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CAPÍTULO 3. A RESERVA EXTRATIVISTA CAZUMBÁ-IRACEMA E SEU

3.2. A esperança de uma nova era: a criação da Reserva Extrativista

Considerado muito mais que seu espaço de reprodução econômica onde acontecem as relações sociais, o território é o lugar das representações e do imaginário mitológico das sociedades tradicionais (DIEGUES, 2001), gerando disputa e consequente união dos atores que demonstram interesse comum em conquista-lo. É por assim considerar o território que a história da Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema começa a ser traçada em 1986, com a chegada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) à região. Nesse momento, o Incra apresenta a proposta de loteamento das terras pelo projeto de assentamento Boa Esperança18

que abrangeria parte do que é hoje o Núcleo Cazumbá (Figuras 6, 7 e 8).

18 O projeto de assentamento Boa Esperança previa a demarcação de lotes de terra que mediriam em média 60 hectares (SEBRAE, 2004).

Figura 6 - Núcleo Cazumbá em 1984, Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, Sena Madureira, AC.

Fonte: Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC).

Figura 7 - Núcleo Cazumbá em 1986, Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, Sena Madureira, AC.

Figura 8 - Núcleo Cazumbá em 2011, Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, Sena Madureira, AC.

Fonte: Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC).

As lideranças locais, representadas principalmente pelo gestor da Resex, Padre Paulino e a irmã Fábia, discutem a criação da Associação dos Seringueiros. Inicia-se a mobilização da comunidade motivada pela vinda de Chico Mendes a Sena Madureira (AC), dando início ao trabalho de sensibilização dos moradores para fazerem parte de uma Reserva Extrativista. A preocupação com o desmatamento e a conservação dos castanhais e dos seringais motivou a luta pela transformação do território em Reserva Extrativista, como relembra o Morador 14:

A gente reuniu e graças a Deus foi todo mundo para cidade resolver, com a benção de Deus e ajuda das pessoas. Porque a gente que com tantos anos que a gente morava aqui ficar num lote num pedaço de terra de 500 por 1000, a gente achou que não ia dar para sobreviver. E também outra coisa que a gente achou que nas estradas de seringa da gente tem aqui tem um castanhal, praticamente esse castanhal ia ser destruído muito rápido, porque ia vim pessoas de fora e aí tem que desmatar (MORADOR 14, 44 anos).

Uma das várias decisões tomadas ao longo do processo de luta pelo território e que foi essencial para que se alcançasse o objetivo de criar a Reserva Extrativista Cazumá-Iracema, foi a parceria firmada com o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama): “Deus deu a sabedoria para gente escolher na época entre Incra e Ibama. [...] Aí nós escolhemos ficar do lado do Ibama”, afirma o atual gestor da Resex.

Durante todo o processo nosso principal entrave foi o INCRA, que desde 1.986, tenta se apossar de parte da área ocupada pelos seringueiros para implantação de Projetos de Assentamento e até hoje sustenta a sua posição, afirmando que não vai ceder as áreas ao IBAMA para criação da Reserva, apesar do compromisso assumido, quando por ocasião de nossa estada em Brasília, pelo próprio Presidente do INCRA, perante o Presidente do IBAMA e o Coordenador do CNPT, de que iria repassar toda área que fosse necessária, dentro do perímetro estabelecido para a Reserva (trecho retirado da carta da comunidade ao Presidente da República Federativa do Brasil de 2001, MMA 2007, p. 179).

Entre os moradores mais antigos existe um sentimento de dever cumprido por terem acertado com relação ao que seria melhor para todos ao implantar a Resex, principalmente em se tratando da terra. Para os moradores da Cazumbá-Iracema aqueles que optaram pelo assentamento da Boa Esperança, proposto pelo Incra, não fizeram a escolha certa, uma vez que não se adaptaram a realidade imposta pelo projeto. A comunidade do Cazumbá tinha consciência e confiava na decisão de suas lideranças, uma vez que visavam à posse das terras e a melhoria de vida do coletivo.

