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A escolha quanto ao tribunal analisado: o CARF

3 A UTILIZAÇÃO DE EMPRESA VEÍCULO NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO,

4.1. Delimitação do Escopo

4.1.2. A escolha quanto ao tribunal analisado: o CARF

O presente estudo analisará apenas acórdãos proferidos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, CARF. Tal órgão é vinculado ao Ministério da Economia (antigo Ministério da Fazenda), tendo sido criado através da Lei nº 11.941 de 2009 e tem como principal função a revisão dos autos de infração lavrados pela própria Receita Federal do Brasil, também ligada ao atual Ministério da Economia. Tal revisão é realizada através do julgamento, em grau recursal, de autuações fiscais lavradas pela Receita Federal contra contribuintes e, dessa maneira, o CARF tem a possibilidade de reduzir ou cancelar o montante cobrado em lançamentos tributários. Naturalmente, tais lançamentos apenas dizem respeito aos tributos administrados pela própria Receita Federal, que são aqueles de competência da União, conforme previsão nos artigos 153 e 154 da Constituição Federal de 1988. Antes da Lei nº 11.941/2009, a mesma função era realizada pelo hoje extinto Conselho de Contribuintes. A estrutura do Conselho é regulada pelo Regimento Interno do CARF (“RICARF”), introduzido pela Portaria MF nº 343/2015 e modificado pela Portaria MF nº 39/2016, Portaria MF nº 152/2016, Portaria MF nº 169/2016, Portaria MF nº 329/2017 e a Portaria MF nº 153/2018.

Ao que interessa ao presente estudo e conforme o RICARF, a estrutura do CARF pode ser resumida como tendo duas instâncias de julgamento, sendo uma delas composta pelas chamadas “câmaras baixas” e a outra sendo a Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”). Além dessas duas instâncias, o processo administrativo fiscal, regulado dentre outras disposições pelo Decreto nº 70.235/1972, prevê a existência de uma instância inferior às do CARF, a cargo das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (“DRJ”), que são reguladas pela Portaria MF nº 341/2011.

Dessa maneira, o contribuinte que tem lavrado contra si um auto de infração pode impugná- lo e, sendo a atuação realizada pela Receita Federal, terá sua impugnação julgada em primeira instância por alguma DRJ. É só na hipótese de ser o acórdão da DRJ objeto de recurso, seja pelo contribuinte, através do recurso voluntário, ou pela Fazenda Nacional, através do recurso de ofício, que o lançamento fiscal será remetido ao CARF, sendo esse responsável pela revisão do lançamento em segunda instância (câmaras baixas) e terceira instância (CSRF).

A segunda instância de julgamento é composta por três seções, sendo cada uma delas compostas por quatro câmaras que podem dividir-se em até duas turmas de julgamento. Na hipótese de o contribuinte (ou mesmo da Fazenda Nacional) ter o seu recurso julgado por uma câmara baixa

com entendimento divergente de outro entendimento já proferido por outra câmara baixa do CARF, é possível interpor novo recurso à instância superior do Conselho, a Câmara Superior de Recursos Fiscais (“CSRF”), o que pode ser realizado por meio do recurso especial, nos termos do artigo 67 do RICARF. Da mesma maneira, o recurso especial pode ser interposto na hipótese de uma decisão proferida por uma das câmaras baixas aplicar entendimento diverso de decisão proferida pela própria CSRF. Dessa forma, o lançamento pode ser submetido a uma terceira apreciação, agora por parte da CSRF, a qual também é subdividida em turmas.

A CSRF, pois, tem enorme importância para os contribuintes e para a sociedade como um todo, uma vez que realiza a função de uniformizar a jurisprudência do Conselho, conferindo maior segurança jurídica ao sistema tributário nacional e dando maior concretude à previsão constitucional da ampla defesa e contraditório, conforme a previsão contida no art. 5º, LV da Constituição Federal de 1988 (“CF/88”).

Ilustração: NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. 3ª ed. São Paulo: Dialética. 2010. p. 24.

