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A Escrita e a Fala como Modalidades Linguísticas

1.3 Leitura e Escrita: Bases para o Letramento

1.3.2 A Escrita e a Fala como Modalidades Linguísticas

A escrita como modalidade de uso da língua ganhou destaque e prestígio sociais como variedade linguística. Ela representa o uso padrão da língua associando-se às normas gramaticais, como por exemplo, concordâncias nominal e verbal, regências verbal e nominal, dispondo de um inventário e registro lexical no dicionário e mantém uma tradição da cultura clássica necessária à unidade linguística nacional. Apresenta-se na sociedade contemporânea como a única modalidade de uso da língua de prestígio, marginalizando, o que não se insere nesse padrão que convencionalmente foi denominado de culto. Outros estudiosos, como por exemplo, Marcuschi (2001) desmitificaram essa postura, apontando valores indispensáveis ao processo comunicativo à modalidade falada.

A escrita, em geral, está diretamente vinculada à tradição gramatical, é natural que esta modalidade de uso da língua ainda esteja presa a padrões ideais homogêneos e de pureza linguísticas. Logo, quaisquer outras variedades que não se enquadrem nesses padrões linguísticos serão consideradas por grupos mais conservadores, como marginais, até mesmo como de usos inadequados ou não aceitáveis no meio acadêmico.

Kato (1990, p. 12) refere-se ao assunto da seguinte forma: “a fala em estágio de letramento procura simular a escrita”. Neste caso, não é difícil se perceber que os letrados concebem a fala segundo o que sabem sobre a escrita. Como já foi dito, entendam-se, aqui, por letrado, aquele que faz uso social da leitura e da escrita, que se utiliza de práticas sociais, como conhecer a moeda, saber fazer compras, saber tomar a condução para ir ao trabalho e voltar para casa, saber ler e escrever o seu próprio nome, mas não sabe fazer uma carta, nem ler jornal habitualmente (MARCUSCHI, 2001).

Nessa perspectiva, a comparação entre fala e escrita é feita sob três pontos de vista: Primeiro – a diferença da natureza do estímulo – aqui se pode verificar que tais estímulos são representados pelo aspecto auditivo para a fala e visual para a escrita. Neste caso, pode-se dizer que os sinais não representam unidades discretas, invariantes, que correspondem a unidades linguísticas. Vê-se que são os ouvintes que reestruturam a cadeia sonora em unidades não físicas, mas psicologicamente significativas, tais como o fonema, a palavra, o sintagma, dentre outras formas. Essa reestruturação é a operação cognitiva de que não se tem consciência, porque as entidades são sentidas através do letramento; Segundo – as diferenças formais, normalmente percebidas entre a fala e a escrita nada mais são do que diferenças acarretadas pelas condições de produção e de uso da linguagem. Logo, a diferença entre fala e escrita não deve ser entendida apenas no seu exterior, pois no interior de cada uma, há

múltiplas variações. São, portanto, vários os fatores que propiciam as variações, tais como, grau de letramento dos sujeitos, estágio de desenvolvimento linguístico, gênero do sujeito, registro da linguagem, modalidade de uso, dentre outros; Terceiro – a fala e a escrita: diferenças funcionais – as condições de uso da linguagem podem estabelecer as diferentes visões formais atribuídas às modalidades de uso da linguagem, a falada e a escrita. Dentre as condições, podem-se apontar algumas: a escrita é menos presa ao contexto situacional; é dependente de convenções prescritivas; é tida pelos mais conservadores como um produto permanente (KATO, 1990).

Os homens utilizam a escrita em três perspectivas: a primeira, a que apresenta uma visão da evolução do uso da escrita; a segunda, a que é vista na perspectiva sincrônica, empírica desse uso; e a última, apresenta uma visão especulativa sobre a situação contextual. Dessa forma, vê-se que o uso da linguagem escrita é baseado em prestígio social, demarcado em várias instâncias e culturalmente legitimado em larga escala. Essa demarcação representa o prestígio que a escrita possui na sociedade letrada e não decorre de suas características materiais, mas do valor socialmente concedido àqueles que se apoderam dessa modalidade, transformando-a em instrumento valioso que pode ser consumido como um bem material.