Muito mais que a parceria com o Ibama, foi a influência da Igreja Católica/Povo-de-Deus (Figuras 9 e 10), nos anos 70, que iniciou todo o movimento da luta pela terra com a construção das Comunidades Eclesiais de Base (CEB). É nos espaços das CEB que se uniu fé e vida:

Vida à luz do evangelho. Evangelho lido do ponto de vista dos

“oprimidos”. Oprimidos evangelizados que deveriam se tornar eles

mesmos agentes de pastoral, ao lado do clero e de outros leigos oriundos de várias classes sociais. Isto é, esta proposta implicava em mudanças no universo religioso e em uma articulação constante entre ser cristão e participar da transformação tanto da Igreja, quanto da sociedade. Em suas próprias palavras: participar da caminhada (NOVAES, 1997, p. 119).

Figura 9 - Comunidade do Núcleo Cazumbá durante pregação da palavra de Deus em 1984, Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, Sena Madureira, AC.

Fonte: Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (AC).

Figura 10 - Grupo de Jovens do Núcleo Cazumbá durante a 1º Congregação Jovem do Cazumbá em 1985, Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, Sena Madureira, AC.

Diante desse cenário, em 1993 a Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC – Figura 11) foi criada tendo Tiãozinho como presidente que desde 1986 já trabalhava como agente de saúde na região, e Adelino Nunes de Almeida como secretário. Adelino, importante referência religiosa, também fundou com Tiãozinho a CEB do Cazumbá.

Figura 11 - Diretoria de 1995 da Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC), Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema, Sena Madureira, AC.

Fonte: Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC).

A carta encaminhada ao Presidente da República em 14 de dezembro de 2001 pela Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC) retrata bem a dificuldade em entrar num acordo com o Incra para que cedesse as áreas para a criação da Resex:

Durante todo o processo nosso principal entrave foi o Incra, que desde 1986, tenta se apossar de parte da área ocupada pelos seringueiros para implantação de Projetos de Assentamento e até hoje sustenta a sua posição, afirmando que não vai ceder as áreas ao Ibama para criação da Reserva, apesar do compromisso

assumido, quando por ocasião de nossa estada em Brasília, pelo próprio Presidente do Incra, perante o Presidente do Ibama e o Coordenador do CNPT, de que iria repassar toda área que fosse necessária, dentro do perímetro estabelecido para a Reserva (MMA, 2007).

Porém, a Associação não tinha a participação e envolvimento dos filiados devido a distância entre as Colocações19 e as estradas20 de seringa que dificultavam a comunicação e a vida na comunidade, não avançando com suas propostas. Então, os moradores antigos decidem trazer outras famílias para morar no Núcleo Cazumbá, dividindo tudo que tinham com elas, principalmente a terra. É nesse momento da história de criação da Cazumbá-Iracema que se inicia a construção da relação de poder dos moradores antigos com os novos moradores, representada pelas normas de convivência e apropriação privada de recursos naturais presentes em suas Colocações.

Uma das etapas mais importantes e estratégicas para a criação da Resex foi convidar famílias de comunidades mais afastadas e que confiavam neles para residir no Cazumbá, com o intuito de fortalecer o movimento. Essa era uma forma dos moradores antigos terem seus direitos mantidos, sem expor a relação de poder sobre as famílias convidadas. Destaco o fato do discurso do Tiãozinho ao descrever a forma com que essas ações foram pensadas, voltadas principalmente para a sua figura, ser reproduzido por outros moradores, como observado nas falas do Entrevistado 7 e do Morador 11: “Era necessário trabalhar junto e organizado a fim de facilitar o alcance de benefícios para o coletivo” (ENTREVISTADO 7, 44 anos).

O Tiãozinho era o cara que fez esse papel todo, buscar

conhecimento. […] A Reserva era mais interessante pra gente ter

mais terra. Desde pequeno participando. Foi conseguindo benefícios a partir da Associação, projetos, crédito habitação, acordo de convivência com a comunidade e associação, pensando no presente e futuro (MORADOR 11, 30 anos).

