse do estruturalismo, Lévi-Strauss pensava-os num nível estrutural como modelo para pensar. O que importa, na verdade, é a relação entre esses ditos universais culturais, e não eles em si. Em outras palavras, o que se vê e sente numa experiência de quase-

morte não é o cerne da questão, mas como esses elementos se relacionam entre si e como essa relação estabelece parâmetros para a vida prática de quem os compartilha73.

Ainda, a linguagem verbal, segundo a tese estruturalista, oferece os mecanismos necessários para que as características estruturais consideradas universais, presentes no cérebro humano, sejam transformadas em atributos estruturais universais da cultura humana. Se estão no cérebro humano, essas estruturas precisam estar presentes desde sempre, ou desde que a espécie humana se tornou o que hoje é?

Possivelmente os padrões de comportamentos foram cristalizados na evolução humana, especialidades inatas igualmente, e o cérebro tornando-se especializado, ofereceu as condições necessárias para o desenvolvimento da linguagem, da abstração e simbolização -ver Neves (2006) -, e, por consequência, a memória cumulativa74. São nessas capacidades, como a

linguagem, a abstração e a simbolização, que residem a base estrutural das narrativas das experiências de quase-morte. Como mostro no diagrama abaixo:

Diante disso, podemos questionar: por que não pensar a relação entre biologia e cultura como contígua e similar? Por que não subverter o esquema metodológico de oposição e passagem entre as duas categorias? Talvez possamos chegar à identificação de que o estado natural do homem é seu estado cultural75. Bem como questionou Lévi-Strauss (1982), ao referir-

73 Leach (1977) conclui do pensamento levistraussiano a seguinte assertiva: “se o comportamento cultural é capaz de transmitir informação, então o código em que as mensagens culturais são expressas deverá possuir uma estrutura algébrica” (1977, p.36).

74 No sentido da capacidade de acumular.

75 A complexidade de realizar uma análise que problematize a relação clássica natureza-cultura é evidente. Como bem destacou Lévi-Strauss em 1949, na introdução das Estruturas Elementares do Parentesco: “Se é relativamente fácil estabelecer a distinção de princípio, a dificuldade começa quando se quer realizar a análise. Esta dificuldade é dupla, de um lado podendo tentar-se definir, para cada atitude, uma causa de ordem biológica ou social, e de outro lado, procurando por que mecanismo e atitudes de origem cultural podem enxertar-se em comportamentos que são de natureza biológica, e conseguir integrá-los a si.” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 42).

FIGURA 8 – Base estrutural das narrativas de quase-morte.

NARRATIVAS ABSTRAÇÃO SIMBOLIZAÇÃO ACUMULADAMEMÓRIA LINGUAGEM

se à proibição do incesto como um fenômeno que possui simultaneamente a universalidade instintiva e o atributo coercitivo das instituições e normas sociais.

Lévi-Strauss não era simpático à ideia de comparar grupos de animais que são organizados socialmente com os grupos homens, a fim de descobrir os limites da animalidade e da humanidade. A passagem entre natureza-cultura afirmou Lévi-Strauss:

Não poderia, pois, ser procurada na etapa das supostas sociedades animais, tais como são encontradas entre alguns insetos. Porque em nenhum lugar melhor que nesses exemplos encontram-se reunidos os atributos, impossíveis de ignorar, da natureza, a saber, o instinto, o equipamento anatômico, único que pode permitir o exercício do instinto, e a transmissão hereditária das condutas essenciais à sobrevivência do indivíduo e da espécie. LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 44).

Nos grupos de animais organizados por regras sociais, não existem as condições classificadas como básicas para a produção de uma base cultural que permitisse o desenvolvimento de uma linguagem complexa e elaborada, instrumentos, instituições sociais com valores religiosos, morais, estéticos e artísticos. Evidentemente, regras sociais não são exclusivas da nossa espécie, mas os atributos listados acima são.

Nesse sentido, a melhor estratégia metodológica para abordar fenômenos que estejam engendrados entre a biologia e a cultura, consiste na observação das normas e da universalidade do fenômeno76. As narrativas apresentadas aqui são relativas e particulares, mas também

apresentam caráter universal. Essa descrição é a mesma usada por Lévi-Strauss (2012) para descrever a proibição do incesto como regra universal e demarcatória entre natureza e cultura.

Compreendo que a proibição do incesto é uma regra em sua plena dimensão. Coisa que não se aplica às narrativas das experiências de quase-morte, uma vez que nem todos estarão submetidos a ela. Contudo, a experiência de quase-morte é gerida por certas normas simbólicas, e isto a proibição do incesto também é. A morte biológica é a expressão da natureza, atestando a finitude e dependência corporal, e a morte simbólica, como sobrevivência para além da morte biológica, é a expressão de concepções simbólicas. Tanto a proibição do incesto quanto a experiência de quase-morte, cada qual com suas implicações, fornecem material simbólico para a organização da vida social.

De toda forma, podemos pensar ambas dimensões, a proibição do incesto e a quase- morte, como formas reguladoras, constituindo uma invasão da cultura no interior da natureza -

76 Assim, permitindo “isolar os elementos naturais dos elementos culturais que intervêm nas sínteses de ordem mais complexa. Estabeleçamos, pois, que tudo quanto é universal no homem depende da ordem da natureza e se caracteriza pela espontaneidade, e que tudo quanto está ligado a uma norma pertence à cultura e apresenta os atributos do relativo e do particular.” (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 47).

regulações sexuais e regulações existenciais, respectivamente, se assim podemos chamar. É neste ponto que as consequências da proibição do incesto e da experiência de quase morte se tocam. Encontrar, portanto, uma ordem na desordem é o principal passo para a decifração racional e ordenada da realidade, o que consiste em dar significado ao que aparentemente não tem77. Desse modo, a narrativa de cada informante:

Acende a faísca sob a ação da qual forma-se uma estrutura de novo tipo, mais complexa, e se superpõe, integrando-as, às estruturas mais simples da vida psíquica, assim como estas se superpõem, integrando-as, às estruturas, mais simples que elas próprias, da vida animal. Realiza, e constitui por si mesma, o advento de uma nova ordem. (LÉVI- STRAUSS, 1982, p. 63).

Isso nos faz voltar à pergunta inicial do capítulo: as narrativas das experiências de quase-morte, ao apresentarem certas características universais, apresentam-se como um caminho para exemplificar o funcionamento da mente humana?

A mente pode ser compreendida como peça chave na estruturação e ordenação da realidade, como tenta elucidar Lévi-Strauss (1978)78. Ao reduzir os sentidos à lógica do

concreto e outros modos de perceber o mundo a fenômenos genéticos, é uma tarefa ingrata. É confundir forma com conteúdo, concreto com abstrato, possibilidade com determinismo. Nesse sentido, considero necessário propor um modelo biopsicocultural para compreender as narrativas das experiências de quase-morte.

4.3 UM MODELO BIOPSICOCULTURAL: AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A