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Essencialismo: Ismael Nery e Murilo Mendes

3. O MUNDO SOBRENATURAL (1933-1935)

3.2. Essencialismo: Ismael Nery e Murilo Mendes

Murilo Mendes em seu texto Breton, Rimbaud e Baudelaire contra-argumenta o maior fomentador do surrealismo, ao questionar a opinião de que esses dois poetas franceses estariam sendo cooptados, enquanto católicos, pela burguesia. Segundo Murilo, nem a burguesia e nem mesmo Breton compreenderiam o sentido de eternidade católico.

Breton desconhece inteiramente o catolicismo. Ele julga que essa doutrina só pode abrigar os bem- pensantes, os carolas, os conformados com a mediocridade e os fanáticos da ordem policial. Engano puro. Pretendo mesmo que o catolicismo seja mais revolucionário e explosivo que o próprio marxismo. Enquanto o marxismo espera a destruição de uma classe — a capitalista — e a instalação de um confortável paraíso na terra — o otimismo de adolescente!... — o catolicismo

espera a destruição do universo inteiro. Não ficará pedra sobre pedra.316

Independentemente do impacto que Breton tenha causado em Murilo Mendes, este não tinha problema algum em se aproximar do catolicismo. Mais do que isso, via nesse cristianismo uma possibilidade revolucionária e um sentido escatológico próprio. Recentemente Silviano Santiago, no posfácio ao livro Poemas, reeditado em 2014 pela editora Cosac Naify, alertou para a importância da religião para o poeta, que teria aliado um catolicismo primitivo a uma mentalidade moderna, tendo fundido futurismo e escatologia cristã de um modo muito original.317 Certamente a discussão da poesia religiosa de Murilo pode ser enriquecida com seus poemas e ensaios publicados nos periódicos católicos A Ordem e Vida.

Nesse sentido, a partir de 1934, o poeta mineiro Murilo Mendes aproxima-se da intelectualidade espiritualista católica através da

publicação de dois poemas318 na revista Vida, em dezembro de 1934;

além de já ter recebido elogios de Tristão de Athayde no mesmo

periódico em junho do mesmo ano319. No primeiro desses poemas,

intitulado Natal de 1934, Murilo realiza uma perturbação da tradição cristã, opondo a uma imagem recorrente do nascimento do messias figurações de objetos suficientemente banais para distorcer o mito e

316

MENDES, Murilo. Breton, Rimbaud e Baudelaire. Anuário de Literatura. Florianópolis, n. 9, p. 50, 2001.

317

SANTIAGO, Silviano. Poesia fusão: catolicismo primitivo/mentalidade moderna. (Posfácio) In: MENDES, Murilo. Poemas. Cosac Naify, 2014, p. 91- 92: “Vale dizer que a crítica e os historiadores não abordavam a originalidade maior da sua poesia dentro do primeiro Modernismo brasileiro. Na verdade, Murilo deslocava o centro de atenção da ruptura estética insuflada pelos manifestos futuristas de Filippo Marinetti e pela vanguarda europeia que encaminhavam a literatura e as artes brasileiras modernas a uma postura construtivista e minimalista. Ao deslocar o fulcro do interesse pelo moderno no Brasil, Murilo o reorientava para dar-lhe forma inspirada na tradição do penitente medieval 317 e no ideário político-social de São Francisco de Assis. Difundia uma poética pessoal e única. Nela, a “fusão do catolicismo primitivo com a mentalidade moderna” (nos termos dele) dava origem a sintaxe inesperada e imagens complementares, paradoxais ou contraditórias.”

318

Tratam-se de dois poemas em prosa escritos especialmente para a redação de

Vida, sendo um sem título e o outro intitulado Natal de 1934. MENDES,

Murilo. Poemas. Vida, Rio de Janeiro, n. 9, p. 9, dez. 1934. 319

ATHAYDE, Tristão. Tônica literaria de 1934. Vida, Rio de Janeiro, n. 5, p. 7, ago. 1934.

fazer um presépio moderno: “E uma criança dançando segura uma esfera azul com a cruz equilibrada nela; vêm adorá-la brancos, pretos, mulatos, portugueses, turcos, russos, alemãis, chinêses, banhistas,

beatas, gatos e cachorros.”320

Mas não se trata, no caso em questão, de simplesmente destruir a tradição. Por mais chocante que possa ser a imagem ancestral do menino adorado por chineses, ou a dança relacionada à cruz, o poeta busca nessas junções um grau mais elevado de compreensão, nesse caso, o ato de uma pura adoração, capaz de entrever eternidade na aproximção de elementos díspares. Expõe, nesse gesto, uma positividade que advém da própria junção de opostos, de modo que não é individualmente que valem a banhista ou a beata, mas pela relação entre elas, cujas diferenças se atenuam na adoração do mundo e da cruz, mesmo que essas imagens tenham sido pensadas em um estado de perigo de desequilíbrio. O mesmo se poderia falar da oposição eterna entre cachorro e o gato, já que, no presépio moderno de Murilo, cada um teria seu lugar. Ítalo Moriconi, nesse mesmo sentido, pensa que o fato de Murilo Mendes ser um poeta deveras vinculado à noção de cânone, trazendo em seus versos muitas alusões a cenas bíblicas ou elementos de “alta cultura”, isso não impede que essas recorrências venham sempre no sentido de um mosaico de imagens, as quais perdem o valor absoluto de símbolo para se tornar alegorias, criando uma rede de arabescos sustentados pela tensão de elementos incongruentes. “Os grandes discursos da Bíblia e da Cultura encontram- se reafirmados pela poesia de Murilo apenas na medida em que são retalhados, reaproveitados e submetidos aos interesses do sistema de

transformações metafóricas.”321

No primeiro semestre de 1935, Murilo Mendes inicia suas contribuições na revista A Ordem, inicialmente com a publicação dos poemas do seu amigo Ismael Nery, mais conhecido por sua atuação nas artes plásticas, sendo um dos artistas brasileiros mais comumente relacionados com a estética surrealista.322 Ainda assim, foi a primeira grande divulgação dos textos poéticos de Nery e, como tal, permaneceu