A chegada da primeira família convidada a residir no Cazumbá data de 1993. Haviam critérios na escolha dessas famílias, como a crença religiosa (catolicismo) e o parentesco com os moradores antigos. “A gente não chamou qualquer família, a

19De acordo com Tocantins (1979, p. 166), as colocações são definidas como “o lugar na selva, sua

barraca, suas „estradas‟”.

20Cunha (1994, p. 213) explica que “estrada” é a “original medida agrária. A unidade não é o metro – é a seringa; e como em geral 100 árvores, desigualmente intervaladas, constituem uma „estrada‟”.

gente chamou famílias equilibradas que já tinham um trabalho religioso com aquela família. Só teve uma que eu trouxe por caridade, essa que eu trouxe por caridade até hoje me dá trabalho”, explica Tiãozinho ressaltando a importância do envolvimento com a religião católica. Segundo ele, a família trazida por caridade é católica, mas não participa das atividades da igreja. Foram estipulados critérios na seleção das famílias com as quais eles, os moradores antigos do Núcleo Cazumbá, dividiriam “suas terras”. Os critérios condiziam com os interesses daquele grupo em permanecer ditando regras que os beneficiasse.

É no relato da criação da Resex que o gestor menciona pela primeira vez a maneira com que se relaciona com a terra, recurso que se tornaria comum com a criação da Resex e que poderia ser usado igualmente por todos. Ele deixa transparecer a imagem que os novos moradores deveriam ter dele, a de “dono” das terras do Núcleo Cazumbá. A apropriação privada do recurso comum é o primeiro indício do início de uso de poder sobre os novos moradores.

O local escolhido para reunir as famílias como estratégia para fortalecer o movimento era da família do Tiãozinho, o que novamente reforça a relação de poder sobre aqueles que escolhessem morar ali: “Aquela área era minha, dos meus pais e meus avós”, explica. Aqueles que aceitassem o convite teriam que viver seguindo as regras e normas construídas por eles, o que viria a ser chamado de Acordo de Convivência, ou seja, teriam que seguir um “regramento” predeterminado. A partir desse momento, a relação de poder que os patrões tinham com os seringueiros passa a ser praticada pelos “donos” daquele território: as famílias dos moradores antigos. Essa relação de poder associada à terra será discutida no Capítulo 4.

A estratégia era clara, morando mais próximos uns dos outros facilitaria a comunicação entre eles e a busca por benefícios, pois juntos teriam chances maiores de serem ouvidos. Além de convencer as famílias a vir morar nas terras da sua família, Tiãozinho precisou sensibilizar seus familiares a dividir aquele terreno.

Acreditar na organização das ações foi essencial para o envolvimento das famílias para a criação da Reserva Extrativista, como menciona Tiãozinho: “Espírito da coletividade e um pouquinho da história da vaquinha21

. Nós ganhava em

21 A “história da vaquinha” a que se refere é conhecida por todos os moradores da Cazumbá-Iracema. Ela trata da vida de uma família pobre que só possuía uma casa simples e uma vaca. Todo o sustento dessa família vinha desse animal. Certo dia a família hospedou um viajante que ao entender a dependência que a família tinha pela vaca, resolve matá-la depois de ter que ir embora. Anos depois,

organização, infraestrutura e escola”. Seus familiares decidiram confiar nele e em suas ideias: “Eles ainda são disso, de acreditar no que você diz”, relata a Entrevistada 2, 25 anos. Essas falas refletem o que Giddens (1991) denominou de confiança básica construída na institucionalização dos laços pessoais e códigos de sinceridade e honra.

Convencer os moradores a se mudarem para o Cazumbá não foi uma tarefa fácil. Mesmo diante das vantagens que teriam ao se organizar, também houveram aqueles que mostraram resistência à mudança: “Meu esposo que não queria, nunca quis, ele dizia assim: „se Reserva fosse bom todo canto do mundo tinha Reserva‟”, relata a Moradora 10, 44 anos. “Foram muitas noites e sacrifícios para as pessoas aceitarem a Reserva”, completa o Morador 14 (44 anos). Essa situação retrata bem o que Granovetter, citado por Aguiar (1991), relata sobre os fatores que são levados em consideração pelos sujeitos ao tomar decisões coletivas, por exemplo o número de envolvidos e a interdependência dessas decisões no futuro. Neste caso, eles decidiram arriscar uma nova vida num lugar diferente, deixando tudo que possuíam para trás. Além disso, os moradores das outras comunidades cooperaram com o grupo do Núcleo Cazumbá para obter um benefício coletivo, sem que houvesse a coerção.

