• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 3 O que é o trilateralismo e a Comissão Trilateral: conceitos fundadores

1. Os conceitos fundadores do pensamento trilateralista

1.1. O mundo na “era tecnetrônica” de Z Brzezinski

1.1.1. Na crise, a transição “entre duas eras”

O fato é que Entre duas eras pretendia contribuir, segundo o autor, para a busca de uma perspectiva ampla para o entendimento de um emergente processo político global que, em sua visão, estaria apagando as tradicionais distinções entre a política interna e a internacional. Embora admitindo que “talvez tenha passado o tempo da ‘grande’ visão geral”, o autor se dizia insatisfeito com o “entendimento fragmentado” que estaria passando a ser predominante nessa nova era. A tentativa do livro seria escapar à “capitulação ante a complexidade”, fornecendo uma visão ampla num momento de crise, o qual, aliás, seria especialmente fértil para tal tarefa.

Como resume A. Argumedo,

“Los ideólogos de este despliegue de nuevas tecnologias – como el caso de Brzezinski, Toffler o Servan Schriber – fundamentan su potencialidad, no solo para superar la actual etapa critica del Norte sino, además, para brindar uma solución definitiva a los agobiantes problemas de las regiones del Sur. Y ya sea propugnando el advenimiento de uma “Era Tecnetrónica”, una “Tercera Ola” [Toffler], o un “Desafío Mundial” [Servan-Schiber], ya sea planteando La existência de ‘puntos de inflexión em las relaciones entre el Norte y el Sur’ [R. Gardner] o la necessidad de reformular la concepción de democracia [Huntington], los nuevos intelectuales del poder transnacional parecen coincidir em um tema central con los representantes de las regiones terceromundistas, que impulsan la creación de um nuevo orden internacional: estamos em presencia de uma etapa cualitativamente distinta, que ha de afectar de manera decisiva las relaciones del Occidente central com las áreas periféricas”.405

403 Ver BRZEZINSKI, Z. “Peaceful Engagement in Eastern Europe”. Foreign Affairs, p.642-654, Julho/1961. 404 Senador democrata por Dakota do Sul entre 1963 e 1981, o historiador George McGovern (1922-2012) foi o nome do Partido Democrata que se opôs a Nixon nas históricas eleições de 1972, marcadas pelo debate sobre a guerra. McGovern ficou mais conhecido após sua tentativa parlamentar de conter a escalada da guerra, através da

McGovern-Harfield Amendment. Uma interessante narrativa sobre a conjuntura eleitoral de 1972, escrita em cima

dos acontecimentos, pode ser encontrada em FRANCIS, Paulo. Nixon x McGovern: as duas Américas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1972.

Como consta no próprio título, a idéia central de Brzezinski era a de que os países industrialmente mais avançados, em especial os EUA, estariam emergindo de seu estágio industrial de desenvolvimento para um estágio em que a tecnologia, especialmente a eletrônica (daí o neologismo “tecnetrônica”), se tornaria a principal determinação das mudanças sociais, cada vez mais rápidas e complexas.

Segundo Brzezinski, o paradoxo dessa época de mudança seria que a humanidade se torna ao mesmo tempo mais unificada e mais fragmentada. A compressão do tempo e do espaço se manifesta na política global de forma tanto a gerar formas de cooperação mais amplas quanto a dissolver antigas lealdades institucionais e ideológicas. Com isso, estaria emergindo um novo modelo de política internacional.

“o mundo deixa de ser uma arena em que nações relativamente homogêneas, ‘soberanas’ e auto- suficientes interagem, colaboram, chocam-se ou entram em guerra. A política internacional, na acepção original da expressão, nasceu quando grupos de pessoas começaram a identificar-se – e a outros – em termos mutuamente exclusivos (território, idioma, símbolos, crenças), e quando essa identificação se tornou, por sua vez, o fator dominante nas relações entre estes grupos. O conceito de interesse nacional – baseado em fatores geográficos, em animosidades ou amizades tradicionais, na economia, em considerações de segurança – implicou num grau de autonomia e peculiaridade que só foi possível enquanto as nações estiveram suficientemente separadas no tempo e no espaço de modo a disporem tanto de área de manobra como da distância necessária à manutenção de identidades distintas (...) Todos os quatro fatores mencionados acima tornam-se agora globais. (...) Os laços transnacionais ganham importância enquanto os clamores de nacionalismo, embora ainda intensos, não obstante vão-se diluindo. (...) A conseqüência é uma nova era – a era do processo político global”.406

