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4 Por que estamos aqu

4.7 De onde vem o incentivo

Percebemos que a família, em alguns casos, pode contribuir negativamente para o processo de (re)construção identitária. No contexto da narração sobre aborrecimentos com familiares, Daura desabafou sua indignação perante os comentários, emitidos por filhos e netos, de que ela não deveria mais votar. Em seu ponto de vista, seria um absurdo alguém deixar de votar ainda estando apto a se locomover e a ter discernimento de quem merece ou não ser eleito. Por isso, fez questão de votar sempre. Comentou também como se chateia quando algum filho insinua que ela não deveria mais estar estudando por estar “fora da idade”, chegando ao deboche: “Pra que a senhora está estudando? Está achando que vai ser professora?” Ela humildemente respondia apenas que está estudando “porque quero aprender”.

Suas colegas também narraram episódios nos quais foram ridicularizadas por pessoas da família pelo fato de estarem freqüentando uma sala de aula. No entanto, as atitudes de apoio parecem ocorrer com uma regularidade maior do que as contrárias.

De certa forma, a falta de apoio familiar é compreendida no bojo de uma questão maior: a percepção de que vivemos em um tempo no qual as relações são mais fluidas e as pessoas não se comprometem tanto quanto outrora (BAUMAN, 1999, 2000, 2001, 2003). Atentemos para a análise de Maria Oliveira sobre o modo como as pessoas expressam o afeto atualmente:

Hoje em dia o carinho não é aquele carinho de antigamente. Antigamente tinha mais... acho que pela falta de tempo, né? Aqui em São Paulo tem muita correria, né? Mesmo que as pessoas querem dar atenção para uma pessoa, conversar, dar carinho, a pessoa já não pode. Está correndo para ir para a escola, para o emprego, para a faculdade. Então, já não tem mais aquele tempo de ter atenção e de ter carinho, né? Então, eu acho que antigamente era bem melhor. Hoje em dia, as coisas são diferentes, não é todo mundo que tem carinho, não é todo mundo que tem atenção. Eu vejo muito desamor... é diferente de antigamente...

Trata-se de uma análise simples e objetiva da modernidade líquida que nossas colaboradoras, que nunca sequer ouviram falar em Zygmunt Bauman, fazem com a maior lucidez. Pensando no espaço escolar como um possível ambiente onde as pessoas se relacionam com atitudes de carinho, todas as senhoras manifestaram o sentimento de ser muito cuidadas pela educadora e pelos colegas de classe e a isso atrelaram o fato de ainda permanecer no MOVA-Guarulhos: “se a gente sentisse que não tinha carinho aqui, que a gente não é bem tratada, já teria todo mundo ido embora”, disse Daura uma vez e recebeu a anuência de todo o grupo que revelou ser tão apegado à educadora ao ponto de pensar em desistir de estudar no caso de a mesma abandonar a turma de alfabetização58. Afinal, mais que uma alfabetizadora, a educadora popular, responsável pelo núcleo em que os sujeitos desta pesquisa estudavam em 2006, era alguém que oferecia diversos tipos de auxílio, dentre os quais o grupo destacava o fato de ela marcar consulta em ortopedista para os alunos, de modo que já houve casos de pessoas que pensaram em estudar em sua sala só por causa dessa facilidade.

Pareceu-nos incontestável que a vida em comunidade é algo de grande importância na vida dos educandos do MOVA-Guarulhos e, nesse sentido, Daura costumeiramente fazia discursos de exaltação desta valiosa dimensão existencial. Destacamos um breve trecho:

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A saída da educadora do grupo ocorreu, inesperadamente no início de 2007, devido a uma boa oferta de emprego que inviabilizava a continuidade do seu trabalho voluntário. Em 07/02/2007, a pesquisadora visitou o grupo para observar o impacto da situação. Apenas três colaboradoras estavam na sala de aula. Elas informaram que não pretendiam desistir, mas que estavam sentindo muita diferença porque a nova educadora não incentivava a leitura tanto quanto a anterior. Como forma de apoio ao grupo, os encontros de histórias de vida em formação foram retomados com periodicidade quinzenal, em março de 2007, mesmo não havendo mais a necessidade de obtenção de dados para esta pesquisa. Na conjuntura posta, percebemos que a coleta de dados, na perspectiva de pesquisa-formação, poderia ter continuidade até o término desta pesquisa por dois motivos. Em primeiro lugar, por uma questão humanitária, ou seja, como forma de apoio para a formação de um grupo de pessoas que tanto contribuíram para com a realização deste trabalho e que se encontravam, aparentemente, prestes a abandonar os estudos. Em segundo lugar, vislumbramos a possibilidade de adiantarmos a coleta de dados para uma possível futura pesquisa em nível de Doutorado, tendo em vista que ainda há muito a ser estudado em relação à alfabetização de pessoas idosas.

