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Capítulo 3 O que é o trilateralismo e a Comissão Trilateral: conceitos fundadores

1. Os conceitos fundadores do pensamento trilateralista

1.1. O mundo na “era tecnetrônica” de Z Brzezinski

1.1.2. A “era da crença volátil”, ou o fim da ideologia

Daniel Bell, em “O fim da ideologia no mundo ocidental”, ensaio publicado em 1960, rejeitava a definição de classe de Marx a partir do argumento de que, “num mundo político- tecnológico como o de hoje, a propriedade perdeu gradualmente sua força como determinante do poder, e às vezes até mesmo da riqueza efetiva”.418 Distinguindo, a partir de uma leitura

particular de Karl Mannheim, entre “ideologia parcial” e “ideologia total”, Bell define a ideologia que defende os interesses, por exemplo, dos trabalhadores ou da “comunidade de negócios” como “ideologia parcial”, isto é, um mero reflexo desses interesses sob a forma de idéias. Já a “ideologia total” é um “sistema abrangente de idéias sobre a realidade – um conjunto de crenças, imbuídas de paixão, que procura transformar em sua integridade um modo de viver”; ou, uma

religião secular.

Segundo o raciocínio de Bell, com o declínio das religiões propriamente ditas – enquanto crença que podia controlar o medo da morte (“fonte da consciência, segundo Hobbes) – ganham força as “religiões seculares”, como o marxismo.

“O esforço moderno para transformar o mundo principalmente ou exclusivamente pela atividade política levou necessariamente à atrofia de todas as outras modalidades institucionais de mobilização de energia das emoções. Com efeito, as seitas e as Igrejas e transformaram nos partidos e nos movimentos sociais”.419

Esse deslocamento da religião como fonte de explicação da vida e da morte também estaria na base da “expressão da irracionalidade”, que segundo ele seria “um traço marcante do temperamento moral da nossa época”.420

Na mesma linha de raciocínio, Brzezisnki afirma que “foi mais fácil estabelecer a crença institucional numa época de isolamento geográfico, cultural e, portanto, psicológico”.421

Conforme avança o processo de interdependência entre os povos, todas as crenças institucionalizadas perderiam espaço em detrimento de uma experiência mais individual.

Com uma dificuldade cada vez maior das instituições afirmarem a pureza das doutrinas que alegam representar (seja no caso das igrejas cristãs, seja no caso dos partidos comunistas), estar-se-ia verificando uma intensa turbulência, uma verdadeira crise, no seio das crenças

418 BELL, Daniel. “O fim da ideologia no mundo ocidental”. In. BELL, Daniel. O fim da ideologia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980. p.323. [Original de 1960, The Free Press]

419 BELL, Op. Cit., p.325.

420 Nas palavras de Bell, “Naturalmente, o fanatismo, a violência e a crueldade não são raras na história da humanidade; mas houve uma época em que essas emoções de massa podiam ser deslocadas, simbolizadas, afastadas e dispersadas por meio da devoção e da prática religiosas. Agora, porém, há somente uma vida para ser vivida, e a afirmação da individualidade se torna possível – e para alguns é necessária – como expressão de domínio sobre outros”. Bell parecia pressentir (e temer) o espírito da década que se abria. BELL, O fim da ideologia, Op. Cit., p. 325.

institucionalizadas, crise esta que abriria novos caminhos de pensamento e sentimento. O marxismo, em sua supostamente irreversível incapacidade de dar respostas satisfatórias à nova situação mundial, teria presenciado uma dissociação cada vez maior entre o pensamento humanista de suas origens e o partido comunista de tipo leninista, o qual passara a servir apenas para a conservação do poder nos lugares onde ele foi alçado.422

A transição para essa nova “era tecnetrônica” seria a grande causa desses efeitos ideológicos e emocionais específicos, que foram resumidos pelo autor no termo “crença volátil”. A “era da crença volátil” estaria intimamente ligada ao impacto da revolução tecnetrônica sobre as ideologias e concepções de vida existentes. O padrão dominante passa a ser o de “perspectivas mutantes, desestruturadas e altamente individualistas”, com as emoções servindo como cimento unificador no lugar das instituições, “e com os desvanescentes lemas revolucionários do passado dando a outros a inspiração necessária para enfrentarem um futuro totalmente diferente”.423 A

paixão dominante seria a paixão pela igualdade, seja entre os homens dentro das instituições, seja entre raças ou entre nações.

Neste contexto, todas as visões totalizantes que nasceram em determinadas épocas históricas estariam fadadas ao perecimento, tanto as religiões universais, como cristianismo e islamismo, como as “religiões seculares”, seja a identidade nacional, a qual, questionando o papel secular da religião estabelecida, criou um foco de lealdade intermediário (entre o infinito e o imediato); seja o marxismo, que segundo Brzezinski significou “um novo estágio na maturação da visão universal do homem”, cumprindo um papel revolucionário, e que por algum tempo forneceu, “mesmo aos relativamente deseducados, a sensação de que se acentuara fundamentalmente o seu entendimento dos fenômenos e de que seus ressentimentos, frustrações e vagas aspirações poderiam ser canalizados em ações historicamente significativas”.424

Em suma, Brzezinski defende, a seu modo, a mesma tese do “fim da ideologia” apregoada por Daniel Bell:

“A complexidade científica e o catecismo – reforçados pelos efeitos impressionistas da crescente dependência da comunicação áudio-visual (televisão) – trabalham contra as qualidades sistemáticas e dogmáticas da ideologia. Neste sentido, portanto, é certo falar de ‘o fim da ideologia’. Religião e ideologia foram parte de uma época em que a realidade era ainda dogmaticamente comprimível em

422 Brzezinski cita Kolakowsi, Lukacs, Ernst Bloch e Adam Schaff como exemplos concretos dessa dissociação entre pensamento renovador no marxismo e o marxismo institucional dos partidos comunistas. Processo semelhante estaria ocorrendo com a Igreja como instituição, abrindo caminho para uma “experimentação mais pessoal” da religiosidade. Brzezisnki cita também a dissociação entre a experiência com os partidos comunistas e a idéia de socialismo, mencionando pesquisas feitas na Polônia e no Leste europeu que mostravam simpatia pela idéia de socialismo, e antipatia pelo comunismo. Idem, p.87.

423 Idem, p.73.

424 Idem, p.81. Cabe notar que para o autor o “efeito escravizador” que os partidos comunistas teriam em relação ao marxismo, isto é, o marxismo institucionalizado, não diminuiria o fato de que o marxismo representou um estágio tão importante e progressista quanto a aparição do nacionalismo e das grandes religiões. Idem, p.82.

compartimentos intelectualizados; eram ambas reforçadas pelo desejo urgente de traduzir o ideal para o real.”425