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UM MODELO BIOPSICOCULTURAL: AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A

4 CONHECIMENTOS EM RELAÇÃO À EQM: TEORIAS SÃO COMO UMA

4.3 UM MODELO BIOPSICOCULTURAL: AS CIÊNCIAS SOCIAIS E A

No início da década de 1970, em The sociobiology: the new synthesis, Edward O. Wilson, concebeu a disciplina denominada de sociobiologia. Pensada como uma proposta de síntese entre ciências biológicas e ciências sociais, a disciplina buscou relacionar as sociedades humanas às sociedades de outras espécies de animais, neste caso as sociedades de insetos.

De modo geral, os sociobiólogos analisam os aspectos comuns entre sociedades humanas e grupos de animais, e defendem a existência de estímulos instintivos classificados como “altruístas” ou “egoístas”, comuns aos humanos e às sociedades de animais, como colmeias e formigueiros. Segundo Wilson (1975), esses estímulos são considerados como a

77 Uma vez que “falar de regras e falar de significado é falar da mesma coisa; e, se olharmos para todas as realizações da humanidade, seguindo os registros disponíveis em todo o mundo, verificaremos que o denominador comum é sempre a introdução de alguma espécie de ordem.” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 21).

78 Assim, “se isto representa uma necessidade básica de ordem na esfera da mente humana e se a mente humana, no fim de contas, não passa de uma parte do universo, então quiçá a necessidade exista porque há algum tipo de ordem no universo e o universo não é um caos.” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 21-22).

base da formação de sociedades humanas ou não. E como alternativa disciplinar, a sociobiologia relacionaria os conhecimentos das ciências sociais com os conhecimentos das ciências biológicas.

Críticos à tal perspectiva, os antropólogos, incialmente os norte-americanos, discordaram da sociobiologia, tanto da sua proposta de síntese entre ciências sociais e ciências biológicas, como da sua explicação para a gênese das sociedades humanas e da capacidade cultural. Em resposta à sociobiologia como disciplina síntese da relação entre natureza e cultura, em 1976, o antropólogo Marshall Sahlins, publicou o livro The use and abuse of biology: an anthropological critique of sociobiology, onde critica os princípios analíticos da sociobiologia, acusando-a de ser uma disciplina etnocêntrica e simplificadora ao reduzir a dimensão simbólica à genética.

Igualmente, o conceito de relativismo cultural, o qual entende as particularidades culturais como produto da socialização, foi criticado pelos sociobiólogos, já que eles acreditam que a base da socialização é derivada de aspectos biológicos. Mendras (2004) identificou mútuas críticas entre sociobiólogos e antropólogos: do lado dos sociobiólogos, a antropologia exacerbaria o antropocentrismo e os antropólogos acreditariam que as características sociais ditas humanas, pertencem exclusivamente à espécie homo sapiens, excluindo as sociedades de insetos, que, embora não produzam cultura, têm regras sociais definidas e naturais. Por parte dos antropólogos, a sociobiologia seria etnocêntrica, uma vez que levaria em consideração aspectos sociais tipicamente ocidentais. E, não menos importante, a característica de simplificação genética que predomina na sociobiologia, a qual relaciona genes a determinados comportamentos sociais, excluindo qualquer possibilidade de interpretação simbólica desses comportamentos.

Nesse sentido, para à sociobiologia a sociedade seria regida pelo altruísmo e pelo egoísmo, e o diálogo entre ambos geririam a vida social. Segundo essa interpretação, os seres sociais, ou seja, àqueles que vivem em sociedade (isso inclui outras sociedades de animais), seriam, a priori, geneticamente egoístas, mas como forma adaptativa de manutenção da espécie e elaboração de sociedade, as espécies sociais se adaptaram geneticamente com a capacidade altruísta, permitindo de tal modo a sobrevivência pela vida social.

Nesse ponto, reside uma crítica aos sociobiólogos. Ambas categorias usadas por eles não são universais nem científicas, altruísmo e egoísmo seriam, assim, categorias arbitrárias. Etnograficamente é possível demonstrar que determinadas atitudes ocidentais são concebidas

de forma diferente no oriente, por exemplo79. O que, por si só, demonstra que o uso de ambas

categorias é problemático.

Mas a principal crítica à sociobiologia, refere-se no que tange à capacidade humana de simbolizar. Os sociobiólogos ao reduzirem essa capacidade à uma distribuição genética sem quase nenhuma flexibilidade, tolhem o que nós, humanos, temos de mais significativo: a capacidade de dar sentido às coisas, acontecimentos e pessoas. Evidentemente que outras espécies produzem sociedade, com regras, hierarquias e funções específicas, mas a capacidade de produzir símbolos, seja ela adaptativa ou não, é uma capacidade essencialmente humana.