O mundo passa e a gente fica. Sabe qual a melhor coisa pra gente saber se o mundo existe? Você viver ativa, você ter amiga, você ter tudo? É você se colocar numa comunidade. Acaba tudo essa tristeza, essa coisa que a gente tem. Isso acaba! Porque quando a gente entra num trabalho da comunidade, aquilo a gente nasce de novo! É como o Nicodemos falou, o anjo veio, chegou e falou pra ele assim: ‘Nasça de novo! Para você viver, você tem que nascer de novo!’ Ele era um senhor de idade e ele ficou pensando como ele ia nascer de novo. Se ele já era velho, ele ia entrar no ventre da mãe dele? Não. Não é entrar no ventre da mãe pra você nascer de novo. É você se entrosar com os outros numa comunidade, você vai nascer! Se você vive isolado, você vive uma vida de tristeza. Você não sabe que existe nada!

Observamos que Édina e Maria Oliveira freqüentam atividades oferecidas por uma associação de apoio à “Terceira Idade” e que a primeira admitiu sua participação na Igreja como uma maneira de “ser menos bicho do mato”. A convivência em comunidade fez com que conhecesse muita gente e participasse de eventos, após o falecimento do seu esposo.

As demais não informaram sobre suas atividades comunitárias além da participação no MOVA-Guarulhos. Depreendemos desse aspecto que a freqüência ao núcleo de alfabetização tem se constituído, para a maioria dos sujeitos desta pesquisa, no principal meio de interação social. Dito de outro modo, a alteração da rotina promovida pela participação no núcleo de alfabetização trouxe para a vida dessas pessoas uma nova dimensão social na medida em que passaram a ter acesso a condições de convívio com outras pessoas e com bens culturais, os quais não teriam de outro modo.

Sobretudo no caso dos sujeitos desta pesquisa, a abertura de horizontes de interação social foi alargada paulatinamente. Começando pelo diferencial de ter “duas professoras”59 e passando por todas as situações proporcionadas ao grupo pelos desdobramentos da pesquisa, principalmente aqueles que envolvem reconhecimento interno e externo.

No âmbito da própria comunidade que abriga o núcleo de alfabetização, alguns membros notabilizaram o fato de a pesquisa ter se desenvolvido com este grupo em detrimento de outros, o que trouxe um significativo sentimento, para a educadora sobretudo, de reconhecimento do seu trabalho. Na sala de aula, os sujeitos da pesquisa também foram alvo de um olhar diferenciado, por parte dos colegas, pelo fato de se ausentarem uma vez por semana durante mais de metade da aula para participar do grupo de pesquisa. As senhoras se sentiam especiais por terem alguém que queriam ouvi-las, alguém que se interessava por suas histórias e que, além disso, ainda as ajudava no aprendizado da leitura e da escrita.

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Apesar de procurarmos nos posicionar enquanto pesquisadora-formadora e tentar esclarecer, o mais possível, o caráter do nosso trabalho, devemos admitir que fomos vistas, na maior parte do tempo, como “uma professora a mais”. Nas palavras de Almeida: “Estudar com Sebastiana e você, ter duas professoras, sou muito importante,

né? Para quem não sabia nada, e não tinha nenhuma, agora ter duas! Eu acho que é muito importante e aprendi alguma coisa também.”

Além da comunidade, elas passaram a se tornar conhecidas por: educadores populares que participavam de processos formativos por nós coordenados e ouviam nossos comentários sobre o trabalho realizado com o grupo pesquisado; participantes de eventos60 nos quais expusemos o desenvolvimento da pesquisa; integrantes do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão Acolhendo, com quem discutimos diversos aspectos deste trabalho; pessoas que acessavam o site do Grupo Acolhendo e tomavam conhecimento do projeto em andamento; leitores do periódico Jornal Maturidades, no qual publicamos artigo sobre a situação de pessoas idosas que se inserem em movimentos de educação popular; enfim, conforme as colaboradoras eram informadas sobre as formas de divulgação do trabalho e das impressões que nossos interlocutores atestavam sobre o mesmo, elas percebiam uma espécie de reconhecimento externo, por parte de pessoas que elas sequer conheciam, e isso as deixavam orgulhosas e animadas a prosseguir participando das atividades de pesquisa, de formação e de ensino.

