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O INÍCIO DO TRABALHO DE CAMPO: EXERCÍCIO DE ESCUTA, EXERCÍCIO

2 A DESCRIÇÃO FENOMENOLÓGICA: COMO PERSPECTIVAS

2.2 O INÍCIO DO TRABALHO DE CAMPO: EXERCÍCIO DE ESCUTA, EXERCÍCIO

Como iniciar um texto etnográfico? Costumeiramente descrevendo a inserção do antropólogo em seu trabalho de campo. No caso presente, nada de ilhas distantes, nativos exóticos e incomunicabilidade com o mundo ocidental. Mas, sim, um grupo de pessoas que compartilham da mesma experiência: o fenômeno da quase-morte.

Para responder às questões iniciais, descritas na introdução, era necessário analisar as narrativas de pessoas que viveram tal experiência. Mas onde encontrá-los? A partir da rede de sociabilidade do pesquisador tivemos acesso ao consultório de uma psiquiatra que pôde ser a mediadora do primeiro contato com os informantes, tornando-se a informante privilegiada. O trabalho de campo inicial se deu dessa forma, pelo contato com à profissional da área de saúde, a qual foi responsável por estabelecer o contato inicial com os informantes.

Profissional da saúde especializada em psiquiatria há 12 anos, Monica domina as burocracias da produção de conhecimento das Universidades, mostrando-se interessada na

50 Gregory Bateson (1991) considera que as metáforas, as histórias e até parábolas, como às da bíblia, são exemplos de como funcionam a mente e o pensamento humanos. A metáfora seria uma espécie de linguagem da natureza, segundo Bateson. Além de deixar evidente como a mente humana se manifesta, a metáfora expressa a similaridade estrutural, ou o que ele chamou de o “padrão que une”. Assim, qual seria o padrão que une os informantes? Qual o padrão que une os humanos? A capacidade de produzir cultura?

pesquisa e em ajudar: indicaria pacientes que foram atendidos e relataram uma experiência de quase-morte.

No primeiro encontro, Monica me recebeu em seu consultório. Falou-me que havia atendido pacientes com tal histórico e que poderia repassar os contatos de alguns, os quais, segundo julgou, receberiam com mais empatia a ideia de contribuir para a pesquisa.

Mas antes de iniciar propriamente o trabalho de campo, um encontro inicial foi marcado com Monica, a fim de explicá-la do que se tratava a pesquisa e seus objetivos. Por iniciativa da própria, marcamos em seu consultório, o qual é localizado no bairro da Torre, zona norte do Recife. Em uma tarde, recebeu-me em seu consultório localizado num edifício empresarial, com arquitetura moderna. Contíguo a outros consultórios e salas comerciais, o consultório de Monica deve medir em torno de 50 metros quadrados. Ao sair do elevador, no sétimo andar, o consultório estava ao lado direito, com uma porta de vidro, onde consta seu nome: Drª Monica F. A. [suprimi ambos sobrenomes].

O consultório possui uma pequena recepção, onde a secretária ocupa-se com as marcações e telefonemas, e os pacientes podem esperar pelo início da consulta. Com quatro cadeiras e a mesa de trabalho da secretária, a recepção ainda é composta por três prateleiras, com alguns livros e revistas, que ao que pude observar, versam essencialmente sobre temas médicos. Ainda, no canto, do lado oposto, encontra-se um abajur e uma escultura.

A sala de Monica, onde atende os pacientes, é bastante iluminada, devido à boa entrada de luz natural, pelas janelas que ficam logo atrás de sua mesa, e à frente de quem adentra ao ambiente. Em ambos os lados da sala, tanto direito como esquerdo, estão dois armários. Um deles guarda os arquivos de seus pacientes, e o outro, com portas em vidro, estão os livros. Esses, herdados de seu pai, contou-me Monica. Falou-me também que atende 20 pacientes em média por semana em seu consultório. E que a motivação pela busca de sua especialidade era a mais variável possível, desde depressão, bipolaridade e déficit de atenção, até estresse e vício digital.

Monica expos seu interesse particular pelo tema da experiência quase-morte, e se pôs à disposição para ajudar com o que fosse preciso. Naquele primeiro encontro, repassou-me o contato de dois informantes, com base no seguinte critério: para ela, aparentavam-se como pessoas simpáticas, e que, possivelmente, não se incomodariam em contribuir. Combinou comigo que entraria em contato com ambas, e me informaria, para que eu mesmo os contatasse. E desse modo ocorreu.

Ao entrar em contato com os dois primeiros informantes, contatei Monica, que me repassou mais dois contatos. Do mesmo modo se deu com os demais informantes. Restringe- me ao total de seis informantes, três homens e três mulheres, por considerar que para uma amostra qualitativa a história de vida de cada um deles poderia ser analisada em profundidade.

