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A espiritualização do pneûma na antiguidade tardia

1. ESPÍRITO E ORDEM, ESPÍRITO E LETRA

1.2. A espiritualização do pneûma na antiguidade tardia

O pensador judeu Fílon de Alexandria realizou um maiores pontos de virada na temática do espírito ao relacionar o pneuma dos estoicos à concepção bíblica de ruah, o sopro divino pelo qual o Deus descrito no livro do Gênesis dá a vida. Nem por isso, se pode dizer que esse impacto tenha se dado por uma novidade abrupta do monoteísmo abraâmico sobre o paganismo ou mesmo pela inserção de uma tradição religiosa alienígena na cultura ocidental clássica, visto que ele próprio foi um autor cujo pensamento surgiu dentro de um contexto profundamente eclético.

Embora tenha se esforçado para ler a filosofia ocidental amparado por conceitos da Bíblia judaica, trabalhou sempre com a Septuaginta, ou seja, a versão grega dos escritos sagrados, sendo

discutível se ele próprio dominava a língua hebraica.50 Isso, por

conseguinte, não quer dizer que o autor não dominasse conceitos básicos de sua religião, mas que teve uma relativa liberdade e pouco receio em elaborar conceitos novos, aproveitando-se até mesmo de problemas da tradução do hebraico para o grego nas escrituras. Aliás, o choque entre a religião hebraica e as escrituras em grego de que dispunha foi a base para seu método analógico de interpretação, o qual considerava muito mais justificável do que as leituras literais da Bíblia. De todas as maneiras, como será possível notar, o conceito de analogia em seu pensamento demonstra um esforço de pensar no ambiente eclético da Alexandria do período ptolomaico. E a espiritualidade nesse contexto cosmopolita passa a ser considerada também como um problema linguístico.

No que diz respeito às suas conclusões metafísicas, Fílon dá um grande salto não apenas para a cultura eclética da Alexandria do século I a. C., mas também para a própria doutrina judaica. Neste sentido, há de

50

Cf. VERBEKE, Gérard. L’évolution de la doctrine du Pneûma, du stoicisme à

S. Augustin. Paris: De Brouwer; Louvain: Éditions de l’institut superieur de

se afirmar que a concepção hebraica de espírito ou sopro (ruah) é muito anterior cronologicamente ao século I da era cristã. Já no livro do Gênesis, componente do Pentateuco, principal escritura da religião judaica, Deus teria dado ao homem na hora da criação um sopro vital para elevá-lo além de um molde de barro. “Então Iahweh Deus modelou o homem (adam) com a argila (adamah) do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida (ruah) e o homem (nefesh) se tornou um ser vivente.”51

A vida do homem criado do barro em seu estágio final, portanto, se dá por um sopro e, de modo semelhante ao pensamento grego antigo, a vida se relacionaria com a respiração. A utilização de ruah é abundante no conjunto dos textos sagrados do judaísmo, podendo ser encontrada também em Eclesiastes (9, 5-6), Jó (32, 8), Isaías (40, 12- 13), entre outras passagens.

Fílon de Alexandria, com uma vasta erudição sobre a filosofia grega que lhe antecedeu, tendo lido o Gênesis em grego, escreveu o sopro de Deus por meio do termo pneûma. Contudo, além de ter usado o termo para se referir ao ar, ao princípio vital dos estoicos ou mesmo

como o entendimento,52 a grande novidade do autor está no

entendimento do pneûma como um sopro profético. Em De Vita Mosis Fílon narra um episódio em que o profeta vai falar ao povo e, subitamente, fica acometido pela possessão do espírito divino. “Então ele lhes falou ainda de pé. Mas após um curto período de tempo ele ficou inspirado por Deus e, cheio do Espírito Divino (katapneusteìs) e também sob a influência daquele Espírito que foi acostumado a estar nele, profetizou nesses termos...”53

Quando Moisés recebe o espírito,

51

Gênesis, 2, 7. Para as citações bíblicas utilizou-se no trabalho as traduções da edição em língua portuguesa coordenadas por Gilberto da Silva Gorgulho, Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson da Bíblia de Jerusalém, a qual considerou os textos originais em aramaico, hebraico e grego e a versão francesa para as notas textuais e introdução: BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

As citações subsequentes apenas trarão a numeração canônica do texto bíblico e sem abreviações, não fazendo referência à página da edição utilizada, visto que a informação não traria mais precisão e tampouco ajudaria na comparação com outras versões do texto bíblico.

