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A escrita jornalística e o embate com o sujeito do inconsciente

N, coordenadora-geral do projeto da J para a formação de professores da educação

5. FORMAÇÕES IDEOLÓGICAS, FORMAÇÕES IMAGINÁRIAS E O DESLIZAMENTO DO SUJEITO NO TEXTO JORNALÍSTICO

5.1. A escrita jornalística e o embate com o sujeito do inconsciente

Em Freud (1987, p. 23), a identificação aparece como “a mais remota expressão de um laço social”, sendo entendida como uma expressão de amor. Ao descrever tal processo, o psicanalista observa que a identificação não é fixa, mas múltipla. Esclarece que ela se constrói a partir das bases das relações familiares, primeiro contato da criança com o mundo, funcionando como um organizador primeiro da vida mental da criança.

Ao longo da vida, a identificação vai se ajustando com novas situações e relações, de modo que o sujeito toma de modo inconsciente traços do objeto com o qual se identifica. Para Freud, a identificação se esforça por moldar o próprio ego nos termos daquele que foi tomado como modelo (FREUD, 1987, p. 24). É importante salientar que a identificação é ambígua desde o início: tanto pode ser positiva como pode gerar tensões.

Lacan, ao retomar a obra de Freud, refina essa posição sobre a impossibilidade de fixação das identificações ao observar a posição dos sujeitos como seres falantes, ou seja, submetidos às restrições da linguagem (RIOLFI E ALAMINOS, 2007, p. 302). Assim, afirma que mesmo o uso mais refinado da linguagem não consegue recobrir a complexidade de uma pessoa. O psicanalista francês então nos mostra que os significantes são insuficientes para predicar um sujeito ao longo de sua existência, de modo que é impossível pensar em formas imutáveis de representá-lo. Por essa razão, as identificações sempre são múltiplas e variam ao longo da vida de uma pessoa.

Lacan elabora novas formas de compreender a identificação radicalizando a ideia das ambiguidades. Para o psicanalista francês, as identificações podem ser explicadas de três modos: a identificação à imagem proposta pelo outro, em que o sujeito consegue se

distinguir do objeto amado, mas continua se projetando nele como um modelo a ser seguido; a identificação ao significante puro e a identificação ao desejo inconsciente.

O primeiro modo de identificação tem seu lugar na constituição psíquica do sujeito, pois permite a instauração “do campo da possibilidade do desejo” (RIOLFI & ALAMINOS, 2007, p. 303), a possibilidade, por exemplo, de um sujeito poder vir a se compreender como sendo um “eu”. É a partir dessa primeira identificação que o sujeito pondera que é diferente do outro e com desejo próprio, ainda que colado na imagem do objeto amado.

A segunda identificação é ao significante, sendo aquela que marca a posição do sujeito de se apropriar de traços ou significantes de pessoas com as quais se identifica. Trata-se de uma identificação que não é mais totalizante, como a imaginária, mas marcada pela apropriação daquilo que faz mais sentido para quem se apropria. Ou seja, não é todo o objeto que será copiado, mas as características que mais tocam o sujeito.

Por fim, o psicanalista apresenta uma terceira posição de identificação, que é a do desejo do inconsciente. Nessa posição, o sujeito busca se adequar ao modelo com o qual se identifica, porém construindo essa relação a partir de uma própria elaboração. Trata-se de uma busca inevitavelmente incessante, que provoca a percepção de que para materializar a identificação é preciso a construção de um lugar próprio. A citação abaixo nos ajuda a compreender esse último tipo de identificação:

Lacan confere a essa identificação o poder de reintroduzir, como falta, o objeto perdido, responsável pela insatisfação. O buraco daí advindo inaugura o inexorável movimento do desejo. Responde pela seguinte condição necessária para o exercício do desejo: “o que desejar?” (RIOLFI&ALAMINOS, 2007, p. 303)

Assim, para o psicanalista, as identificações de um sujeito são resultado de um processo que engloba esses três modos de funcionamento, os quais vão se atualizando ao longo de sua trajetória. Por isso, não podemos falar de uma identificação ou identidade, mas usar o conceito de identificação sempre associado a essa marca de plural. Observamos que as identificações também não podem ser vistas dicotomicamente como positivas ou negativas, uma vez que é um processo dialético que marca a trajetória do sujeito e explica seus modos de funcionamento.