Neste veio, pode-se dizer que os usos que se fazem da escrita em uma dada sociedade estão intrinsecamente ligados à maneira como a sociedade controla a transmissão dos recursos que veiculam o processo comunicativo, consequentemente com as classes sociais que alimentam o status da escrita como modalidade de destaque social, como agência desse processo. Adotou-se aqui a noção de agência como aquela que controla os recursos comunicativos. Seguindo essa concepção, a escola é a maior agência nas sociedades modernas e é ela quem faz o controle dos recursos comunicativos (BAZERMAN, 2007). Sendo assim, a escola deve servir como modelo de transmissão de conhecimentos e de formação de cidadãos. Se a escola institui uma língua a ser ensinada como forma de prestígio social, logo, a escola é uma agência oficialmente reprodutora de uma variedade padrão da língua, sendo que essa variedade é a única legítima, em detrimento das demais variedades. Neste caso, a escrita, vista como variante padrão é um forte instrumento para nele se manter o status da escola e de

outros segmentos da sociedade, fortalecendo os padrões sociais e culturais. A escrita “se tornou um bem social indispensável para enfrentar o dia a dia, seja nos

centros urbanos ou na zona rural” (MARCUSCHI, 2001, p. 16). Assim, a escrita tornou-se essencial à sobrevivência do mundo moderno circundante, talvez não pelos seus próprios méritos, mas, sobretudo, pela maneira como ela se instaurou nas sociedades contemporâneas,

fazendo-se representante de prestígio social. Neste caso, tornou-se indispensável nos meios sociais e legitimada pela agência escola, representando a educação, o desenvolvimento, portanto, o poder.

Na contramão do poder hegemônico da escrita, chama-se a atenção para a seguinte afirmação de Marcuschi (2001, p.17): “sob o ponto de vista mais central da realidade humana, seria possível definir o homem como um ser que fala e não como ser que escreve”. Isto não significa dizer que a fala esteja em uma escala de valores superior à escrita, tampouco representa a convicção, equivocada, de que a escrita é derivada e que a fala é primitiva. E por hipótese alguma a escrita pode ser vista como representação da fala, pois, a escrita não é capaz de reproduzir a gestualidade, os movimentos do corpo, do olhar, dentre outros fenômenos típicos dessa modalidade de uso da língua. Entretanto, há de se perceber que a escrita dispõe de seus recursos que são extremamente importantes tais como tamanho e tipo de letra, cores e formatos, sinais de pontuação, marcas como negrito, itálico, usos de parênteses, dentre outros.

Assim, as duas modalidades, fala e escrita, são práticas e usos da língua de extrema importância e juntas se completam e caracterizam o sistema linguístico; não podem ser vistas como modalidades dicotômicas. Ao contrário, as duas modalidades se somam para permitir a construção de textos que são veiculados em toda a sociedade. Os espaços ocupados pelas duas modalidades de uso da língua são determinados pelo potencial do meio básico usado por cada uma dessas modalidades (MARCUSCHI, 2001).

Apesar desse conhecimento que se tem das duas modalidades de uso da língua, ainda há manifestações de grupos radicais que atribuem à tradição oral uma primazia sobre a escrita (STUBBS, 1980). Neste sentido, pode-se evidenciar que a linguagem escrita não pode ser definida como um conjunto de propriedades formais, invariantes, e distintas daquelas da linguagem falada. As modalidades de uso da língua, falada ou escrita, dispõem de uma isomorfia parcial, considerando que a seleção é feita a partir do mesmo sistema gramatical e podem expressar as mesmas intenções.

Não se pretende, aqui, discutir a supremacia de uma ou outra modalidade de uso da língua, mas defende-se que é preciso que se discutam as práticas sociais que envolvem os usos da língua, independentemente de sua modalidade. Tais práticas apontam para a relevância que ocupa a linguagem falada em uma sociedade e justificam a possibilidade de discussão das duas modalidades de uso da língua, em uma perspectiva sócio-histórica de práticas sociais.