Destacamos, nesse contexto, um dos encontros no qual trabalhamos em torno da idéia do uso de metáforas, com figuras de animais, para explicar como avaliamos nossas vidas. Quase todas as participantes escolheram um pássaro para representar a fase atual. Daura escolheu o porco para representar sua vida até a morte do marido: presa num chiqueiro, sendo “bem alimentada para engordar”. Depois da morte do esposo, assumiu as características do passarinho, metamorfose possibilitada pela participação na Igreja.

Maria Sousa se comparou a um pássaro preso e posteriormente solto, mas não indicou o momento em que o animal teria se soltado61. Lembrou dos sacrifícios para criar os onze filhos e da alegria e dificuldade de reuni-los atualmente. Almeida, por sua vez, percebeu sua própria vida de maneira inversa: era um passarinho solto quando moça e agora se considera presa, sendo o casamento a sua gaiola. Apesar disso, não sonha com mudanças, sente-se bem acomodada na situação atual. A única pessoa que escolheu um animal diferente foi Maria Chacon que indicou o leão como representante de toda a sua vida, desde a infância, porque

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Durante o desenvolvimento da pesquisa, apresentamos resultados parciais nos seguintes eventos: III Semana de Educação da FEUSP, IV Semana de Educação de Guarulhos, Fórum Mundial de Educação Nova Iguaçu, IV Seminário Estadual de Educação de Jovens e Adultos, II Congresso Internacional de Pesquisa (auto)biográfica (CIPA), Plenária do Fórum Estadual de Educação de Jovens e Adultos, II Simpósio Internacional de Educação: Pesquisas e Políticas, VIII Encontro de Pesquisadores em Educação da Região Sudeste, Semana da Alfabetização do MOVA São Paulo/2007, Fórum Mundial de Educação Alto Tietê e VI Semana de Educação de Guarulhos. Nos dois últimos eventos, nossas colaboradoras estiveram presentes e encantaram o público com relatos de suas histórias de vida.

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Até o final de 2006, Maria Sousa não chegou a explicitar qual teria sido o seu momento-charneira. Apesar de, em alguns momentos, dar a entender que a entrada no núcleo de alfabetização tenha sido algo transformador de sua vida.

sempre gostou desse animal pela sua beleza, poder e posição de destaque em comparação com os demais animais.

No encontro em que as narrativas foram conduzidas pela discussão de momentos decisivos que marcaram a vida de cada colaboradora, pudemos compreender, mais uma vez, que a participação no MOVA-Guarulhos foi e tem sido algo bastante significativo na vida deste grupo.

Maria Oliveira afirmou ter participado de um retiro, promovido pela comunidade, que “abriu sua mente” para algumas mudanças necessárias em sua vida. Não explicitou quais seriam tais mudanças, apenas disse que ainda está tentando realizá-las. Maria Chacon apontou o primeiro ano no MOVA-Guarulhos como algo transformador ao gerar a “obrigação de sair todo dia”. Para Édina, voltar a estudar promoveu uma grande mudança na sua história de vida, especialmente para a superação de sua timidez. Almeida teve o conjunto de sua narrativa permeada com as mudanças promovidas após sua ousadia de se tornar estudante. Maria Sousa, por sua vez, narrou vários fatos que mudaram sua rotina: “A família foi indo embora aos poucos. Casamentos de filhos, mortes... Eu sempre vivia presa. Vivia que nem muda, agora virei matraca. Foi a escola que me animou.”

Vemos, assim, que o conjunto das narrativas a nós confiadas oferecem um rico e denso apanhado de informações que nos possibilitam a reflexão sobre variados aspectos diretamente ligados à alfabetização de adultos. A busca da compreensão do objeto que o presente trabalho se preocupou em analisar constitui a tarefa da parte seguinte, na qual apresentamos nossas considerações acerca da motivação que conduz e mantém indivíduos idosos em um núcleo de alfabetização do MOVA-Guarulhos.