52

Os quatro diferentes usos aqui tomados foram objeto de estudo de Gérard Verbeke, 1945, p. 236-260.

53

Tradução nossa cotejada com a versão inglesa YOUNG, C. D. The works of

Philo Judaeus, v. 3. Londres: Henry G. Bohn, 1885, p. 39. Original: “καὶ ταῠτα

μὲν ἔτι καϑεστὼς διεξῄει· μικρὸν δ΄ ἐπιστχὼν ἔνϑους γίνεται καταπνευσϑεὶς ὑπὸ τοῠ εἰωϑότος ἐπιφοιτᾶν αὠτῷ πνεύματος καὶ ϑεσπίζει προφητεύων τάδε·”

tem sua razão abandonada para que o próprio Deus dos judeus profetize em favor de seu povo. Esse transcendentalismo que vai elevar a sabedoria maior a um nível não mundano e não humano também vai, conforme Reale, “transportar a teologia do âmbito da física (que advém pura cosmologia) para o âmbito da ética e por expressamente como

momento culminante da ética o conhecimento do criador.”54 Como foi

visto anteriormente, o termo pneûma sempre se relacionou com algum conteúdo de cunho teleológico como, nos estoicos, através da propagação da harmonia do kósmos. Fílon de Alexandria, por sua vez, elevou a noção de pneûma a uma indistinção com a divindade superior, de modo a legar um conceito de espírito dificilmente dissociável de uma concepção religiosa de sagrado. É nesse sentido o entender de Levison quando afirma sobre Fìlon que “Seu movimento para além da posição estoica, de fato, é o maior indicador de como ele estima o sopro de Deus e de quanto considera este fragmento do espírito divino como superior ao puro éter ou mesmo como ele se compromete com a convicção de

que o espírito interior é não-criado e imaterial.”55

É bem verdade que o pneûma enquanto possessão por um deus possui uma semelhança gritante com a noção platônica de inspiração divina ou entusiasmo. De fato, o próprio Fílon chega a comparar que o anjo (aggélous) das escrituras se correspondia com os (daimonas) dos filósofos, como em Platão nos diálogos Íon (675d-e) ou A Répública

(620d).56 Contudo, diferentemente do platonismo, Fílon vê um sentido

Versão obtida em: Philo Judaeus De vita Mosis (ed. L. Cohn) Philonis

Alexandrini opera quae supersunt, v. 4. Berlim: Reimer, 1902 (repr. De

Gruyter, 1962), pp. 119–268. 54

REALE, Giovanni. Storia della filosofia antica, v. 4. Milão: Vita e Pensiero, 1997, p. 267, tradução nossa. Original: “Filone, infatti, trasporta la teologia

dall’ambito della física (Che diventa pura cosmologia) a quello dell’ética e pone espresamente come momento culminante dell’etica la conoscenza del Creatore.”

55

LEVISON, John. Filled with Spirit. Cambridge: Wm. B. Eerdmans, 2009, p. 148, tradução nossa. Original: “His movement away from the Stoic position, in

fact, is a key indicator of how highly he prizes God’s inbreathing, how much he considers this fragment of the divine spirit to be superior to the purest aether, how commited he is to the conviction that the spirit within is uncreated and immaterial.”

56

No estudo sobre o espírito entre os judeus do século I, John Levison explora bastante o tema e elenca a seguinte passagem de Fílon, aqui traduzida ao português: “Estes são chamados demônios pelos outros (que não Moisés) filósofos, mas ‘anjo’ é o modo sagrado de recordá-los ou ainda mensageiros,

positivo no abandono momentâneo do intelecto (noûs) em favor do espírito (pneûma) para a vinda da verdade. E a verdade a partir de então passa a ser: a) advinda de uma inteligência não materializada e, principalmente, b) se dá na forma de revelação profética. Portanto, Fílon “inaugura a aliança entre fé bíblica e razão filosófica helênica, que era destinada a possuir ainda maior sucesso com a difusão da doutrina cristã e da qual deverão surgir as categorias do pensamento dos séculos sucessivos.”57

