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A escola como agente transmissor de cultura

Capítulo I Contexto conceptual da educação multicultural

2. Culturas e cultura escolar

2.1. Cultura da Escola

2.1.1. A escola como agente transmissor de cultura

A escola é um espaço socializador que através de diferentes agentes (o professor, o grupo de pares), contextos (formais e informais), mecanismos e normas (explicitas e implícitas) cumpre a sua função de transmissão cultural. Neste sentido, as funções da escola como agente transmissor de cultura tem sido objecto de análise desde diversas perspectivas.

Em meados do século XX, a teoria funcionalista constituía o paradigma dominante nas Ciências Sociais. O sociólogo Talcott Parsons, figura proeminente no estudo da escola sociológica americana, atribuía a esta uma dupla função: a de socialização e a de diferenciação social. Segundo esta teoria, a escola é um subsistema social que socializa na medida em que transmite normas e valores que moldam o indivíduo. Constrói os papéis, sociais e profissionais, que desempenhará o indivíduo na vida adulta. Paralelamente, a escola realiza uma função de dotação dos indivíduos na estrutura social através da distribuição de prémios em função do rendimento académico dos alunos. Assim, as diferenças no rendimento determinarão o acesso a diferentes papéis profissionais com status desiguais.

Numa perspectiva funcionalista, a instituição educativa é um simples transmissor de uma cultura definida e produzida exteriormente e que se traduz nos princípios, finalidades e normas que o poder político determina como constituindo o substrato do processo educativo e da aculturação das crianças e dos jovens (Beltrão & Nascimento, 2009).

No final dos anos 60 e princípios da década de 70, coincidindo com a crise em que se encontravam os sistemas educativos, emergiram alternativas teóricas ao funcionalismo encarnadas fundamentalmente nas teorias da Reprodução Cultural, nos Estados Unidos, e no aparecimento da Nova Sociologia da Educação no Reino Unido. As teorias da Reprodução Cultural encontra o seu máximo representante na figura de Pierre Bourdieu, que assinala as relações entre a reprodução cultural e a reprodução social, entendendo

por reprodução o processo através do qual se mantêm ao longo do tempo uma determinada estrutura (Bourdieu & Passeron, 1970): a escola não é uma instituição ideologicamente neutra senão que a sua função é a de reproduzir as relações sociais de produção que perpetuam a desigual divisão do trabalho entre classes sociais e transmitam a ideologia dominante (Bonal, 1993).

A nova sociologia da educação surge como uma alternativa crítica à ideologia da teoria e da prática educativa tradicionais (Giroux, 1992). A sua principal preocupação é questionar a hipótese dominante de que a educação é o principal factor para a consecução de uma ordem social democrática e igualitária. Trata-se de demonstrar como se produz e constrói a lógica do domínio e a opressão dentro do discurso educativo. Antes de aceitar a orientação funcionalista que defende que a escola é o principal mecanismo para a mobilidade social, a nova Sociologia da Educação trata de tornar visível a carga ideológica dessa ideia:

Por isso, sua principal tarefa ideológica e política caracteriza-se por intentar desembrulhar como as escolas reproduzem a lógica do capital através das formas materiais e ideológicas de privilégio e domínio que estruturam as vidas dos alunos procedentes de distintos agrupamentos de classe, género e etnia (Giroux, 1992, p. 63).

Em conclusão, este enfoque desloca o interesse da investigação pelo estudo da influência que a carência cultural familiar tem sobre o fracasso escolar, para a análise do próprio processo educativo, e o tema da contribuição da educação à igualdade de oportunidades das diferentes classes sociais é substituído pela análise das formas de transmissão cultural, especialmente das relações de poder que sobressaem a uma determinada organização e selecção do currículo escola2.

Também no Reino Unido referir-se-á os trabalhos de Basil Bernstein (1990), centrando- se na análise dos processos de reprodução cultural estudando a existência de estruturas e códigos diferentes da linguagem segundo a classe social (as formas linguísticas próprias da cultura escolar, centradas sobretudo no código elaborado podem contribuir à diferenciação das trajectórias escolares do aluno segundo a classe social à que

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. Dentro desta corrente, encontram-se duas posturas diferenciadas: os partidários de uma análise detalhada da vida escolar (aqui encontramos os trabalhos da escola de Manchester, os estudos etnográficos de Martin Hammersley, Peter Woods, Anthony Burgess e as investigações na aula sobre as formas de reprodução do género ou das diferenças étnicas) e os representantes do marxismo etnográfico (Willis, 1990) que situam as ênfases nas limitações que impõe a estrutura sobre a ideologia e a prática docente (Bonal, 1993).

pertencem). Este autor também assinalou que as relações de poder e os princípios de controle que regulam as instituições escolares estruturam e dão conteúdo à transmissão cultural que estas realizam.