No que tange à minha relação com os informantes, posso dizer que eles me identificaram como uma pessoa da universidade, produtor de certo conhecimento acadêmico, e com a possibilidade de divulgá-lo. Os diálogos que mantive com eles durante os meses futuros revelou-se etnograficamente produtivo.

Além da própria experiência, como veremos a seguir, os informantes narraram sentimentos e sensações, mas sobretudo expressaram uma evidente reflexividade diante de suas próprias experiências. Colocando-me diante de tais questões: (1) como traduzir tais relatos em linguagem antropológica? (2) sabemos que toda mensagem tem um objetivo, então o que queriam me dizer? e, (3) quais instrumentos a antropologia poderia fornecer para compreendê- los?

O fazer antropólogo é o ofício dos detalhes. Como um escultor de ideias, o antropólogo irá formar um quebra-cabeça da realidade estudada, como diria Lévi-Strauss: uma bricolage. É um exercício não apenas teórico, mas, sobretudo, um exercício de compreensão emocional do outro. As emoções e os afetos também contêm ideias e concepções de mundo. Bem como o pensamento racional, o pensamento emocional, se assim podemos chamar, também expressa às concepções e categorias de apreensão cultural. Cabe a nós, antropólogos, darmos conta das dimensões possíveis, pelas quais o pensamento humano é expresso. Ideias, práticas, conceitos e abstrações são ingredientes da mesma receita.

O meu lugar, neste contexto etnográfico, é o do pesquisador que pode legitimar o discurso dos informantes. Cada um deles sabe que viveu uma experiência singular, e a divulgação de tal experiência e suas consequências, são centrais para legitimá-los socialmente. E alguns fatores contribuem para tal perspectiva.

Todos os informantes advêm da classe média, tiveram acesso à educação, à saúde e dominam a vida burocrática cotidiana. Até onde pude catalogar, não existe nenhum estudo que

leve em conta a classe social como uma variável primária que influencie na ocorrência do fenômeno da quase-morte de forma direta51.

Entretanto, com base nos meus dados, posso dizer, a priori, que a classe social e, por consequência, o nível educacional influenciam na validação e legitimação da quase-morte como uma narrativa a ser comunicada. O “diagnóstico” de uma experiência de quase-morte está diretamente ligada ao acesso a profissionais qualificados e a recursos biotecnológicos.

Nesse sentido, apresenta-se a problemática da desigualdade no acesso a um sistema de saúde de qualidade, com profissionais qualificados e bom aparelhamento tecnológico. No qual, seja possível celeridade no processo de ressuscitação numa parada cardiorrespiratória, por exemplo. Por consequência, a população de baixa renda não teria acesso aos tais procedimentos, equipamentos e profissionais. E, ainda, a um acompanhamento médico após à experiência de quase-morte, caso ela ocorra. Provavelmente por isso meus informantes sejam todos de classe média, uma vez que estamos diante de uma questão sociocultural.

De tal modo, as características sociais definem os grupos que porventura possam vir a ter uma experiência de quase-morte. As técnicas biotecnológicas, responsáveis pela manipulação da biologia pela cultura, são caras e de difícil acesso, e, nesse sentido, é a própria cultura definindo como agirá no biológico. E, mesmo que o acesso às tais tecnologias exista, não é garantido, caso ocorra a experiência, que ela será considerada um acontecimento válido e igualmente diagnosticado e legitimado como uma narrativa de quase-morte.

Diante disso, podemos questionar (embora não tenhamos como responder aqui): no que tange ao contexto das experiências de quase-morte, quais as rupturas e continuidades entre indivíduos de classe média, com acesso à escolaridade e à saúde, e indivíduos advindos de outras classes sociais?

Cockerham (2007), ao pesquisar sobre o assunto nos Estados Unidos, demonstrou que a educação é a variável mais forte e determinante socioeconômica da boa saúde. E, segundo Elo (2009), a educação é considerada atualmente a principal variável que incide nos indicadores de mortalidade e de medidas de saúde. No Brasil, de modo geral, o consenso é de que a educação exerce uma influência considerável na prevenção de problemas de saúde; e a classe social,

51 Até onde pude conhecer, nenhum estudo até o momento encontrou qualquer correlação entre a incidência de experiências de quase-morte e status socioeconômico ou crença religiosa. A única correlação comprovada é a maior incidência em populações mais jovens - ver Von Haesler e Beauregard (2013). Em relação ao gênero, ambos são propensos igualmente à EQMs, mas como destaco nas considerações finais, a priori, observo que o nível educacional tende a influenciar de forma indireta no discurso e narrativas de quase-morte.

entendida como acumulo de riqueza ou renda, tem maior influência na intensificação e progressão dos problemas de saúde52.

