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9 – A era cristã e a ênfase filosófica na história do homem

Capítulo I – Homem, humanismo e humanização, veredas: do mítico ao filosófico e à

I. 9 – A era cristã e a ênfase filosófica na história do homem

A Bíblia – do grego significando livros – constitui-se de uma coletânea de vários livros, com suas respectivas peculiaridades. A Bíblia se apresenta como a palavra de Deus, e sua mensagem é objeto de fé. Embora a Bíblia não seja considerada uma filosofia – no sentido grego – não se pode deixar de considerá-la como uma visão geral da realidade do homem, na medida em que traz também conteúdos relevantes tratados pela própria filosofia.

A mensagem trazida pela Bíblia se difunde por todo ocidente, trazendo mudanças significativas ao sentido espiritual, através da palavra de Cristo no Novo Testamento, como uma revelação que busca complementar e aperfeiçoar aquilo que havia sido revelado pelos profetas do Antigo Testamento. Essa revolução vem influenciar sobremaneira os problemas do homem em relação à filosofia antiga e aquilo que viria ocorrer daí para o futuro.

O cristianismo se torna o paradigma que estabelece os horizontes no mundo ocidental, propagando-se pela Europa e conquistando continentes através da mensagem bíblica. Nessa difusão, algumas posições se tornam muito precisas. É possível filosofar na fé; crer; procurando distinguir os limites e a articulação entre razão e a fé.

A concepção do divino é colocada em torno de um Deus único – a unicidade de Deus – confrontando-se com a filosofia grega clássica que concebia a unidade do

45 divino em uma esfera composta por uma pluralidade de entidades, manifestações e forças em diferentes níveis hierárquicos. A filosofia grega admite o politeísmo, enquanto a mensagem bíblica comporta a unicidade de Deus como uma transcendência absoluta, dando origem ao monoteísmo.

Outro aspecto a se considerar diz respeito ao criacionismo. Deus é o criador de todas as coisas e também do homem. Um possível entendimento ontológico da doutrina da criação está em considerar que, ao criar, Deus se doa gratuitamente e em plena liberdade.

Outro confronto de concepções encontra-se na concepção grega tida como cosmocêntrica - homem e cosmos estão estreitamente interligados, pois ambos são dotados de alma e vida – enquanto que, na mensagem bíblica, sua concepção é tida como antropocêntrica – o homem é concebido à imagem do próprio Deus, portanto, senhor de todas as coisas criadas por ele. Essa imagem e semelhança impõem ao homem todos os esforços para assemelhar-se a Deus.

Para os gregos, a lei moral estava inserida na própria natureza (physis). Nos escritos bíblicos, a lei de Deus se insere como mandamentos; o bem moral (as virtudes) adquire um aspecto teológico como obediência aos mandamentos de Deus. No Novo Testamento, a presença de Cristo surge como aquele que concretizou com perfeição a vontade de Deus, proclamando que o objetivo maior da vida é o amor de Deus e amor recíproco; a boa vontade, sustentada pela graça divina constitui a base da moral humana.76

Para a psicologia profunda, há o surgimento de uma nova imagem arquetípica na psique, principalmente, na judaica. O Deus-imagem era a do pai, porém, algum tempo depois, encontramos outra imagem, a do filho, chamado “Filho de Deus” ou “Filho do homem”, com uma natureza diferente e mais específica do que a anterior, de caráter coletivo.77

Essa realidade pode ser entendida em dois níveis, sendo um pessoal e redutivo; e, o outro, algo que deriva da dimensão transpessoal, divina. Na relação com a psicologia, se torna compreensível em termos da individuação, que procede de dois centros no individuo: o ego e o Self. 78

76 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol.1, pp. 337 – 382. 77 EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 09.

46 O sentido da Providência bíblica é que há um Deus pessoal, que cuida do homem como um pai cuida dos seus filhos; mas também requer o cuidado recíproco entre os homens, principalmente com relação aos humildes, necessitados e pecadores.

Os gregos não chegaram ao conceito de Providência Divina. Sócrates e Platão se referiram a um Deus demiurgo, que constrói e governa o mundo. Aristóteles contestou esse conceito, assim como à maioria dos filósofos gregos, com exceção dos estóicos que consideravam a Providência como um aspecto racional de um Deus que governa todas as coisas e marca o destino e o desígnio dos homens.

Com relação à fé ou crença, a filosofia grega as colocava entre as coisas sensíveis, mutáveis, inferiores ao conhecimento filosófico. Platão valorizava as crenças como mito. Para ele o conhecimento era as crenças como virtude por excelência do homem. A mensagem bíblica, porém, requer do homem uma superação dessa dimensão, colocando a fé acima da ciência.

