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O ARCO-ÍRIS CHILENO DEPOIS DE 15 ANOS DE TEMPESTADE: ditadura, transição para a democracia e desafios das Comissões da Verdade

1.3 FREI E ALLENDE: A REVOLUÇÃO POR DIFERENTES CAMINHOS

Durante todo o século XX, os chilenos vivenciaram diversas mudanças, como a criação de uma sociedade nacional, unificando os interesses agrários e comerciais, apesar de manter um Estado oligárquico. Assim, quando o democrata-cristão Eduardo Frei chegou à presidência, havia a proposta de uma ruptura com o modelo vigente, visando um projeto de modernização capitalista e reformismo popular.

De 1964 a 1973, o Chile passou por reformas institucionais profundas que estavam inseridas no interior do entendimento da estabilidade política do país e suas diferentes vertentes. Seria incorreto chamar Frei de socialista, porém o líder do Partido da Democracia Cristã, partido centrista apoiado pela direita do país, durante seu governo de 1964 a 1970 promoveu políticas de caráter reformista e desenvolvimentista. De acordo com Maurício Paiva:

O governo de Eduardo Frei, antecessor de Salvador Allende, caracterizara-se por uma política reformista e desenvolvimentista, centrada na criação de bases para a expansão industrial, no incentivo ao investimento de capitais estrangeiros e na modernização da agricultura. Aumentando a produção do cobre “chilenizado”, que proporcionava mais de 70% das divisas do país, e criando as condições para a afluência de capitais externos, almejava-se fomentar o desenvolvimento industrial. Efetivamente, essa política surtira os resultados esperados e, durante o governo Frei, o Chile experimentara um certo

nível de desenvolvimento, acelerando-se a industrialização. (PAIVA, 1984, p. 17)

O programa reformista proposto promoveu grandes mudanças na sociedade chilena através do estabelecimento de programas com quatro pilares básicos: 1) Promoção popular (Promoción Popular); 2) Reforma agrária (Reforma Agraria); 3) Reforma educacional (Reforma Educacional); 4) Reuniões de vizinhos (Juntas de Vecinos). Esses programas estavam inseridos na lógica de uma “Revolução em Liberdade” que pretendiam modernizar o Chile por meio de reformas essencialmente estruturais.

Promoção popular e a reforma agrária foram instauradas, herdando um processo iniciado no governo de Jorge Alessandri, com o apoio da igreja católica e até mesmo dos Estados Unidos, a partir da Aliança para o Progresso proposta pelo presidente Kennedy e seguida por seu sucessor.

Frei promoveu a “chilenização”9 do cobre e a modernização do mundo agrário,

mediante a redistribuição de terras e a sindicalização dos camponeses. Outra consequência desse movimento foi o aumento da luta de classes no campo e na cidade, aliando os campesinos aos operários urbanos – o que desencadeou uma crise na hegemonia política da burguesia nacional.

O final de seu mandato, no entanto, foi marcado pela alta inflação e a oposição tanto dos grupos de direita quanto de esquerda, que durante os anos 1960 se polarizaram. O governo Frei, através da promoção popular e das juntas de vizinhos, incentivou a participação política e consolidou o movimento participativo popular, o que, por sua vez, acirrou a radicalização dos partidos comunistas, socialistas e de identificação socialdemocrata e o democrata-cristãos, gerando assim a Unidade Popular (UP).

A proposta do que ficou conhecido como via chilena para o socialismo é muito interessante, pois surge a partir da coalização de alguns partidos, tendo como base o Partido Comunista e o Socialista, mas também o Partido Radical, o Partido Social Democrata, a Ação Popular Independente, o Movimento de Ação Popular Unificado e uma parte de grupos católicos de esquerda.

9 O processo de “chilenização” e nacionalização do cobre foram iniciados em 1953, a partir de um série de

políticas públicas. Em 1966, Frei promulgou a Lei 16.425, que garantia a aquisição por parte do estado chileno de uma porcentagem das ações das grandes empresas produtoras de cobre (Gran Minería de Cobre). Em 1969, através do que ficou conhecido por “nacionalización pactada” o estado passou a ter o controle majoritário dessas empresas. Com isso, durante o governo de Allende, em 1971, o presidente promulgou a lei 17.450 que criava a Corporación Nacional de Cobre de Chile – CODELCO-CHILE e assim, estatizou completamente essas empresas.

