• Nenhum resultado encontrado

Eixos de oposição a Regimes Autoritários

2.2 A ESPERANÇA EQUILIBRISTA: A LUTA PELA ANISTIA E RECONCILIAÇÃO

Anistia, teu nome é perdão. Mas como perdoar a quem não cometeu falta ou delito, e, não os cometendo, foi castigado? Se teu nome é perdão, deve este ser pedido às vítimas da injustiça e ao arbítrio? Em vez de compaixão, neste caso, a anistia precisava ser um ato de arrependimento seguido de reconhecimento público e proclamação da injustiça. O perdão cabe ao ofendido. E há muitos ofendidos e humilhados que, sem culpa, tiveram de pagar pelo crime que não perpetraram. Anistia, teu outro nome é esquecimento. É fácil esquecer. Quase não fazemos outra coisa todos os dias. Esquecemos a hora, o compromisso, o encontro trivial, a pequena obrigação, o pequeno prazer e a pequena dor. Nossa vida é um tecido de esquecimentos, sabiamente preparado pela memória, que não teria capacidade de expor e ruminar os milhões de atos e tentativas de atos, pensamentos, sentimentos e sensações que compõem um dia na Terra. [...] Se a anistia é um processo de esquecimento, que será da História? E que será dos esquecidos, se eles mereciam ser lembrados, vivos ou mortos que estejam, por que a injustiça os marcou? Vamos esquecer os infratores da lei geral, se isto ajuda a normalidade política, e se essa lei merecia mesmo ser respeitada, pois há leis tão desprovidas do espírito legal que não se dão ao respeito. [...]. A conveniência política poderá acolher-te com aplausos, considerando-te a melhor que se poderia almejar no momento, e nesse caso colam a etiqueta de provisória ou mais ou menos. [...]. Assim te desejo, assim te espero para os que necessitam de ti e os que já não necessitam, pois habitam a mansão além da política, das crises sociais e da injustiça (como e com que ridículo, anistiar um Juscelino, um Lacerda?). Quero-te alta e perfeita, e não uma baixinha anistia de quatro dedos e andar cambaio. Quero que voes. Com asas te imagino, sobre os desencontros e mesquinhezas dos pobres intérpretes de tua grandeza luminosa. (ANDRADE, 1979)

Em 28 de junho de 1979, um mês antes da publicação da Lei de Anistia, o escritor Carlos Drummond de Andrade reproduziu no Jornal do Brasil um texto sobre esse processo que vinha sendo construído com muita luta durante a década de 1970, mesmo com o endurecimento do regime militar que imperava no país desde 1964, com o Ato Institucional n.5 que encerrou com as atividades políticas e fechou o Congresso Nacional, conforme será evidenciado ao longo desse texto.

Drummond, em um misto de pessimismo e esperança, narra o que almejava com a consolidação do processo de anistia no país. Através da relação entre perdão e esquecimento, o poeta se vê inconformado com o discurso da Anistia possível; isso porque a Lei n.º 6.683 de 28 de agosto de 1979, conhecida como a Lei da Anistia promove a absolvição a todos os possíveis condenados durante o regime militar.

Em seus quinze artigos, estão descritas sua finalidade e especificidades. O texto está dividido da seguinte forma:

Quadro 11: Detalhamento da Lei de Anistia Brasileira

Art. Texto Tema

1

É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações

vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos

Institucionais e Complementares (vetado).

Essência da lei, limite temporal e público-alvo22.

2 Revogado pela lei no. 10.559 de 2002. Reversão ao serviço ativo de funcionários específicos do serviço público.

3

O retorno ou a reversão ao serviço ativo somente deferido para o mesmo cargo ou emprego, posto ou graduação que o servidor,

civil ou militar, ocupava na data de seu afastamento, condicionado, necessariamente, à existência de vaga e ao

interesse da Administração.

Reversão ao serviço ativo de funcionários específicos do

serviço público.

4 Revogado pela lei no. 10.559 de 2002.

Questões relativas à pensão ou aposentadoria dos servidores que não voltarem

à ativa.

5 Revogado pela lei no. 10.559 de 2002. A pensão cedida à familiares constará como vantagem individual.

6

O cônjuge, qualquer parente, ou afim, na linha reta, ou na colateral, ou o Ministro Público, poderá requerer a declaração

de ausência de pessoa que, envolvida em atividades políticas, esteja, até a data de vigência desta Lei, desaparecida do seu domicílio, sem que dela haja notícias por mais de 1 (um) ano.

Normas para considerar desaparecido político e condições de elegibilidade

dos familiares.

7

A conhecida anistia aos empregados das empresas privadas que, por motivo de participação em grave ou em quaisquer movimentos reivindicatórios ou de reclamação de direitos regidos pela legislação social, haja sido despedido do trabalho,

ou destituídos de cargos administrativos ou de representação sindical.

Anistia para funcionários da iniciativa privada.

8

Os anistiados, em relação às infrações e penalidades decorrentes do não cumprimento das obrigações do serviço militar, os que à época do recrutamento, se encontravam, por

motivos políticos, exilados ou impossibilitados de se apresentarem.