A referência à idéia de sociedade pós-industrial de Daniel Bell é absolutamente direta: na verdade, como admite o próprio Brzezinski, seu termo “tecnetrônica” seria tão somente uma tentativa de dar um sentido mais preciso ao termo “pós-industrial”.407

Anos antes, em O fim da ideologia, conjunto de ensaios sobre diversas temáticas, entre elas a história do socialismo nos EUA, Bell havia vaticinado que chegara ao fim a estrutura que dera lugar ao conflito ideológico de classe do início do século XX, que a intervenção do Estado na economia havia chegado para ficar. Bell costumava referir-se como “um socialista na economia, um liberal na política e um conservador na cultura”.408 A historiadora Ellen Wood nota

406 BRZEZINSKI, Entre duas eras, Op. Cit., p.20. 407 Idem, p. 24.

408 De origem novaiorquina, pobre e judia, Daniel Bell (1919-2011) foi socialista em sua juventude, nos 1930, aproximando-se aos poucos das posições políticas liberais. Trabalhando por 20 anos como jornalista, aproxima-se de Henry Luce, diretor da Time, e somente depois ingressa na carreira acadêmica, tornando-se professor de Harvard em 1969. Foi colega de classe de Irving Kristol – ex-trotskista que tornou-se o pai do neoconservadorismo nos EUA – com quem Bell fundaria, em 1965, a revista The Public Interest – publicação que conquistou bastante circulação dentro dos círculos políticos tanto liberais como conservadores nos EUA. Nos anos 1940, Bell trabalha como membro da Social Democratic Federation of America (como redator de seu órgão, a New leader Magazine) de caráter progressista e social-democrata, mas também na edição da Union for Democratic Action, entidade de caráter anti-comunista e precursora da estridente Americans for Democratic Action. Em meados de 1940, abandona a New

Leader, começa a dar aulas na Universidade de Chicago e escrever na conservadora Commentary, e posteriormente

que também em 1959, o escritor radical C. Wright Mills, aliás um dos principais adversários intelectuais de Bell, também anunciava o declínio de uma época histórica que estaria sendo substituída pelo “período pós-moderno”. Isso se devia, segundo Wood, ao clima que se experimentava no auge da chamada “era de ouro” (ou “sociedade afluente”), que induzia à noção de que os problemas anteriormente mais importantes da sociedade ocidental foram, de alguma forma, solucionados, que o progresso prometido pelo Iluminismo fora em grande parte entregue, e que havia condições para harmonia social – ignorando-se, como lembra Wood, a chamada “outra América” e as contradições geradas pelo imperialismo americano no mundo.409

Embora a obra de Bell mais conhecida sobre o assunto, The Coming of Post-Industrial

Society: A Venture in Social Forecasting, só fosse publicada em 1973, ainda em 1968 o autor

publica um artigo que já adiantava boa parte das suas reflexões sobre as características dessa “sociedade pós-industrial”.410 Desde 1965, Bell fazia parte dos esforços da “Comissão para o ano

2000” da Academia Americana de Artes e Ciência, que pretendia investigar as mudanças estruturais então em curso que teriam um impacto social de longo prazo. Em sua participação nessa comissão, Bell já enfatizava uma dicotomia entre a estrutura “tecnocrática” da sociedade moderna e sua cultura hedonista, somada a “níveis cada vez mais irrealistas” de expectativas públicas e privadas, apontando para a incapacidade do liberalismo em solucionar os problemas daí decorrentes.411 O pós-industrialismo viria para estabelecer de vez a meritocracia das

capacidades e da qualificação, principalmente educacional, deixando para trás os “ressentidos”. Afinal, a busca liberal por “equidade absoluta” (o que, para Bell, tinha sua maior expressão nas políticas afirmativas para não-brancos e mulheres) encorajava atitudes desafiadoras e minava a legitimidade. Como veremos, todas essas noções estão presentes no pensamento de Brzezinski.