De modo geral, no caso presente, o que existe é uma relação entre o discurso médico e sua legitimação por parte dos pacientes. E, no que tange à experiência de quase-morte, essa relação se estabelece de modo análogo em três momentos: (1) há a compreensão da experiência como um acontecimento, um evento, ou seja, a compreensão da quase-morte como um acontecimento carregado de significados e, portanto, uma experiência a ser comunicada; (2) o acesso a profissionais é possível antes e após a quase-morte; e, (3) existe competência comunicacional entre os informantes e os profissionais da saúde. Como demonstra o esquema a seguir:

A priori, os pontos acima exigem uma competência técnica ligada, num primeiro plano, ao nível de escolaridade, e, num segundo plano, à classe social. O nível social e educacional influencia a validação da experiência como acontecimento real, legitimando a narrativa da quase-morte à análise e ao diagnóstico. Os três momentos listados, referem-se basicamente ao acesso à informação, mas, acima de tudo, ainda é necessário dispor de recursos materiais e tecnológicos, ou seja, a discussão reside, de certa forma, na esfera da classe social.

Para além desse ponto, no que tange aos relatos de quase-morte, a dimensão de tempo que se tem para acessar os fatos experienciados pelos informantes, é sempre o passado. As narrativas são descritas com base no antes e após à experiência de quase-morte. Nos relatos, a conjugação entre passado e presente é central, existindo uma comparação de comportamentos passados (estes tidos como negativos) com os comportamentos presentes (estes entendidos como positivos em comparação aos do passado).

Nesse sentido, a análise das narrativas apresentou uma questão epistemológica referente ao tempo, uma vez que a memória narrada constrói uma “alteridade no tempo”, seja no tempo

52 Ver Santos (2011); House et al. (2005); Herd, Goesling e House (2007) Fonte: Elaborada pelo autor.

(1) COMPREENSÃO DA EXPERIÊNCIA COMO UM

ACONTECIMENTO

(2) ACESSO A PROFISSIONAIS

ESPECIALIZADOS PROFISSIONAL DE SAÚDE(3) DIÁLOGO COM O

do informante, seja no do antropólogo. (CIACCHI, 2010). Ao pensar sobre as narrativas do passado, Ciachhi (2010), a partir de pescadores do Ceará que compartilhavam narrativas de eventos aos quais nunca vivenciaram, refere-se à uma “inédita dimensão histórica do estranhamento”. Em sua visão, essa perspectiva “ultrapassa-se de vez a complementaridade do being there/being here, para ingressar na dimensão do “nunca termos estado lá53”, nem eu nem

ele.” (CIACHHI, 2010, p. 28). Então, diante disso, qual seria o meio por excelência de acessar ontologicamente o “outro”? Através da escuta e, por conseguinte, da intersubjetividade (TOREN, 2012).

Quando observado a partir de sua integridade atemporal, o passado é capturado após os fatos, e quem narra esse passado vive a história como se estivesse nela, “na própria correnteza do tempo: pertencendo-lhe.” (CIACHHI, 2010). Embora a singularidade de cada informante seja demarcada pela dimensão individual da alteridade que cada um experienciou, os elementos que compõem as narrativas das quase-morte, por exemplo, variam enquanto forma, mas, enquanto conteúdo, tendem a seguir padrões compartilhados. Em outras palavras, os elementos com os quais os informantes interagem durante a experiência de quase-morte, podem variar de uma narrativa para outra, porém, os significados desses elementos tendem a ser similares e contíguos.

A subjetividade, ainda que entendida como produto interno, é significada a partir da relação com o externo. Essa relação foi o que se convencionou chamar de intersubjetividade. A subjetividade não é, assim, algo dado, mas algo que se constitui a partir do contato, da relação e das trocas54, sejam elas práticas ou simbólicas, como as narrativas das quase-morte. (VELHO,

1987 e TOREN, 2012).

Dito isso, não apenas os seis informantes, mas os dois informantes privilegiados da área de saúde, compreendiam qual era o meu lugar na pesquisa. Todos sabiam o que era uma tese de doutorado e as implicações derivadas disso. Eu não estava lidando com o senso comum, propriamente dito, onde permite ao pesquisador ocupar um lugar de destaque nas relações. De modo contraditório, eu dependia mais deles do que eles de mim. Os informantes detinham as narrativas, e minha análise dependia do que eles me contassem.

53 Tradução livre de: “we wasn’t there.”

54 Além disso, como elucida Toren (2012), “[...] os detalhes dos estudos etnográficos sobre a ontogenia como processos históricos se nutrem diretamente do argumento de que os processos neurais que caracterizam o desenvolvimento conceptual humano são um aspecto emergente do funcionamento de um sistema nervoso incorporado para o qual a intersubjetividade é uma condição necessária” (TOREN, 2012, p. 32).

2.3 OS INFORMANTES DA PESQUISA: THEREZA, PIETRO, CARMEM, IGOR,