A revelação por um espírito profético em Fílon de Alexandria passa, por sua vez, a ser a principal fonte da antiguidade para a elevação do pneûma rumo a uma noção de transcendência. E assim o fazendo, abre caminho para a espiritualização do sopro, a qual foi continuada pelos evangelhos cristãos bem como pela teologia que se seguiu. Tal consideração é suficientemente aceita mesmo por filólogos que se especializaram sobre a discussão acerca do espírito na antiguidade, independentemente das divergências que tenham tido entre si. O belga

Gerard Verbeke58, nesse sentido, discorda do alemão Hans Leisegang59

por este ter supostamente superestimado o ecletismo no pensador judeu. Já o trabalho mais atual de John Levison60 discorda tanto do Fílon platônico descrito por Verbeke quanto do helenista de Leisegang por sustentar um necessário impacto dos estudos oraculares de Plutarco sobre Fílon. Ressalvadas as opiniões dos respectivos estudiosos acerca utilizando-se de um título apropriado, pois ambos transmitem a vontade do Pai a Seus filhos e informa aos seus filhos a necesidade do Pai.” Original: “These are

called 'demons' by the other [thanMoses] philosophers, but the sacred record is wont to call them 'angels' or messengers employing an apter tide, for they both convey the biddings of the Father to His children and report the children's need to their Father.”

57

REALE, Giovanni. Storia della filosofia antica, v. 4. Milão: Vita e Pensiero, 1997, p. 250, tradução nossa. Original: “inaugura quell’alleanza fra fede biblica

e ragione filosofica ellenica, che era destinata ad avere così larga fortuna con la diffusione del verbo cristiano, e dalla quale dovevano scaturire le categorie del pensiero dei secoli sucessivi.”

58

VERBEKE, Gérard. L’évolution de la doctrine du Pneûma, du stoicisme à S.

Augustin. Paris: De Brouwer; Louvain: Éditions de l’Institut superieur de

philosophie, 1945. 59

LEISEGANG, Hans. Pneuma Hagion. Der Heilige Geist. Das Wesen und

Werden der mystisch-intuitiven Erkenntnis in der Philosophie und Religion der Griechen. Leipzig: B; G; Teubner, 1919.

60

LEVISON, John. The spirit in first century judaism. Boston-Leiden: Brill Academic Publishers, 2002.

de qual fonte da tradição foi mais impactante em Fílon, é notável como os três filólogos são unânimes em considerar Fílon de Alexandria como a principal fonte do conceito cristão de espírito que irá se suceder nos séculos seguintes. Sendo assim, para uma inserção inicial do leitor brevemente na complexidade do termo espírito por via da etimologia e da história do termo, o emprego do termo pneûma por parte de Fílon de Alexandria é de suma importância, visto que consistiu no ponto de virada para rumo a uma espiritualidade não mundana, não corporal e não adstrita à lógica. Essa transcendentalização foi a maneira encontrada por Fílon para fazer valer a lei da Torá mesmo no eclético mundo helênico. Acerca desse problema, em última instância, Fílon de Alexandria procurou colocar em conjunção a Lei hebraica com o kósmos helênico e, dessa união, surgiu o neologismo kosmopolítes, isto é, aquele que,

habitando o mundo (ou firmamento), segue a Lei.61 Ao empreender esse

processo ascensional, Fílon tem a meta de intuir um sentido divino subjacente para além do sentido superficial do mundo dos homens. Mas o encontro desse sentido superior deve partir do inferior, razão pela qual a alegoria (allegoresis) é um conceito chave concebido por Fílon para encontrar uma sacralidade e eternidade em um mundo ecumênico e em constantes mudanças. “O método de interpretação desenvolvido por Fílon é chamado Allegoresis; o padrão de problemas pressuposto engendrado pelo método compreende a concepção como a Palavra de Deus, as emissoras de razão e revelação, bem como de fé e razão, e a

concepção da filosofia como a serva das escrituras.”62

E essa separação entre um sentido subjacente e outro superficial marcou as letras cristãs: tanto o Evangelho como, principalmente, a patrística, isto é, a teologia dos primeiros padres da Igreja entre os séculos I e VI d. C. De qualquer modo, com Fílon, o pneûma não apenas passa a ser transcendentalizado, ou seja, passa a ser considerado um fragmento divino e não criado, como também será a base para se pensar uma significação além da literalidade. Na literatura cristã, como se verá em seguida, o espírio passa a ser um contraponto de letra.