Essa crítica ao “hedonismo” e à falta de coesão social em torno de determinados valores apareceria no discurso do próprio presidente J. Carter, no contexto daquilo que ele mesmo chamou de “crise de confiança”, no final dos anos 1970. Em um famoso pronunciamento em rede nacional de televisão, em 15 de julho de 1979, Carter falava ao público estadounidense sobre a

Partido Republicano, no entanto, Bell não vai junto e permanece alinhado com a ala mais conservadora do Partido Democrata. Fonte: BUHLE, Paul. “Daniel Bell obituary”. The Guardian, 26 de janeiro de 2011. (disponível em

http://www.theguardian.com/education/2011/jan/26/daniel-bell-obituary).

409 Lembre-se também que, àquela altura, mesmo críticos como Marcuse, davam por permanente a domesticação das massas, a classe operária em particular, não considerando-a mais como força de oposição; e mesmo os movimentos de 1968 carregavam a idéia de novos protagonistas, especialmente os estudantes e intelectuais. O curioso, nota Wood, é que essa noção, bastante natural para aquela conjuntura histórica, tenha persistido após décadas de estagnação e crise. Ver WOOD, Ellen. “O que é a agenda ‘pós-modern’?” In. WOOD, E. & FOSTER, John Bellamy. Em defesa da História. Marxismo e pós-modernismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p.7-9.

410 Trata-se de BELL, Daniel. “The measurement of knowledge and technology”. In SHELDON, Eleanor & MORRE, Wilbert (eds.), Indicators of social change: concepts and measurements. Nova York, Russell Sage Foundation, 1968.

411 A crítica ao hedonismo continuaria forte em obras posteriores, junto a uma espécie de saudosismo da ética protestante do capitalismo, supostamente em declínio fatal.

incapacidade de “nos unirmos enquanto nação” diante da crise do petróleo e da recessão. Carter falava sobre uma “perda de uma unidade de propósito para nossa nação”.

“Uma ameaça fundamental à democracia americana. Eu não me refiro às nossas liberdades políticas ou civis. Elas perdurarão. Eu não me refiro às forças externas da nossa nação, uma nação que está em paz esta noite com todas as nações do mundo, com incomparável poder econômico e militar. A ameaça é praticamente invisível em formas comuns: é uma crise de confiança. É uma crise que ataca bem no centro do coração e da alma dos habitantes dessa nação. (...) Nós sempre acreditamos que éramos parte de um grande movimento da própria humanidade, chamado democracia, envolvido na busca por liberdade; e essa crença tem sempre nos fortalecido em nosso propósito. Mas assim como estamos perdendo nossa confiança no futuro, nós também estamos fechando a porta para o nosso passado. Numa nação que tinha orgulho de seu trabalho duro, famílias fortes, comunidades solidárias, a nossa fé em Deus, muitos de nós agora tendem a venerar a satisfação de desejos e o consumo. A identidade humana não é mais definida por aquilo que se faz mas por aquilo que se possui.”412

Cabe notar que o termo “crise de confiança” já vinha sendo usado desde pelo historiador Arthur Schlesinger desde 1967, no contexto dos diversos assassinatos políticos recentes nos EUA (John F. Kennedy, Martin Luther King e Robert F. Kennedy). Schlesinger, historicamente ligado aos Kennedy, diagnosticava uma “sociedade enferma”, em que a violência civil interna chegara a patamares qualitativamente diferentes, ainda que a violência e seu culto fossem traços formadores do povo americano desde tempos primordiais, ao menos a partir do extermínio dos nativos americanos. Schlesinger condenava a guerra do Vietnã como algo sem um propósito verdadeiramente nacional, e identificava uma forte questão geracional no cerne da turbulência de então.413 Nesse contexto de violência extrema, enraizada e incontrolável, a democracia vivia a

situação mais desesperadora do que nunca na história dos EUA. Essa noção, como veremos, também estará presente em Brzezinski.