Para a psicologia, o mito de Jesus, como arquétipo emergente do Messias, tem sua expressão e efeitos mais duradouros em razão da comunidade que se centrou em sua figura após sua morte.79

No pensamento cristão, surge uma nova antropologia que abrange três dimensões: corpo, alma e espírito. O espírito participa diretamente do divino através da fé e da graça, abrindo-se para acolher e praticar a Palavra e Sabedoria divina já preconizada no Antigo Testamento.80

No mundo grego não havia conflito entre ciência e fé.

Os conflitos e divergências, possivelmente, surgiram na transição entre filosofia grega, como concepção universal da realidade, e a visão cristã, que traz a supremacia da explicação teológica sobre as explicações racionais. Ao longo dos séculos, esse conflito teve pontos salientes, especialmente na modernidade, e, presente até hoje.

Nietzsche chegou a mencionar uma “total subversão dos valores antigos”, ao se referir às mudanças de valores na história humana a partir do advento da mensagem bíblica cristã.

Outra diferença bastante significativa entre a filosofia grega e a mensagem bíblica encontra-se na questão da imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos.

79 EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, p. 12

47 Os gregos criaram o conceito de alma a partir de Sócrates – a alma como essência do homem – e Platão referencia sua imortalidade com provas racionais. Já Plotino, coloca a alma como uma das três hipóstases ou unidade (junto com o Uno e o Nous ou Inteligência).

A alma racional ou psyché se constitui das figuras teoréticas mais marcantes do pensamento grego e seu idealismo metafísico. Ela é imortal por natureza. Na mensagem cristã, além da doutrina acerca da imortalidade da alma, há também a fé na ressurreição dos mortos, como marca da nova religião. Essa ressurreição implica no retorno do corpo à vida, contrariando os estóicos e epicureus, para os quais a alma não poderia renascer em um mesmo corpo já repleto de negatividade e mal.

Quanto à história, os gregos tiveram um pensamento mais a - histórico. Aristóteles concebia a humanidade passando por catástrofes, que levariam a um estágio primitivo, para seguir um estágio evolutivo, avançando na condição de civilização, ao que se segue nova catástrofe, e assim por diante, ao infinito. Já a concepção histórica da mensagem bíblica não se coloca num âmbito cíclico, mas sim, retilíneo, que se faz por eventos decisivos e irrepetíveis; o fim dos tempos se constitui também no fim para o qual o homem foi criado: o juízo universal e o advento do Reino de Deus em sua plenitude. Dessa forma, o homem pode compreender de onde vem, onde se encontra e aonde é chamado a chegar.81

Para a abordagem psicológica, a figura de Cristo é arquetípica, se constituindo no arquétipo do Self. O desenvolvimento psicológico, como o biológico, contempla a compreensão de si mesmo – a individuação – a partir do homem que se conhece apenas como um ego e que o self como uma totalidade, se torna indistinguível de uma imagem-de-Deus (imago Dei).82

A atuação do trabalho de integração no continnum consciente-inconsciente permite ao ego penetrar no domínio do divino, ou mesmo, ir além do ego, num nível de transcendência, de acordo com a psicologia transpessoal.83

Importante salientar as contribuições da psicologia, principalmente as abordagens junguiana e transpessoal, ao estabelecer relações com as mudanças e desenvolvimento da psique em cada etapa da história do homem, contada desde a antiguidade.

81 REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario, História da filosofia vol. 1, pp. 388 – 395.

82 Citação de JUNG, apud EDINGER, Edward F., A psique na antiguidade livro dois, pp. 19 – 20. 83 EDINGER, Edward F. A psique na antiguidade livro dois, p. 20.

48 Lembramos a figura de Paulo de Tarso, que viveu entre os anos 10 d.C. e 67 d.C., e que não deve ser superestimada na evolução da igreja cristã, pois seu maior feito foi seu encontro numinoso na estrada para Damasco. Sua experiência é um exemplo clássico que, nas palavras de Edinger, são resumidas, como “o embate de um individuo com o numinoso”. Isso pode comprometer a sobrevivência da igreja cristã.84

Na tentativa de criar uma síntese entre o pensamento grego, e a mensagem cristã, em suas diversas dimensões, é que nasce o chamado “humanismo cristão”.

Um dos principais representantes desse humanismo cristão é Santo Agostinho, vértice do pensamento da Patrística, cujo movimento busca tratar as questões e problemas tanto doutrinários, quanto filosóficos, que surgiram dos impactos e diferentes dimensões trazidas pela mensagem bíblica.

I.9.1 – A filosofia patrística – uma elaboração cultural e a busca de uma síntese