A identificação é um processo inconsciente. Por essa razão, ainda que rapidamente, é importante dizer que para elaborar o conceito de inconsciente, Freud (1901) faz um percurso significativo em que o conceito passa de instância construída de conteúdos recalcados que escapam às outras instâncias (ROUDINESCO, p. 375) para parte estruturante da constituição psíquica do sujeito. Para Freud, ainda que o inconsciente seja algo que escapa à formulação consciente, ele tem algo de muito concreto, pois se atualiza na materialidade dos laços sociais mais primordiais (FREUD, 1921/1940).

Posteriormente, relendo o conceito freudiano, Lacan (1964/1998) reforça essa materialidade do inconsciente ao afirmar que “A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão estruturas, e as modelam” (LACAN, 1964/1998, p. 26). O psicanalista francês radicaliza essa ideia ao observar que o sujeito é um ser de linguagem que, para se constituir, antes de falar é falado. Afirma, então, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

Nessa perspectiva, todo ser falante é parasitado por um inconsciente (FREUD, 1915/1987) que é construído pela amarração a diferentes modos de identificação. Levar em conta essas premissas nos faz questionar em que medida, ao escrever, um jornalista toma os seus preconceitos como postulados e produz textos nos quais inclui argumentos que, supostamente, fazem com que os mesmos sejam mostrados como verdades.

Pensando nos três modos de identificação e como esses se materializam nos processos de escrita, observamos que a escrita permeada por uma identificação imaginária é aquela na qual o escritor não consegue se descolar das imagens que defende, de suas próprias ideias e tenta organizá-las de um modo a torná-las como as únicas possíveis. Assim, ao escrever, ele ignora os diferentes modos de elaboração e se apropria do discurso do outro apenas de modo a confirmar sua própria posição. Nesse caso, o escritor escreve calcado em sua própria imagem, ainda que use fala e textos provindos de outras esferas.

A escrita que passa pela uma inscrição simbólica, por outro lado, é aquela em que o escritor considera o outro e passa a sopesar as posições e discursos do outro como elementos necessários para que suas próprias posições se estruturem. Ou seja, ainda que o

escritor não concorde completamente com o discurso do outro, ele percebe que um processo de escrita para se efetivar precisa se validar a partir do que foi construído e simbolizado na cultura. Nesse tipo de escrita, o sujeito vai se relacionar de modo diferente com o texto, na medida em que, ao escrever, entra em relação com o outro.

Por fim, uma escrita permeada pelo desejo do inconsciente é aquela em que o sujeito consegue passar pela simbolização, porém atualizando seu próprio desejo na escrita. Esse modo de produzir a escrita gera um texto singular sem deixar de considerar o legado cultural e sem deixar de supor a presença do outro.

A partir da compreensão de como conceito de identificação se materializa na escrita, consideramos que é relevante para o jornalismo, que tem como seu principal texto a notícia e, que, como vimos, tem entre suas funções construir e partilhar sentidos sobre o mundo, transitar da identificação imaginária para a simbólica. Ao escrever, o jornalista deveria especialmente trabalhar com uma escrita simbólica, pois assim ele permitiria o confronto entre diferentes posições. Entretanto, nosso propósito é justamente mostrar que o que vem se repetindo no tratamento dado ao professor no jornal é a fixação numa escrita imaginária.

Feitas essas observações, vale observar que percebemos uma inevitável aproximação com as proposições acerca das Formações Imaginárias do campo do discurso, tal como formuladas por Pêcheux (2010), e um acirramento da implicação das imagens no processo discursivo. É importante lembrar que as Formações Imaginárias tentam dar conta, no processo discursivo, dos jogos de antecipações que o sujeito se vale para produzir seu discurso.

Pretendemos mostrar que na produção jornalística sobre o professor é possível identificar as Formações Imaginárias indiciando os efeitos de uma escrita produzida numa uma relação de identificação imaginária. Buscamos apontar que, no corpus estudado, as antecipações produzidas pelos jornalistas ao escrever marcam-se pela identificação com o discurso dos especialistas apenas para confirmar pressupostos já assumidos como verdades pelo jornalista. Assim, ponderamos que esse modo do jornalismo de se relacionar com a produção científica em educação tem produzido significativas distorções na imagem do professor no jornal.

5.2. Quando o professor é notícia no jornal que “não dá para não ler”: o discurso da