Os principais vestígios escritos do cristianismo primitivo hoje se encontram dispostos principalmente no Novo Testamento da Bíblia, o

61

Esse estabelecimento do termo kosmopolítes, bem como a sutentação de que Fílon inaugura o método alegórico, é defendido especialmente por Eric Voegelin em sua obra A era ecumênica. Sobre o assunto: VOEGELIN, Eric. A

era ecumênica. Tradução de Edson Brini. São Paulo: Loyola, 2010, p. 84.

62

VOEGELIN, Eric. A era ecumênica. Tradução de Edson Brini. São Paulo: Loyola, 2010, p. 83.

qual reúne especialmente as cartas para a disseminação da boa nova, conhecidos como os quatro evangelhos canônicos, e as outras epístolas que documentam as primeiras pregações e organizações cristãs na antiguidade, além do obscuro livro do Apocalipse de João, de caráter profético. É possível perceber mesmo dentro de cada evangelho ou cada epístola usos diferenciados do termo pneûma.

A título de ilustração, já no Evangelho de Lucas há uma passagem interessante que relaciona a divindade com um princípio vital absoluto e onipotente. Ela trata do anúncio à virgem Maria de que ela seria fecundada pelo Espírito Santo (pneûma hágion) para dar à luz o filho de Deus. “Maria, porém, disse ao anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?’ O Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo (pneûma hágion) virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus.’”63

Essa revelação deixa Maria entusiasmada a ponto de contagiar terceiros, o que acontece quando se encontra com sua prima Isabel, também grávida: “Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo

(pneûma hágion)”64 Mas, além dessa utilização do pneuma como um

princípio vital santo ou mesmo a disseminação desse sopro, em Atos dos Apóstolos, atribuído a Lucas, há outras menções muito distintas aos poderes do Espírito Santo, por exemplo no momento em que Jesus, já ressuscitado, anuncia aos seus seguidores que o Espírito Santo desceria

sobre eles para lhes auxiliar nas horas mais difíceis.65 Outra curiosidade

do mesmo texto está nas potencialidades adquiridas por aqueles que recebem o Espírito, como a possibilidade de bênção, curas e até mesmo do dom da glossolalia, isto é, do falar em diversas línguas, cujo maior exemplo se encontra no episódio de Pentecostes: “Apareceram-lhe, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia a se

exprimirem.”66

As epístolas de Paulo, no entanto, são as fontes que mais marcam a ampliação dos significados de pneûma no ocidente da antiguidade tardia e, por isso mesmo, são o principal material de estudo para a pneumatologia bíblica e uma valiosa fonte para os estudos filológicos 63 Lucas, 1, 34-35. 64 Lucas, 1, 41. 65 Lucas, 1, 8. 66

que se fizeram sobre o tema na modernidade. Assim como em Lucas, o termo espírito é abundante e também se dá em abundantes sentidos. Uma das possibilidades de leitura é a de que Paulo reforça uma espiritualidade oposta à materialidade. Em Tessalonicences, o apóstolo perfaz uma ênfase pela disposição lado a lado dos termos pneuma, psyché e sôma. “O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito (pneuma), a alma (psyché) e o corpo (sôma) sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da vinda do nosso Senhor Jesus Cristo.”67

Essa passagem sobre a tripartição do ser em corpo, alma e espírito gerou diversas discussões entre teólogos e filólogos. Sobre o tema, Büchsel procurou trazer referências à tradição hebraica e, entre as conclusões de tal esforço, afirmou que a separação entre pneûma e psyché estaria de acordo com toda a tradição hebraica de ruah.68 No entanto, não é possível afirmar que não haja alguma separação entre o espírito e a alma quando Paulo, na Primeira Epístola aos Coríntios, expressamente diferencia, cosmologicamente, um espírito que vem de Deus e que diverge do espírito do mundo, em um sentido contrário, portanto, à pneumatologia estoica. Também diferencia, ao nível da pessoa, o homem psíquico, que raciocina individualmente e o homem espiritual, que pensa comunitariamente de acordo com o Espírito Santo e a lei interior dada por Cristo.

Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que vem de Deus, a fim de que conheçamos os dons da graça de Deus. Desses dons não falamos segundo a linguagem ensinada pela sabedoria humana, mas segundo aquela que o Espírito ensina, exprimindo realidades espirituais em termos espirituais. O homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus. É loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual,

67

Tessalonicenses, 5, 23. 68

Cf. BÜCHSEL, Friedrich. Der Geist Gottes im Neuen Testament. Gütersloh: Bertelsmann, 1926. “Es ist irrig zu behaupten, dass Paulus mit (pneuma) nur

den göttlichen, nicht den menschlichten Geist bezeichne, oder dass (pneuma), wo es den menslichen Geist bezeichne, immer den göttlichen Geist Menschen bezeichne.” (p. 16) Tradução: “É errôneo afirmar que Paulo com (pneuma)

denote somente o divino, e que não esclareça a alma humana, ou que o espírito (pneuma), onde ele implica o espírito festivo da alma, sempre se refira ao espírito divino.”

ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado. ‘Pois quem conheceu o pensamento do Senhor para poder instruí-lo?’ Nós, porém, temos o pensamento de Cristo.69 Essa separação operada por Paulo em separar o pneûma principalmente da psyché e dar um sentido novo de espiritualidade que se opõe à materialidade, entretanto, não isola o termo em uma significação unívoca. Pelo contrário, ainda em 1 Coríntios é possível perceber um uso que muito se aproxima do de alma pessoal:

“Tranquilizaram o meu espírito e o vosso.”70

Sobre essa grande diversidade de sentido, o filólogo alemão Hans Leisegang opôs uma leitura do pneûma em Paulo diretamente oposta àquela de Büchsel. Abdicou de encontrar uma concisão do Novo Testamento com o Antigo e, assim, preferiu lê-lo no contexto profundamente eclético da cultura helenista pervivente no Império Romano nascente, de maneira que destaca no apóstolo Paulo sua profunda originalidade em aceitar o Messias e seu reino milenar não exatamente tal como o rei prometido dos textos proféticos judaicos, senão como um messias pneumático interiorizado nas almas dos fiéis.

A doutrina judaica tardia sobre o entrerreino, a anterior doutrina sobre o reino final dos devotos, sobre o reinado do Messias na terra, sobre a vitória de Israel sobre seus inimigos, são todas despojadas de seu conteúdo concreto. Em Paulo não há nenhuma soberania do Messias como um rei corporificado em um reino terrestre, mas sim como um Cristo pneumático que entra nas almas dos fiéis. A luta de Cristo com as potestades angélicas e com os demônios inferiores, eles que reinavam no ar e nas salas inferiores do céu, é pensada de outra forma do que a ida para o Hades do Salvador, ao mesmo tempo em que entra a morte como soberana no lugar de Satanás.71 69 1 Coríntios 2, 12-16. 70 1 Coríntios 16, 18. 71

Agradeço a Fernanda D’Avila pelo auxílio com as traduções de citações em língua alemã. LEISEGANG, Hans. Der Apostel Paulus als Denker. Leipzig: J.C Hinrichs’sche Buchhandlung, 1923, p. 13. Original: “Auch die spätjüdische

Lehre vom Zwischenreich, der dem Ende vorausgehenden Herrschaft der Frommen, vom Königtum des Messias auf Erden, vom Siege Israels über seine

Dentro da opinião de Leisegang, que se dedicou a pensar as mudanças e significações do termo pneûma nas cartas de Paulo, o reino de Cristo não veio como uma encarnação de todos os reinos anteriores dos judeus na figura de um novo rei, mas como o despojamento de todo conteúdo concreto dessa figura. O resultado da vinda do messias, portanto, seria a criação de um Reino Espiritual que se estenderia desde o mundo dos vivos até mesmo o reino dos mortos, tendo em vista ter ele vencido a própria morte. Mas como o próprio filólogo ilustra, esse reino só se dá na interioridade dos crentes, como uma bênção que nada mais consiste do que na disseminação do espírito na alma dos fiéis. Essa leitura, aliás, demonstra-se muito pertinente para a conclusão de que o reino de Cristo não é corporal, mas também não é psíquico, pois não se realizaria sem a vinda do Espírito. Essa característica, por sinal, se reflete em Paulo em uma profunda descrença na especulação realizada de modo individual, o que foi manifesto em uma condenação da