Cada uma das turmas de julgamento é composta por oito conselheiros, sendo quatro desses representantes da Fazenda Nacional e os outros quatro representantes dos contribuintes, havendo, portanto, uma composição paritária no Conselho, conforme previsão do art. 23 do RICARF. Ainda, em respeito à previsão do art. 12 do RICARF, a presidência das seções e das câmaras será sempre

exercida por conselheiro representante da Fazenda Nacional. Assim, um recurso pode receber quatro votos favoráveis e quatro votos desfavoráveis, configurando um empate. Nesta situação, caberá sempre ao presidente das turmas proferir o voto de qualidade, uma vez que o seu voto desempatará o julgamento48.

Conforme se discutirá mais adiante, muitos enxergam no voto de qualidade do CARF uma violação à imparcialidade do Conselho e a diversas garantias constitucionais, tendo em vista que, havendo um empate de votos, os julgamentos tenderão a ser decididos favoravelmente à União, uma vez que são decididos pelos presidentes das turmas, que são sempre representantes da Fazenda Nacional.

No que diz respeito à competência dos órgãos do CARF, compete à 1ª Seção a revisão dos autos de infração lavrados para a cobrança de IRPJ ou de CSL. Além disso, é a 1ª Turma da CSRF que está incumbida da possível revisão dos julgados da 1ª Seção. Dessa maneira, o presente estudo apenas se debruçará sobre julgados da 1ª Seção e da 1ª Turma da CSRF, uma vez que são apenas estas as responsáveis por julgarem autos de infração que envolvam a dedutibilidade do ágio na apuração do IRPJ e da CSL.

A escolha de acórdãos do CARF como objeto do presente estudo se justifica por diversas razões. A primeira delas é quantitativa e reside no fato de que o CARF oferece um número muito maior de acórdãos sobre a dedutibilidade de ágio e uso das empresas-veículo do que qualquer corte judicial no Brasil, o que possibilita a análise de uma jurisprudência mais consolidada e menos casuística.

É inerente ao processo administrativo fiscal a sua função de resolver possíveis objeções que existam com relação ao lançamento tributário efetuado pelas autoridades fiscais, fazendo com que elas não precisem ser submetidas à apreciação do Poder Judiciário ou que o sejam de modo que a análise seja realizada de maneira menos detida aos aspectos factuais e mais ligada a aspectos de prerrogativa exclusiva do Poder Judiciário, tal como é o julgamento com base em interpretação teleológica e a análise à luz de princípios constitucionais49. O processo administrativo tributário

48 Art. 54 do Regimento Interno do CARF. 49 Súmula CARF nº 2.

consiste na própria administração pública realizando o controle de seus atos50, em respeito ao art. 5º, XXXIV, “a” da CF/88. O contencioso administrativo, assim, reduz consideravelmente o peso dos litígios em matéria tributária sobre o já congestionado Poder Judiciário.

Existem, ainda, outras relevantes razões pelas quais o questionamento de um auto de infração em esfera administrativa pode se fazer vantajosa, se comparada ao mesmo questionamento diante do Poder Judiciário. O processo administrativo fiscal permite que o contribuinte possa impugnar o lançamento sem que tenha que correr o risco de ser condenado ao pagamento de honorários sucumbenciais à Fazenda Pública em caso de derrota no litígio, honorários esses que podem variar de um a vinte por cento do valor da causa, que será o próprio valor da autuação, conforme previsão no art. 85, §3º do Código de Processo Civil de 2015 (“NCPC/15”).

Sabendo-se que os valores envolvidos nas discussões de ágio podem chegar à ordem de bilhões de reais, a assunção do risco de ser condenado ao pagamento de honorários sucumbenciais ao submeter um litígio à análise do Poder Judiciário, que se soma ao risco do pagamento do próprio tributo acrescido de multa e juros, precisa ser uma decisão bastante estudada pelos contribuintes. Além disso, a discussão na esfera judicial pode fazer com que um contribuinte seja compelido a garantir o débito em juízo, o que representa um ônus financeiro ainda maior àquele que busca, pela via judicial, questionar a exação contra si imposta. Especialmente nos casos de cobranças bilionárias ou de contribuintes com poucos recursos disponíveis, o oferecimento de garantia em um processo judicial pode vir a tornar a apreciação da questão pelo Poder Judiciário excessivamente onerosa ou até inviável para a realidade financeira de muitas empresas.