As Teorias da Reprodução Cultural também encontram certa reelaboração nos trabalhos de autores como Apple (1986) e Giroux (1992), entre outros, que integram nestas teorias os estudos que ocasionam a análise micro da nova Sociologia da Educação, especialmente os trabalhos do marxismo etnográfico. Utilizam a acepção marxista do conceito de ideologia como falsa consciência e criticam o carácter unidireccional das teorias da reprodução cultural que supõe que os agentes receptores são passivos em presença da imposição ideológica é também um produto das práticas materiais quotidianas:

Desde esta perspectiva, nem a cultura é um simples reflexo da infraestrutura económica, nem a pedagogia é uma técnica de assimilação cultural infalível, nem a escola é simplesmente um espaço para a reprodução social e cultural, nem tão pouco,os professores são simples peões nas mãos das classes dominantes (Besalú & Marqués, 1994, pp. 38-39).

No entanto, na actualidade, as teorias que apontamos até ao momento encontram-se com um novo elemento que devem contemplar na sua análise dos processos de transmissão e reprodução cultural que tem lugar nas instituições escolares. Os crescentes movimentos migratórios aumentaram a diversidade cultural nas escolas. Assim a análise da escola como agente socializador que discrimina ou desfavorece o aluno de uma determinada classe social ou que opera de maneira diferencial segundo seu género, tem que abranger estudos mais elaborados que tenham em conta outra fonte de diversidade, a cultural, que embora relacionada com a socioeconómica, nem sempre apresenta um paralelismo entre eles directamente:

A variável etnia ou raça apresenta em alguns aspectos um importante paralelismo com a variável classe. Na medida em que existe uma elevada correlação entre a pertença a uma minoria étnica e a uma classe social baixa, as manifestações de desigualdade e de discriminação se sobrepõem (…). No entanto, as variáveis classe e raça distanciam-se no momento de considerar a questão dos aspectos culturais na educação (Bonal, 1993, pp. 371-372).

De facto, como assinala Bonal, não é possível extrapolar ainda mais os resultados e experiências educativas dos estudantes de diferentes classes sociais ao estudo dos processos educativos que desenvolve o aluno de minorias culturais na escola. Se deve ter em conta, entre outros elementos, o grau de dominação cultural da escola e do

sistema educativo e as manifestações de conflito cultural que experimentam os alunos pertencentes aos distintos grupos culturais:

Uma vez rejeitada a subordinação das questões culturais às análises de classe, a teoria social radical mais recente analisou as relações de género, raça e etnia como formas de domínio irredutíveis que contam com outras formas culturais dinâmicas paralelas, cada uma delas deve ser estudada como tal e em relação a outras formas de dominação (Giroux 1992, p. 60).

McCarthy (1993) realizou um interessante trabalho ao assinalar as teorias que predominam nas explicações da desigualdade racial na escolarização: a corrente dominante e a radical.

Dentro da corrente dominante aparecem duas ramificações, a conservadora e a liberal, que se distinguem pela tensão entre as explicações biológicas e culturais. Na corrente

dominante conservadora o fracasso escolar das minorias deve-se às características

psicológicas e biológicas inaptas destas. Desde a corrente liberal se prescinde das explicações biológicas das diferenças educativas, assinalando, antes as discrepâncias dos recursos culturais como variável significativa na explicação do fracasso escolar das minorias.