É nesse sentido, que Toren (2006) defende que as relações sociais estabelecidas na história e num mundo particular, nos constituiria como humanos. Segundo ela, a história acumulada das relações humanas em amplo sentido é o que nos constitui como humanos, onde os conceitos de natureza e cultura colocados como opostos, não tem sentido. Segundo ela:

Todos os aspectos do meu ser como uma pessoa particular, dos meus genes até as minhas características fisiológicas, até tudo que eu faço e digo, até todos os pensamentos que eu tive e terei, são o artefato da história transformadora que prossegue fazendo de mim quem eu sou. Eu sou o produto de uma longa, longa história de relações sociais que continuam a me transformar ao longo do tempo, do nascimento à morte. (TOREN, 2006, p. 170 – grifo meu).

Com base nessa concepção de Toren, como podemos aceitar a ideia de que nossa capacidade de simbolizar seja fruto apenas de uma distribuição genética? Os humanos são constituídos pelas relações intersubjetivas, e tais relações podem, em última instância, manipular os genes. Nessa interpretação os genes igualmente sofrem influência desse contínuo processo histórico regulador80, segundo os termos de TOREN (2012). Tal acontecimento pode

ser evidenciado através da biotecnologia, por exemplo. Mas não apenas, num panorama histórico desde a pré-história pode contribuir com elementos para tal interpretação81.

Os sociobiólogos acreditam na existência de uma natureza humana determinada geneticamente. Para eles, a capacidade ou variedade simbólica humana é considerada secundária, sendo apenas uma capacidade genética adaptativa, a qual surgiu para garantir a perpetuação da espécie. Ainda podemos considerar, como lógica, a concepção de que a capacidade de simbolizar seja uma capacidade adaptativa desenvolvida por sucessivas

79 Ver Benedict (2009); Dumont (2008); Mead (2010).

80 Pois bem, na década de 1970, Edward Wilson realizou um experimento, borrifando em formigas vivas o feromônio que apenas formigas mortas exalam, constatando que as formigas vivas borrifadas com tal feromônio foram retiradas do formigueiro ao ser detectadas como “mortas” pelas outras formigas. Numa sociedade humana essa “confusão” não seria realizável.

gerações, mas não podemos aceitar a ideia de que essa capacidade não permite aos sujeitos liberdade de ação. Essa concepção é defendida por Sahlins (1976), o qual destaca a predominância em nós do livre arbítrio de caminhar pelos campos dos símbolos, dando conteúdo às formas culturalmente compartilhadas.

Disciplinarmente falando, a dicotomia que se estabeleceu entre antropólogos e sociobiólogos é um reflexo da distância ainda não superada entre os dois campos disciplinares. Nos últimos anos, vemos surgindo uma aproximação e uma proposta de diálogo entre as categorias natureza e sociedade, biologia e cultura ou natureza e cultura82. Essas categorias,

quase sempre pensadas a partir de uma oposição, contemporaneamente, vêm sendo analisadas de modo a afastar a predominância de tal dicotomia.

Na antropologia, existem algumas tentativas de reatualizar e superar esse afastamento artificial entre natureza e cultura, autores como Bruno Latour (1994), Phillipe Descola (2006), Tim Ingold (2000), Christina Toren (2006 e 2012), Viveiros de Castro (2005), são exemplos.

Contemporaneamente o que vemos, especialmente, em Tim Ingold (2000), é o deslocamento dos sentidos de natureza e cultura para o de humanidade. Existe um esforço epistemológico, o qual tem como foco criticar e superar o dualismo que impera nas análises sobre o humano. Tal esforço reside ainda em compreender como é existir no mundo, numa rede relações entre humanos e não humanos, indo além da percepção abstrata das coisas. A noção de humano desenvolvida por Ingold (2000), advém de uma percepção pessoa-organismo inserida em um ambiente, na qual, a ideia de skill aparece como central na constituição dessa percepção.

Em contrapartida, a crítica dos sociobiólogos aos antropólogos reside na concepção de que a antropologia se fixou em ressaltar as diferenças culturais, esquecendo-se de considerar a possibilidade de universais entre as diferentes culturas. A iniciativa de Ingold (2000), é uma entre algumas iniciativas relevantes que buscam reavaliar os conteúdos das categorias

82 Tendo a ver aqui a questão pelo viés suscitado por Motta (1977): “não há descontinuidade epistemológica entre ciência natural e ciência cultural. Ambas provêm da mesma mente humana, ambas tratam de estados e processos que obedecem aos mesmos princípios estruturais, embora, não sejam absolutamente idênticos. Os processos culturais não constituem exceção à regra universal.” (MOTTA 1977, p. 10). É compreensível a resistência sutil de certos antropólogos em admitir tal premissa. Muito devido ao modo indutivo e empírico da antropologia, o qual sustenta seu caráter próprio de observação, embasado na realidade cultural advinda do trabalho de campo. Então, a cognição pode ser entendida como uma forma de percepção do cérebro, advinda dos cinco sentidos. O processo de cognição, desse modo, começa com a captação dos sentidos físicos, assim ocorrendo uma percepção simbólica do meio. Resumidamente, é um processo de conhecimento e reconhecimento do mundo.

compreendidas como ontológicas na antropologia, e servindo de resposta à crítica da sociobiologia83.

