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“A escola está transformando minha vida 100%”

Apesar de ser cronologicamente a mais velha dentre as colaboradoras, seu fenótipo não revela este fato.

A perda da mãe aos 18 meses de vida constitui o primeiro indício de uma infância sofrida. Uma infância sem carinho de ninguém. O período em que o pai se manteve viúvo foi relatado como tendo sido a fase mais amena de sua infância por coincidir com a época em que ele levava os filhos para passear e havia toda uma rede de cuidados mútuos que envolvia os irmãos.

A ausência da mãe, substituída seis anos depois por uma “madrasta cruel”50 responsabilizada pela não-escolarização de Maria Sousa e seus irmãos, é apontada como determinante do futuro, não menos ameno, que nossa colaboradora enfrentou:

50

A figura da madrasta como sinônimo da maldade e como responsável por ela não ter estudado apareceu em diversos momentos das narrativas de Maria Sousa. O ponto culminante foi o detalhado relato da vingança empreendida, narrado no décimo segundo encontro.

Foto 13 25/10/2006

Maria Sousa preparando-se para percorrer o Lago dos Patos com pedalinho, durante nossa terceira atividade externa.

Meu pai tinha vontade de botar os filhos na escola, só que não tinha escola por lá. (...) Era tudo particular. E era muito longe, tinha que ir a cavalo. Meu pai sempre falava em pôr nós para estudar em algum lugar e a mulher dele falava: “vai gastar dinheiro para estudar essas crianças para quê? Para escrever carta pra namorado?” Não adiantou nada porque eu casei do mesmo jeito... O dinheiro dele ia todo na mão dela. O que ela fazia? Ela gastava o dinheiro... ela fazia o que queria e nós ficávamos a ver navio. Se minha mãe fosse viva, a história seria diferente! Ela não sabia quase nada, mas era batalhadora e aprendia fácil! (...) Eu tenho certeza que, se minha mãe fosse viva, eu não era quem eu sou agora. Não era... Eu teria profissão. Porque ela ia me ensinar. Ela ia me dar todo o apoio para aprender. Porque meu pai deu apoio para ela aprender. Ela ia me dar também.

Sendo assim, Maria Sousa chegou à idade adulta tendo freqüentado a escola apenas por duas semanas. Ao contrário das colegas que vivenciaram o casamento como cerceamento de liberdade, foi justamente ao casar-se que ela se viu livre da opressão imposta pelos familiares com quem convivera até então:

Desde que eu casei, eu me senti livre porque meu marido não me prendia em nada. (...) Eu falava que se ele fosse homem de me prender dentro de casa: ou eu já tinha morrido ou eu já tinha largado dele. Porque eu não ia agüentar. Eu já fui criada presa. Casar e viver presa também? Não tem condições. Não tem cristo que agüenta. Mas graças a Deus, não. Ele nunca me prendeu dentro de casa.

No entanto, há de se compreender uma série de fatores que geram uma ausência de correlação entre sentir-se livre e resolver estudar, correlação esta percebida nas demais histórias de vida aqui expostas, com exceção do caso de Almeida.

Após anos sentindo-se como a “Maria Borralheira”, Maria Sousa põe fim à dominação imposta pela madrasta dando-lhe uma surra que resulta na sua saída de casa na companhia do único irmão, do total de três filhos, que ainda morava com o pai (o outro já havia saído de casa também por causa de desavenças com a madrasta). Porém, a vida ao lado do irmão defensor não correspondeu a um ideal de liberdade: “o tempo em que vivi com meu irmão também fui muito presa. Ele morria de ciúmes de mim! Ave! Não sei como ele deixou eu trabalhar, porque ele não deixava eu sair de casa sozinha de jeito nenhum.” Numa avaliação geral de sua infância e adolescência, Maria Sousa conclui: “Eu fui criada no meio dos carrascos.”