Vários foram os motivos que fizeram com que diversas famílias deixassem para trás o pouco que tinham para viver uma nova vida no Núcleo Cazumbá, ou seja, havia um interesse coletivo. A confiança mútua construída nesse momento a partir do princípio de troca social (OSTROM, 1998), registra o interesse coletivo dos moradores antigos e novos de fazer parte de uma Reserva Extrativista, ainda que tenha propiciado maiores benefícios para os grupos de moradores antigos. As facilidades como a proximidade com Sena Madureira, a oportunidade de educação para os filhos e a segurança foram os fatores mais ressaltados pelos novos moradores. Antes as famílias viviam isoladas, dificultando muito a vida no lugar onde moravam, como relata o Morador 3, 71 anos, que morava nos Gama: passando novamente pela região, depara-se com uma próspera propriedade e decide parar para perguntar sobre a humilde família que ali residia anteriormente. Como suspeitou, a mesma família ainda permanecia naquele local. Ao perder seu único sustento, teve que sair da sua zona de conforto para buscar novas formas de sobrevivência, conquistando muito mais do que possuíam antes. Assim também foi o raciocínio de Tiãozinho, para convencer seus parentes que ao abrir mão do seu espaço, tornando-o de uso comum com outras famílias, haveria um ganho muito maior como consequência, a criação da Reserva.

“Tiãozinho trouxe nós para fazer uma comunidade e morar tudo junto. Lá é muito longe e não tinha nada. A gente veio pelos estudos e para ficar mais perto de Sena Madureira”.

A participação do Conselho Nacional dos Seringueiros, da Igreja Católica, da Pastoral da Terra e do Sindicato dos Seringueiros foi essencial para a concretização do objetivo do movimento. O interesse em tornar aquele território uma Reserva Extrativista era por se tratar de um assentamento diferenciado para o extrativista, respeitando as colocações, onde as terras não são demarcadas.

Fortalecidos, mobilizados e decididos, os representantes da Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá (ASSC) sugerem a criação da Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema ao Ibama, em 1999, propondo abranger, além da comunidade do Cazumbá, toda a região do rio Caeté. Então, conforme o Decreto de 19 de setembro de 2002, art. 1º, foi criada a Resex que leva o nome das duas comunidades que tiveram maior participação no processo, tendo como objetivo garantir aos moradores a manutenção de sua cultura e forma de vida tradicional.

Art. 1º Fica criada a Reserva Extrativista do Cazumbá-Iracema, nos Municípios de Sena Madureira e Manoel Urbano, no Estado do Acre, com os objetivos de assegurar o uso sustentável e a conservação dos recursos naturais renováveis, protegendo os meios de vida e a cultura da população extrativista local (Decreto de 19 de setembro de 2002).

O apoio da Igreja Católica na figura do Padre Paolino Baldassair ao movimento dos seringueiros somado às instituições do poder público e da sociedade civil de Sena Madureira culminaram na criação da Resex Cazumbá-Iracema (MMA, 2007). Putnam (2006, p. 180) afirma que “quanto mais elevado o nível de confiança numa comunidade, maior a probabilidade de haver cooperação. E a própria cooperação gera confiança”. Como nessa afirmação, posso dizer que a criação e o fortalecimento nas diferentes relações sociais resultaram na cooperação necessária para que fosse possível alcançar o objetivo maior do grupo, a criação da Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema.

Diante do contexto sociohistórico e cultural de criação da Cazumbá-Iracema emergem elementos das relações sociais trazidos por Ostrom (1998 apud SABOURIN, 2010) e que permanecem presentes no cotidiano dessas famílias, como reciprocidade, confiança e reputação, melhores discutidos na próxima seção.

3.3. A Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema: relações de confiança, reputação