Dessa maneira, a relevância da jurisprudência do CARF como norteador para planejamentos tributários no Brasil é inquestionável, inclusive nos casos de operações societárias que envolvam ágio. Conforme bom apontamento de Luís Eduardo Schoueri, o CARF acaba por, lamentavelmente, tomar o espaço constitucionalmente reservado ao Poder Legislativo, uma vez que insere institutos estrangeiros e não positivados no ordenamento jurídico nacional, tal como o instituto do propósito negocial, pela via jurisprudencial em nosso Direito51.

50 NEDER, Marcos Vinicius; LÓPEZ, Maria Teresa. Processo Administrativo Fiscal Federal Comentado. 3ª ed. São

Paulo: Dialética. 2010. p. 24.

51 SCHOUERI, Luís Eduardo. O Refis e a desjudicialização do planejamento tributário. In: Revista Dialética de Direito

O grande ônus que um contribuinte tem ao enfrentar cobranças tributárias vultuosas no Poder Judiciário, tal como é a necessidade de oferecimento de garantias, somado ao grande número de programas de parcelamento que são oferecidos quase que rotineiramente pelo Poder Público faz com que a jurisprudência sobre o tema não consiga ser bem sedimentada na esfera judicial, uma vez que um grande número de contribuintes opta por realizar o pagamento dos valores glosados quando da derrota em um processo administrativo, ao invés de se aventurarem em discussões judiciais respaldadas por poucos precedentes.

No aspecto qualitativo, a escolha da jurisprudência do CARF como objeto de análise também se revela a melhor escolha. Sabe-se que a apuração do IRPJ e da CSL toma como base a contabilidade para a formação da sua base de cálculo, sendo inúmeras as interfaces entre a legislação tributária e as normas contábeis. Conforme já apontado, o próprio tratamento tributário do ágio foi aproximado de seu tratamento contábil por meio da Lei nº 12.973/14.

Nesse sentido, o CARF desponta como um tribunal qualificado para o exame de questões ligadas à apuração de IRPJ/CSL, incluindo autuações que tratem da dedução de ágio, uma vez que seus conselheiros costumam ter amplo conhecimento contábil, chegando alguns deles a terem até formação acadêmica em cursos como ciências contábeis ou engenharia civil, conforme depreende- se de análise do currículo de conselheiros disponibilizado no site do próprio CARF52. Além disso, recentemente o CARF passou a ministrar cursos de contabilidade, sobretudo quanto a questões que envolvem os padrões IFRS, para os seus conselheiros com o objetivo de aprimorar ainda mais a qualidade técnica dos julgados53. A familiaridade e especialização que o Conselho e seus membros têm com relação a tais matérias torna a escolha da jurisprudência do CARF como objeto do presente estudo ainda mais pertinente.

É necessário, contudo, fazer uma grande ressalva quanto a este último ponto. O fato do CARF ser um conselho qualificado para o julgamento de casos tributários de alta complexidade não pode fazer com que ele seja visto como referência máxima no que diz respeito à legitimação ou deslegitimação de condutas adotadas contribuintes, especialmente no que diz respeito a planejamentos tributários. O exame de questões não expressamente previstas em lei, tal como é o

52 Disponível em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/servidores/curriculos-conselheiros. Acesso em

25 de julho de 2019.

53 Disponível em: https://www.valor.com.br/legislacao/6336119/carf-convive-com-perfis-opostos-de-julgadores.

uso de empresas-veículo para manipular ágio é, no sistema jurídico brasileiro, prerrogativa do Poder Judiciário, por meio do qual o Estado exerce sua função jurisdicional em respeito aos preceitos constitucionais54.

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