O grupo conseguiu elaborar um plano de governo que propõe o socialismo como única forma para se alcançar a emancipação do povo chileno (AGGIO, 1993, p. 19), dentro do projeto de estabilidade política do país. Conforme Aggio, as propostas da UP visavam:

[...] explicitar que as transformações econômicas – de caráter anti-imperialista, anti-oligárquica e antimonopolista – que se deveriam operar na base da sociedade chilena teriam o claro sentido de abrir caminho para a implantação do socialismo, sem a necessidade de uma cultura da institucionalidade democrática vigente no Chile. Ao contrário, aquelas transformações só seriam positivas se acompanhadas por um aprofundamento da democracia. Assim, a questão do socialismo traduzia-se, na formulação da UP, como a proposta da esquerda para que a sociedade chilena pudesse superar o descompasso entre o mundo da política e o da economia. Esta estratégia global tinha como um propósito básico a transferência para o Estado dos meios de produção fundamentais, a fim de que se constituísse, dessa forma, a Área de Propriedade Social (APS) da nova economia. De acordo com o programa da UP, objetivava- se a resolução dos problemas imediatos das grandes maiorias, garantir emprego a todos, com remuneração adequada, libertar o Chile da subordinação do capital estrangeiro, possibilitar um crescimento econômico rápido com o máximo desenvolvimento das forças produtivas, ampliar e diversificar as exportações, abrindo novos mercados, e promover a estabilidade monetária. (AGGIO, 1993, p. 19)

No entanto, esse é um momento muito delicado. Cuba vivenciou uma revolução em 1959 e a partir da década seguinte se alinhou ao bloco comunista-soviético. Na tentativa de evitar que uma nova experiência socialista surgisse nas Américas, houve uma movimentação internacional encabeçada pelos Estados Unidos para garantir o alinhamento do continente. Assim, quando o Chile elegeu, em 1970, um presidente alegadamente marxista e cujo plano de governo pretendia alcançar o socialismo, esse foi alvo de boicote e sabotagem.

Dado o fenômeno local e a política dos Estados Unidos no período, verifica-se a atuação dos Estados Unidos de forma a financiar e patrocinar a instabilidade política e social fornecendo apoio logístico, financeiro e até mesmo ideológico, uma vez que em menor ou maior escala o mundo todo estava envolvido na Guerra Fria, conforme diversos autores já analisaram, principalmente Peter Kornbluh (The Pinochet File, 2003) ao analisar os arquivos desclassificados da CIA; além disso, no contexto latino-americano foi desenvolvida a Doutrina de Segurança Nacional.

Para compreender esse fenômeno e até mesmo o contexto de interferência norte- americana no restante do continente é necessário refletir sobre as relações do país durante o século XX, mais precisamente após a Segunda Guerra Mundial. A partir dos anos 1950, a política externa norte-americana estava alicerceada em três abordagens principais: 1) o Plano Marshall, para a reconstrução da Europa; 2) objetivos específicos desencadeados

pela Guerra Fria; e 3) suporte à defesa de seu país e de outros. Tanto que os Estados Unidos era o principal fornecedor de armas para os países da América do Sul. Considerando isso, a relação EUA-América Latina encontrou um ponto de divergência, uma vez que em um primeiro momento os demais países americanos foram preteridos, abrindo espaço para vozes dissonantes do continente até o aumento dos investimentos em defesa. Conforme Fico (2008), as relações comerciais se mantinham, mas não se aprofundavam. Além disso:

No campo militar, em meados dos anos 1950, era patente para o governo americano que a venda de armas para os países latino-americanos, além do fornecimento de equipamentos e treinamento (o chamado “programa de ajuda militar”) tinha alcance restrito e, ao invés de um significado propriamente militar, tais vendas apenas “ajudavam os Estados Unidos a cultivar relações diplomáticas com os ditadores militares que dominavam a América Latina” na época. O programa era uma herança da II Guerra Mundial e, no caso latino- americano, objetivava manter a dependência da região em relação aos Estados Unidos: em troca do fornecimento de armamentos, a América Latina deveria comprometer-se com a defesa do continente contra-ataques extracontinentais. (FICO, 2008, pp. 54-55)

E ainda sobre essas divergências encontram-se as Conferências Interamericanas, que deixavam latente os pontos de contraste entre os interesses das duas regiões, até mesmo no plano econômico:

As profundas divergências entre EUA e América Latina acerca da cooperação econômica iriam manifestar-se claramente nas principais conferências interamericanas [...]. Em todas essas reuniões, a atuação norte-americana pautou-se no sentido de insistir na eliminação de todas as formas de nacionalismo econômico, de estimular a iniciativa privada, de suprimir as barreiras comerciais, sobretudo em termos de tarifas que visassem à proteção de nascentes industriais latino-americanas. Além disso, os EUA se opunham fortemente às duas principais reivindicações latino-americanas: a de participação na elaboração de políticas ou acordos cujo objetivo fosse a estabilização dos preços dos produtos primários exportados pela região sujeitos a fortes flutuações; e a criação de uma instituição financeira para o desenvolvimento econômico regional. (MELLO E SILVA, 1992, p. 213) Entretanto, novos fatores vieram à tona e que são importantes para a mudança de concepção sobre a ótica de lidar com o restante da América Latina. Inicialmente, temos a própria retórica peculiar de Kennedy, semelhante à dos líderes políticos da América Latina: objetivos de desenvolvimento econômico de longo prazo, reforma estrutural e democratização política.

Essas metas adquiriram forma concreta mediante a assinatura da Carta de Punta del Este, na qual os Estados Unidos se comprometiam a destinar um fundo de US$ 20 bilhões ao desenvolvimento latino-americano por um período de dez anos, sendo que a aplicação desses recursos estava vinculada a um compromisso com a democracia representativa e à realização de reformas sociais.