Questão do serviço militar obrigatório.

9

Terão os benefícios da anistia os dirigentes e representantes sindicais punidos pelos Atos a que se refere o art. 1º, ou que tenham sofrido punições disciplinares incorrida em faltas ao serviço naquele período, desde que não excedentes de 30

(trinta) dias, bem como os estudantes.

Anistia para os representantes sindicais.

10 art. 2º, será contado o tempo de afastamento do serviço ativo, Os servidores civis e militares reaproveitados, nos termos do respeitado o disposto no art. 11.

Normas para contagem de tempo ativo para

aposentadoria.

11

Esta Lei, além dos direitos nela expressos, não gera quaisquer outros, inclusive aqueles relativos a vencimentos, saldos, salários, proventos, restituições, atrasados, indenizações,

promoções ou ressarcimentos.

Limites da lei.

22 É interessante perceber o conteúdo dos dois primeiros parágrafos desse artigo. No primeiro delimitam os

crimes que são considerados elegíveis para serem contemplados, “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”. Já no segundo parágrafo são feitas as exceções a elegibilidade de Anistia: “Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”.

12

Os anistiados que se inscreveram em partido político legalmente constituído poderão voltar e ser votados nas convenções partidárias a se realizarem no prazo de 1 (um) ano a

partir da vigência desta Lei.

Anistia para a participação política.

13 O Poder Executivo, dentro de 30 (trinta) dias, baixará decreto regulamentando esta Lei. implementação da lei. Burocracia para a 14 Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação. implementação da lei. Burocracia para a 15 Revogam-se as disposições em contrário. implementação da lei. Burocracia para a

Fonte: elaboração própria com base no texto da lei.23

Apesar de ser bastante restrita, a Lei começou a abrir caminhos para a volta das pessoas para o país, trazê-las para a legalidade e reinserção nas questões econômicas. O processo de regulamentação da lei gerou e ainda gera muitas controvérsias, por anistiar não só as pessoas que foram caçadas pelo regime político, mas também os membros do regime que participaram de perseguições, torturas e até mortes, em nome da manutenção de uma paz social, que defendia a ideia de que o Brasil necessitava de uma mobilização em torno do perdão irrestrito para ser possível sua reconciliação nacional.

Retomando o texto de Drummond, é a esse processo no qual o artigo se insere: o questionamento a lei, seus alcances e até mesmo o que é justo. Francisco Carlos Teixeira da Silva explica o processo que levou à lei:

Decretada pelo governo, sem negociação com a oposição, em 28 de agosto de 1979, a anistia assegurou que não haveria revanchismos – uma das principais preocupações das Forças Armadas -, pois o perdão não consentiria que os militares envolvidos com a repressão fossem julgados ou condenados por atos praticados em nome do governo ou das Forças Armadas. (SILVA, 2007, p. 270)

Sendo assim, é preciso considerar que a aprovação da lei de Anistia não foi um processo isolado no país e correspondia a uma demanda popular que resultava na organização da resistência. Sobre a organização dos grupos de oposição ao regime após a institucionalização do mesmo, vale retomar o argumento de Garretón (1985), considerando que após um golpe militar que tem como objetivo destruir o projeto de país que vinha sendo implementado, há um tempo necessário para que os grupos consigam retomar a sua própria existência.

Nesse contexto, de acordo com Paulo Abrão, o processo de redemocratização brasileiro pode ser dividido em três momentos, conforme o quadro:

23 Texto disponível na íntegra em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6683.htm - acesso em 25/11/2018. Os artigos 2, 4 e 5 foram revogados pela Lei 10.559 de 2002.

Quadro 10: Momentos da Transição Brasileira

1º Momento 1970-1979 Mobilização social contra o regime militar tanto interna quanto externa, graças aos exilados políticos. Formação de comitês pela anistia. Criação da Lei n.º 6.683.

2º Momento 1980-1988 Mobilização pela redemocratização. Movimento “Diretas Já”, processo da constituinte, eleições indiretas em 1985. Promulgação da Constituição Cidadã de 1988.

3º Momento 1988- Consolidação da Democracia. Defesa do Estado de Direito. Políticas de reparação, memória e verdade.

Fonte: Adaptado de ABRÃO, 2012, p. 165.24

Esses momentos são cruciais para entender que a lei de anistia não partiu da boa vontade dos militares, mas que faz parte de um processo, assim como as reivindicações contra a lei também. O movimento das Diretas Já (1983-84) mobilizou diversos comícios e passeatas e, apesar de não alcançar o seu fim, que era a possibilidade das eleições diretas, conquistou a eleição indireta de Tancredo Neves e o estabelecimento de uma Assembleia Constituinte.

Entretanto, para compreender as raízes do golpe de 1964 que desencadearam essas mobilizações e processos, é necessário considerar os antecedentes dos dias 31 de março e 01 de abril de 1964. Assim, é preciso examinar todo o caótico governo do vice- presidente eleito do Brasil nas eleições de 1960, João Goulart, e que a partir de 1961 assumiu a presidência do país após a renúncia do presidente eleito, Jânio Quadros.

2.3 A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA NO BRASIL, INTERROMPIDA – O FIM