Em continuidade com alguns antropólogos, como Marshall Sahlins (1976), Paul Rabinow (1999) vê a sociobiologia como um projeto social, que busca intervir nos pobres e marginais sociais, a fim de disciplinar, moralizar e essencializar um estereótipo de sociedade. Rabinow pensa a sociobiologia como cultura construída com base numa metáfora de natureza. Em Antropologia da Razão (1999), especificamente, no capítulo “Da sociobiologia à biossociabilidade”, Rabinow descreve o que foi chamada de uma racionalidade pós-disciplinar, a partir da articulação de dois polos: corpo e população.

Segundo Rabinow, em oposição à sociobiologia estaria a biossociabilidade. Conceito que consiste na ideia de que “[...] a natureza será modelada na cultura compreendida como prática; ela será conhecida e refeita através da técnica, a natureza finalmente se tornará artificial, exatamente como a cultura se tornou natural” (RABINOW, 1999, p. 144). Se na sociobiologia fala-se em genes altruístas e egoístas, na biossociabilidade existe a formação de novas identidades e práticas individuais e grupais, que surgem das novas técnicas e “verdades” científicas, a partir da sociabilidade inerente aos humanos.

Para pensar o contexto biossocial, Rabinow (1999), utilizando-se do conceito fini- illimité, desenvolvido por Deleuze (1986), observa que os seres não teriam nenhuma forma aperfeiçoada terminada. Um exemplo disso, seria o DNA, representando esse finito-ilimitado, do qual, a partir de suas bases elementares que o compõe, surgiu uma multiplicidade de seres. A natureza, a partir dessa concepção, atuaria para criar uma diversidade de combinações de partes e elementos: “a natureza é um bricoleur cego, uma lógica elementar de combinações, produzindo uma infinidade de diferenças potenciais” (RABINOW, 1999, p. 174). A diversidade, posto assim, seria uma lei.

É nesse sentido que Rabinow pensa O Projeto Genoma84. Para ele, o projeto ao

desenvolver o mapa do nosso DNA, representa o lugar por excelência, onde se dariam as práticas de vida como novos saberes e poderes. Para analisar essa hipótese, Rabinow usa como

83 Por exemplo, Lévi-Strauss pode ser considerado um dos mais afincos antropólogos dedicados à busca de universais dentro desta diversidade sociocultural. Não é de agora a preocupação em refletir a prática antropológica, os limites conceituais e como são realizadas as classificações éticas e êmicas, observando elementos contextuais e históricos. Possivelmente, esta preocupação teórico-metodológica considerada atual pelos antropólogos possa frutificar em algo mais que sínteses. E assim, avançar em termos epistemológicos na compreensão do ser humano como ser igualmente animal.

84 De modo geral, é um projeto desenvolvido por alguns países, a fim de mapear o código genético dos seres vivos, sejam eles humanos ou não.

alternativa interpretativa a racionalidade. E defende que ao invés de articular-se com uma racionalização geral, o interessante seria pensar em racionalidades específicas. Essa posição metodológica, mostrou-se bastante etnográfica: ao invés de postular, Rabinow descreve. E, a partir disso, põe a seguinte questão: “como irão mudar nossas práticas e éticas sociais à medida que este projeto avance?”. Analogamente, posso questionar com base no meu campo de pesquisa: como irão mudar as práticas e éticas individuais das pessoas à medida que a biotecnologia avance?85

É interessante pensar, a partir desse contexto, a influência da biotecnologia. Foi ela que permitiu o desenvolvimento do Projeto Genoma e o surgimento de novas drogas e técnicas de ressuscitação médicas. Para Rabinow,

[...] a nova genética deverá remodelar a sociedade e a vida com uma força infinitamente maior do que a revolução na física jamais teve, porque será implantada em todo tecido social por práticas médicas e uma série de outros discursos. (RABINOW, 1999, p. 151). A intervenção biotecnológica permite que inúmeras pessoas sobrevivam a paradas cardiorrespiratórias. Como se deu com os meus informantes, onde a experiência de quase-morte só foi possível nesse contexto. Seria a história de nossas relações moldando não apenas nossos modos de ser, mas, sobretudo, nossa forma de conceber nossos corpos e mentes? A ilustração abaixo esquematiza o que foi dito:

Agora abordarei um ponto importante desenvolvido na sociobiologia, a ideia de meme de Richard Dawkins, a qual pôde contribuir para a antropologia em termos analíticos.

4.4 MEMES: DESENVOLVIMENTO COGNITIVO COMO UM MICRO PROCESSO