A segunda corrente, a radical ou neomarxista situa as raízes da desigualdade racial nas propriedades estruturais do capitalismo; as escolas seguem a pauta da economia e são um reflexo desta. Em linhas gerais, os autores radicais afirmam que os problemas das diferenças e desigualdades sociais estão firmemente baseados nas relações e estruturas socioeconómicas estabelecidas nas sociedades capitalistas. O debate centra-se na economia e não na escola (Bertrand, 2001). Dentro desta corrente, McCarthy diferencia duas posturas, representadas nas teorias estruturalistas e as culturalistas. As primeiras fazem especial finca-pé no papel que desempenha a escolarização na manutenção e reprodução capitalista do trabalho. As escolas reproduzem ou reflectem a estrutura de classes e o mercado laboral segmentado. Nestas formulações estruturalistas, a desigualdade racial na escolarização conceptualiza-se como um efeito das divisões económicas existentes na sociedade e como subproduto de um conflito mais fundamental entre a classe trabalhadora e seus patrões capitalistas. O que importa para compreender o processo de subordinação dos estudantes da classe trabalhadora e minorias não é o “saber escolar” em si, senão o “currículo oculto”, relações estruturais de domínio e subordinação, em grande medida insconscientes, que se reproduzem nas

práticas pedagógicas dos professores nas suas relações com os jovens. O currículo oculto constitui o mecanismo que serve para reproduzir as normas, valores e tipos de personalidade concretos que precisa o mercado laboral secundário (Leite, 2002).

A crítica a estas teorias é que ao edificar toda a sua avaliação da escolarização num modelo de sociedade de base superestrutural perdem de vista a contribuição específica e autónoma da escola ao carácter da vida social e das relações sociais em geral. Segundo McCarthy passaram por alto uma das principais contribuições dos investigadores liberais: uma maior consciência da importância que possui o prestar atenção ao interior das escolas para examinar o que fazem, na realidade, as instituições educativas nos planos cultural, político e económico. As teorias radicais da reprodução cultural adoptaram, em meados dos anos 70, uma orientação culturalista frente às explicações económicas estuturalistas. Desde este enfoque, algumas das críticas que se realizam aos marxistas ortodoxos da educação são: a) Reduzir todas as actuações da escola e da sociedade à economia; b) Definir a classe social em termos económicos restritos; c) Marginalizar o significado e os efeitos do currículo escolar.

Postula-se a relativa independência dos processos ideológicos e culturais da escola respeitante às infraestruturas da sociedade. A questão crítica que deve levantar-se, segundo McCarthy, sobre o currículo escolar é: de quem procede o saber escolar e a quem interessa servir esse mesmo saber? Segundo o autor, por desgraça estes temas não económicos permanecem num estado de subdesenvolvimento na teoria da reprodução cultural. Perante estas duas posturas, McCarthy (1993), recolhendo e assumindo a relação dialéctica entre estrutura social e práticas humanas, apresenta uma formulação alternativa que trata de evitar a consideração dos “valores culturais” ou das “ estruturas económicas” como a fonte exclusiva ou única da desigualdade racial na educação e aborda a relação raça-educação desde uma perspectiva dialéctica antes que linear:

A corrente dominante e radicais não tem em conta a variabilidade histórica, não examinam o contexto institucional e social. Não tem em conta o vínculo entre as estruturas sociais (económicas, políticas ou ideológicas) e o que fazem os professores e alunos. Os enfoques actuais da desigualdade racial fundamentam-se demasiado em modelos ou explicações lineares e monocausais que não permitem a exploração dos contextos políticos, culturais e económicos que cada grupo racial se encontra com os demais na escola e na vida social (McCarthy, 1993. p. 22). Numa perspectiva estruturalista, a cultura escolar é produzida pela forma escolar de educação, principalmente através da modelização das suas formas e estruturas, seja o

plano de estudos, as disciplinas, o modo de organização pedagógica, os meios auxiliares de ensino.

Por fim, a perspectiva interaccionista, em que a cultura escolar é a cultura organizacional da escola; considera-se, portanto, cada escola em particular. Pode falar- se, assim, na existência de uma cultura própria, no âmbito da Escola e do Sistema Educativo, que reflecte todo um conjunto de práticas, valores e crenças, partilhados por todos aqueles que interagem no seu âmbito. Trata-se porém, de uma cultura que pode não ser assumida por todos, já que tende a uma homogeneização, contemplando e referindo-se ao todo e não às realidades locais específicas. Como refere Guerra Santos:

os mitos sobre os quais se articula a escola referem-se à bondade dos padrões culturais; à eficácia causal do ensino; à igualdade de oportunidades à homogeneização do comportamento; à uniformidade das regras; ao agrupamento estável; à rotinização da actividade; à transmissão cultural; à eficácia da obediência; e ao valor da autoridade (2002, p. 187).