O assassinato de Kennedy desestabilizou a estrutura norte-americana, e o governo de Lyndon B. Johnson (1963-1969) teve a tarefa de conciliar a agenda progressista do antecessor com as mudanças vivenciadas no país, que vivia a eclosão dos movimentos pelos Direitos Civis e as demandas externas causadas pela Guerra Fria, como a corrida espacial e conflitos focados em outras regiões do mundo.

Para a relação com a América Latina, o novo presidente seguiu o raciocínio de que era necessário manter a segurança interna da região aliada à necessidade de combater a pobreza. Dessa forma, Johnson destinou a Thomas C. Mann a tarefa de cuidar dos assuntos relacionados à região. A perspectiva dele fica conhecida como “Doutrina Mann” e assumiu a ideia de que a Aliança para o Progresso deveria ser uma indutora do desenvolvimento e não sua principal fonte de financiamento.

No entanto, a defesa pelo ideal democrático foi deixada de lado, uma vez que a partir desse momento “os Estados Unidos deixariam de questionar a natureza dos regimes que estavam recebendo sua assistência militar e econômica, desde que se mantivessem anticomunistas e mesmo que fossem autoritários ou ditatoriais” (FICO, 2008, p. 65).

Esse tipo de ação permitiu que os Estados Unidos interferissem indiretamente nos países para garantir o capitalismo e em última análise o puro antagonismo ao comunismo.

O principal alicerce dessa ação foi o desenvolvimento da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), que pode ser analisada como uma normativa que “instrui os líderes dos Estados acerca das relações entre países e mesmo as relações internas dentro de cada nacionalidade de forma política, além de contribuir de maneira decisiva para elaboração de estratégias de defesa junto ao corpo militar de cada Estado” (BUENO, 2014, p. 50). Sendo assim, era entendida como a relação entre os projetos de nação dos países sul- americanos e o poder mediados pela geopolítica. São quatro conceitos fundamentais:

1. Objetivos nacionais; 2. Segurança nacional; 3. Poder nacional; e, 4. Estratégia nacional.

Dentro desse ideário em que a DSN se compôs é possível encontrar discursos que defendem a integridade territorial, nacional, a democracia enquanto regime político, o progresso, a paz social e a soberania (BUENO, 2014, p. 50). E esses objetivos, dentro do contexto de Guerra Fria, estão em constante ameaça pelo bloco comunista;; então como afirma Alves, em última instância essa doutrina funciona como “um instrumento utilizado pelos setores dominantes, associados ao capital estrangeiro, para justificar e legitimar a

perpetuação por meios não democráticos de um modelo altamente explorador de desenvolvimento dependente” (ALVES, 1989, p. 27).

Aliando essas duas políticas e o contexto chileno, os documentos apresentados por Kornbluh se tornam essenciais para compreender de que forma a atuação da Agência Central de Inteligência americana (CIA) foi essencial para a desestabilização do governo de Allende e apoio inicial ao golpe militar de 1973.

Ainda sobre a atuação dos Estados Unidos no continente e a relação com a consolidação de regimes autoritários, é possível recorrer à análise que Kathryn Sikkink (2007) faz através da política externa estadunidense, evidenciando a mudança de discurso para a promoção do Direitos Humanos e como isso entrou na agenda ao longo da década de 1970. Principalmente ao afirmar que entre 1973 e 1980 a política externa foi alterada e o Departamento de Estado passou a contar com um escritório específico que deveria elaborar relatórios anuais sobre cada país que recebia algum tipo de ajuda estadunidense (2007, p. 48). Dessa forma, a linguagem dos Direitos Humanos passou a ser usada para criticar a política usada pelo país nos vizinhos latino-americanos, de forma bastante específica ao apoio dado pelos EUA as ditaduras. A partir de 1971 foi estabelecido novas diretrizes para o relacionamento entre os países, conforme Sikkink:

Uma das responsabilidades do novo escritório era preparar relatórios anuais de direitos humanos para cada país que recebesse assistência dos EUA. O Congresso promulgou uma legislação geral de direitos humanos que regia a ajuda militar e econômica dos EUA e empréstimos multilaterais, e aprovou disposições de direitos humanos específicas de países que proibiam a ajuda militar à Argentina, Chile e Uruguai. Ocorreu uma transformação importante na política dos EUA: preocupações com direitos humanos foram incorporadas nas leis e nas instituições que implementam a política externa dos EUA. (SIKKINK, 2007, pp. 48-49 – tradução nossa)

Assim, a promoção e proteção dos Direitos Humanos passou a ser algo defendido, principalmente como resultado da mobilização interna e a atuação estadunidense nos países, não só latino-americanos. Uma vez que o apoio dos Estados Unidos não era apenas financeiro, mas ideológico, bélico e logístico.

Com isso, é preciso compreender o golpe militar em sua origem, a criação do antagonista que deve ser combatido e exterminado, 11 de setembro de 1973 só é a exacerbação máxima da diferença entre dois modelos e duas concepções distintas e que não poderiam coexistir.

1.4 A RADICALIZAÇÃO DA DIFERENÇA: O GOLPE MILITAR DE 1973