Apreendendo as mudanças em direção a esta era pós-industrial ou tecnetrônica a partir da mesma noção saudosista de Bell, Brzezinski procura então descrever uma série de transformações nos mais amplos aspectos da vida social. Em primeiro lugar, o emprego industrial cederia cada vez mais lugar aos serviços, com a automação e a cibernética substituindo o trabalho industrial propriamente dito; em segundo lugar, os problemas de emprego e desemprego, que teriam dominado a “sociedade industrial”, cederiam agora lugar a outras preocupações, mais ligadas à “atualização das habilidades”, a segurança, férias, lazer, divisões de lucros, ao mesmo tempo em que o bem-estar de milhões de trabalhadores relativamente seguros, mas “potencialmente

412 CARTER, James E. Pronunciamento em rede nacional de televisão, 15 de julho de 1979. Disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=kakFDUeoJKM. Acessado em 15 de fevereiro de 2015.

413 “Ninguém saía a matar líderes que não eram do seu agrado. A guerras tinham uma razão nacional e um objetivo. A lembrança política de quem votou pela primeira vez em 1968 só vai até cerca de 1960”; “Na verdade tornamo-nos um povo assustador porque, durante três anos, destruímos paulatinamente um pequeno país, do outro lado do mundo, em uma guerra que não tem qualquer relação com a nossa segurança ou com os interesses nacionais”. SCHLESINGER Jr, Arthur M. A crise de confiança. Idéias, poder e violência nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970 [1967], p.8-9. Para Schlesinger seria compreensível, assim, o inconformismo dessa nova geração diante daquilo que era encarado como uma guerra sem propósito e uma violência política sem freios.

obsoletos”, torna-se um problema crescente. Em terceiro lugar, a educação, que na “era industrial” teria se preocupado em universalizar a alfabetização, e era propiciada em períodos de tempo limitados e específicos, agora, já sendo universal, dá mais ênfase à “seleção qualitativa” e à descoberta de “técnicas mais eficazes para a exploração racional do talento social”. O processo educacional se tornaria mais extenso e cada vez mais dependente de auxiliares áudio-visuais (e, implicitamente, menos intermediação humana).

Dessa forma, a liderança social, que na sociedade industrial teria passado de uma “elite aristocrática rural tradicional” para uma “elite plutocrática urbana” passa agora desta para uma liderança composta por “indivíduos de talentos intelectuais e habilidades especiais”. “O conhecimento torna-se um instrumento de poder e a mobilização efetiva do talento um meio destacado de adquiri-lo”.414 A universidade, que na “era industrial” seria uma torre de marfim distante, “repositório de saber irrelevante, embora respeitado”, torna-se agora um “tanque de pensamento” (literalmente, think tank) intensamente envolvido no planejamento político e na inovação social, ao mesmo tempo em que

“A crescente capacidade de reduzir os conflitos sociais a dimensões quantificáveis e mensuráveis fortalece a tendência para um modo mais pragmático de encarar os problemas sociais, ao mesmo tempo em que estimula novas preocupações com a preservação dos valores ‘humanos’.”415

O poder econômico estaria se tornando cada vez mais despersonalizado, pelo surgimento de uma “interdependência de alta complexidade” entre instituições governamentais (inclusive a militar), os estabelecimentos científicos e as indústrias.416

Por fim, ao contrário do que ocorria na “sociedade industrial”, onde predominavam os intensos conflitos políticos sobre direitos políticos, sufrágio universal, etc, na era tecnetrônica a questão passaria a ser simplesmente a de assegurar a participação real dos cidadãos em decisões que se tornam cada vez mais complexas para o alcance do cidadão médio, tornando um problema a “alienação política”.417 Ao invés de organizadas basicamente pelos sindicatos e partidos

políticos, como na “era industrial”, as massas agora tenderiam a cair facilmente no alcance de personalidades atraentes capazes de explorar as técnicas de comunicação e de manipulação das emoções. A confiança na televisão criaria um envolvimento mais cosmopolita, embora mais impressionista, nos assuntos globais. O impacto dessas transformações na ideologia seria um ponto bastante explorado por Brzezinski.

414 BRZEZINSKI, Entre duas eras, Op. Cit, p.26. 415 Idem, p.27.

416 Ressalte-se que o uso que Brzezinski faz da expressão “interdependência de alta complexidade”, aqui, é sinônimo do termo que Nye e Keohane utilizaram (“interdependência complexa), porém, mais para se referir à relação entre instituições e esferas dentro de uma sociedade do que para as relações entre as sociedades. Idem, p.27.

417 Note-se que o termo “alienação”, aqui, não se refere ao sentido filosófico, e sim ao sentido mais geral de “afastamento”.