No seu caso, portanto, o casamento foi redentor. A menção ao marido, em diversos momentos de sua narrativa, indicou um homem bom e trabalhador, um companheiro cujo falecimento gerou sofrimento e saudade. A narradora fez questão de esclarecer que não foi o marido que impediu os estudos, mas o envolvimento com o cuidado da família que cresceu rapidamente:

A vida era muito dura no serviço. Criar onze filhos não é brincadeira! A gente trabalhava dia e noite. Então, a gente não tinha como passear, como se divertir. Mas, enquanto eu não tinha filho, nossa! Sábado e domingo, não parava dentro de casa, ia para a cachoeira, ia passear... depois que começou a chegar os filhos, acabou um pouco a mordomia. (...) Eu não tinha condições [de estudar] porque os filhos foram chegando e também não tinha escola para adulto como agora tem para todo lado. Antigamente não tinha. E com os filhos pequenos... Minha menina ainda era problemática e eu não saía por causa dela. Então, muitas coisas prendiam a gente. Mas agora não, graças a Deus, meus filhos estão todos casados. Cada um tem sua vida. Agora se eu não for estudar, se eu não for fazer alguma coisa por mim, é porque eu não quero mesmo. Aí, já é diferente.

Mesmo apresentando a obrigação de cuidar dos filhos pequenos como o impedimento para freqüentar uma escola, Maria Sousa só resolveu estudar muito tempo depois de ter ficado viúva há treze anos. Conta que, na época, havia oportunidade para adultos apenas em uma escola na qual ela chegou a assistir a algumas aulas, mas não ficou por muito tempo: “eu estava muito sem jeito de estudar. Tinha perdido minha filha, meu marido. Eu chegava lá e só chorava. Então, eu desisti.”

Passados alguns anos, surgiu o primeiro núcleo do MOVA-Guarulhos em seu bairro e o presidente da associação responsável pelo funcionamento da sala de aula convidou-a para estudar. O convite não foi aceito prontamente. Na época, ela cuidava de uma vizinha doente e não tinha tempo para estudar. Porém, por muita insistência da educadora popular, permitiu que seu nome fosse inserido na lista de alunos para que ela fosse efetivamente para a sala de aula quando se sentisse mais à vontade. Meses depois, o vazio provocado pela morte da vizinha abriu caminho para que Maria Sousa superasse a indecisão inicial e procurasse a sala de aula na qual seu nome ainda constava como aluna. A experiência, no entanto, teve pouca duração:

Começou com bastante gente e de repente a turma sumiu, principalmente depois que a menina que dava aula para nós saiu e veio outra. Essa outra não tinha condições de a gente acompanhar. A gente já não sabe ler, não sabe nada e ela passava lição, ela enchia a lousa de lição para a gente do corpo humano. Lição de segundo ano, terceiro ano. Como a gente ia acompanhar? Muitos alunos não acompanhavam. Alguns desistiram: os que iam só por farra mesmo. Iam lá só para falar de homem, coisa que não deve. Não iam para estudar, iam só para conversar. Eu fiquei até a sala fechar.

Para voltar a estudar, foi necessário o surgimento de outro convite. Desta vez, feito por uma colega que também havia freqüentado o núcleo que fora fechado. O fato de não estar trabalhando e a comodidade do horário matutino contribuíram para a rápida aceitação do convite.

Mesmo freqüentando o núcleo de alfabetização há mais de um ano, Maria Sousa ainda não se considera alfabetizada. Ela reconhece os avanços, sobretudo no que diz respeito à identificação do teor do conteúdo de folhetos publicitários, e avalia rigorosamente seu letramento:

Dá para ver que estudar fez grandes mudanças na minha vida, mas eu ainda acho que não sou alfabetizada. Eu entendo que alfabetizado é quando sabe ler e escrever. Eu não sei ler nada ainda. Escrever eu só sei copiar. E você sabe que escrever e copiar não é a mesma coisa: copiar a gente copia qualquer outra coisa, mas escrever a gente pega e escreve sozinha. Não precisa ficar copiando de nada. Eu sempre copiei. O difícil é ler e escrever!

Assim como suas colegas, a percepção dos avanços alcançados por meio dos estudos aponta para algo que extrapola a alfabetização propriamente dita:

Eu consegui superar poucas dificuldades de leitura e escrita: ler eu não consegui ainda e escrever tenho que copiar. Agora uma das dificuldades maiores que eu tinha também era me entrosar no meio das pessoas. Eu era muito envergonhada, não conversava com ninguém. Até hoje eu sou de pouca conversa. Mas, já melhorei bastante!

Vemos, então, no caso de Maria Sousa, que o favorecimento da comunicação oral é avaliado como o maior avanço e base de motivação, tal como veremos adiante na seção dedicada à análise dos pontos mais significativos, extraídos das histórias de vida aqui compartilhadas no que se refere aos principais aspectos evidenciados pela autobiografia educativa.