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2 Como abordamos: caminhos e fontes

2.1.1 Contribuições etnográficas

Ao definir o caminho autobiográfico como a maneira mais adequada de conduzir a presente pesquisa, firmamos nossa opção pela realização de um trabalho pautado em uma metodologia de pesquisa e de formação baseada na (re)construção de significados ao longo da vida. Seu desenvolvimento implicava em um contato efetivo com os sujeitos, contato este que, em alguns momentos, pode revestir-se de algumas características dos trabalhos etnográficos.

A etnografia, metodologia de pesquisa geralmente vinculada a estudos antropológicos, tem como objetivo realizar uma descrição densa de uma determinada cultura observada. Tornou-se comum na área da Educação atribuir caráter etnográfico a estudos nos quais o pesquisador entra em dilatado contato com o grupo que se quer estudar e descrever. No entanto, não consideramos este trabalho como um empreendimento essencialmente etnográfico devido ao fato de nosso contato não ter sido suficientemente prolongado, tal como as pesquisas etnográficas de grande fôlego se constituíram. E também por primar por procedimentos nem sempre associados à etnografia.

Em sua dissertação de mestrado, Luzia Pereira elucidou como algumas características da etnografia podem ser percebidas em trabalhos como o nosso, ao apontar que podemos ser:

o condutor e o responsável pela interpretação daquilo que consegue captar na visita ao outro. Será necessário que o observador se coloque como um estranho a essa cultura que pretende descrever e, ao mesmo tempo, tente compreender, do ponto de vista do outro: a língua, a religião, a composição étnica, os costumes, enfim, a cultura do outro pelo outro. Recordemos, porém, que não estamos diante de uma comunidade, tribo ou civilização distante da nossa, estamos em nosso próprio espaço geográfico. O estranhamento é apenas um posicionamento diante do objeto e dos sujeitos pesquisados; é preciso estudar tudo aquilo que sempre pareceu corriqueiro. Na etnografia escolar, por não nos distanciarmos do local pesquisado, precisamos estar atentos a esta técnica de olhar o velho como se fora novo, mudando nosso ponto de vista habitual (PEREIRA, 2007, p. 79).

Na tentativa de refinar esse “novo olhar”, buscamos orientação em alguns autores que inauguraram este tipo de prática e encontramos valiosas contribuições na obra do antropólogo Evans-Pritchard (1978). Ao fim de um minucioso trabalho etnográfico sobre a religiosidade dos Azande (uma etnia africana), Evans-Pritchard elaborou um rol de cuidados que um pesquisador deveria ter, desde o trabalho de campo até a divulgação dos resultados da pesquisa. Mesmo sem a pretensão de realizar uma pesquisa etnográfica, procuramos seguir

algumas de suas sugestões por ponderar a adequação das mesmas para grande parte das ações desenvolvidas em pesquisas qualitativas.

Primeiramente, o autor salienta que “não se pode ter as respostas se não se sabe quais são as perguntas. É indispensável saber o que é teoricamente significativo observar, pois os fatos em si não têm significado” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 299). Esse conselho foi fundamental para a organização do nosso olhar sobre os fatos revelados durante nossa atuação em campo.

Em segundo lugar, ele nos ensinou também que “aquilo que se traz de um estudo de campo depende muito do que se leva para ele” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 300), ou seja, se o pesquisador vai a campo sem idéias pré-concebidas sobre daquilo que se quer estudar, ele praticamente não saberá o que se observar. Tais idéias não devem ser pautadas no senso comum, elas devem ser fruto de cuidadosa sistematização teórica daquilo que se deseja observar no mundo concreto.

Uma terceira contribuição deste autor alertou-nos para o seguinte: “a batalha decisiva não se trava no campo; mas depois que se volta. Qualquer um pode trazer um fato novo; o problema é trazer uma idéia nova” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 302). O momento de sistematização do conteúdo trazido do campo foi marcado pelas dificuldades impostas por esta batalha decisiva e não pudemos deixar de nos sentir desafiadas pelo desejo de encontrar uma idéia nova no mar de aparente obviedade constituído pelo total de dados obtidos.

Como quarta sugestão pertinente, destacamos: “não se pode ter uma conversa útil ou inteligente com as pessoas sobre algo que elas tomam como auto-evidente, ou seja, se damos a impressão de considerar a crença dos interlocutores como ilusão ou delírio. Isso prejudica o entendimento mútuo e a simpatia” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 303). Talvez esse tenha sido um dos conselhos mais valiosos, pois forçou nossa postura agnóstica a se tornar condescendente diante da profunda religiosidade católica marcante no grupo estudado. Procuramos, durante toda a convivência com o grupo, respeitar profundamente suas crenças e valores. Outrossim, primamos pela observação atenta da importância do aspecto religioso nas histórias de vida.

Por fim, mantivemo-nos alertas quanto a outro tipo de problema destacado pelo antropólogo até então mencionado:

Pode haver temas sigilosos, a respeito dos quais um informante não deseje falar. Caso isso ocorra, ele pode distorcer os fatos e evitar que uma linha investigativa seja seguida. Para um bom observador uma mentira pode ser mais reveladora que uma verdade, pois se ele desconfia ou sabe que está sendo enganado, pergunta-se qual o motivo disso e, assim, pode alcançar profundezas ocultas (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 307).

Salientamos, assim, que pressupor uma sinceridade inerente ao trabalho autobiográfico corresponde a desconsiderar as incontáveis veredas pelas quais as histórias de vida em formação percorrem até tomar uma forma pública (SILVA, no prelo). Por isso, esmeramo-nos por manter uma observação apurada no sentido de perceber os sentidos implícitos entre aquilo que se demonstra, por meio de atos, e aquilo que se afirma, por meio de palavras.

Com todos esses cuidados em voga, acercamo-nos de estudos sobre a autobiografia