320

Murilo. Poemas. Vida, Rio de Janeiro, n. 9, p. 9, dez. 1934. 321

MORICONI, Ítalo. Murilo Mendes e o cânone. In: RIBEIRO, Gilvan Procópio. Murilo Mendes: o visionário. Juiz de Fora: EDUFJF, 1997, p. 67. 322

Com relação ao assunto: LIMA, Sergio. Surrealismo no Brasil: mestiçagens e sequestros. In: PONGE, Robert. Surrealismo e novo mundo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 312; PINHEIRO FILHO, Fernando Antônio. A invenção da ordem: intelectuais católicos no Brasil. Tempo Social: revista de sociologia

por mais dez anos até que os poemas fossem novamente publicados no

jornal O Estado de São Paulo entre 1946 e 1949.323 Esse grande vínculo

afetivo da parte de Murilo em promover a obra do amigo, que faleceu em 1934 de tuberculose aos trinta e três anos de idade, demonstra também parte de um vínculo artístico inegável. Nery nunca chegou a escrever uma poética, mas uma intenção nesse sentido lhe é creditada graças aos comentários de Murilo Mendes sobre seus poemas e sobre o sistema filosófico essencialista, que teria pensado junto com o pintor paraense, o qual almejava renovar o catolicismo, cujo principal ponto de partida seria a abstração do tempo e do espaço.324 A poética de Nery, por isso, só é conhecida por intermédio de necrológios. E a revelação desse visionário falecido terá um protagonismo muito forte nas páginas de A Ordem, especialmente no ano de 1935, quando será relembrado em três números325 entre fevereiro e abril.

No primeiro conjunto de poemas publicados por Murilo Mendes em A Ordem, a prosa O Ente dos entes, escrita em 1933 e publicada em fevereiro de 1935, Ismael também faz sobressair na composição a junção de contrários.

O ENTE DOS ENTES (1933)

A minha mão gigante rasgou o céo e appareceu a figura do Ente dos entes. Houve confusão tremenda e os homen se misturavam, gritando; gritos de alegria, de dor, de espanto e de medo. Os sentidos dos homens de [sic] aperfeiçoaram e elles viram, ouviram e sentiram o que nunca tinham visto, ouvido e sentido. Houve, depois,

323

Esses textos, bem como as memórias de Murilo sobre Ismael Nery, foram posteriormente lançados no volume: MENDES, Murilo. Recordações de Ismael

Nery. São Paulo: EdUSP, 1996.

324

Murilo tentou realizar em suas análises publicadas em A Ordem em nome do amigo, sendo impossível distinguir até que ponto as ideias pertencem a Murilo ou a Ismael, de sorte que o que vem à tona é a relação entre os dois. Murilo Marcondes de Moura realizou um impotante estudo neste sentido. MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: a poesia como totalidade. São Paulo: EDUSP, 1995.

325

NERY, Ismael. Poemas de Ismael Nery. A Ordem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 60, p. 87-96, fev. 1935; NERY, Ismael. Poemas de Ismael Nery. A Ordem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 61, p. 181-186, mar. 1935; MENDES, Murilo. Commentarios aos poemas de Ismael Nery. A Ordem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 61, p. 187-195, mar. 1935; MENDES, Murilo. Commentarios aos poemas de Ismael Nery. A Ordem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 62, p. 315-317, abr. 1935.

consciencia e todos se calaram. E olhavam pasmos a figura do Ente dos entes, que, para os homens era uma mulher e para as mulheres era um homem, e que apontava para tres estrellas que giravam loucamente em volta de uma grande esphera de aço polido, que tinha a cabelleira como a de uma mulher e que, serena, caminhava girando sobre si mesma, para o occidente. Depois, o Ente dos entes abriu suas vestes e mostrou no seu corpo phosphorescente tres nodoas vermelhas, duas na altura do ventre e uma em cima do coração. E falou em linguagem desconhecida. Ninguem entendeu o que disse o Ente dos entes, mas todos, no fim, sentiram um grande consolo. Na noite deste acontecimento os homens amaram como nunca tinham amado as suas amadas e estas conceberam filhos para que pudessem ver tambem o Ente dos entes, que prometteu voltar.

Houve paz temporaria.326

O título dado à prosa poética chama a atenção para uma questão metafísica, o Ente dos entes, de onde seria facilmente possível depreender alusões a uma causa primeira ou, em figurações poéticas, à Rosa Mística da Divina Comédia, ou mesmo a uma Máquina do

Mundo327 de Os Lusíadas. Essas citações não vêm para impor um

direcionamento de sentido. Muito pelo contrário, o restante do texto desestabiliza qualquer possibilidade de uma metafísica exata. Já na primeira linha, é possível notar a paronomásia em “a figura do Ente dos entes”, evocando o acontecimento de um rasgo no céu que permite ver a totalidade concentrada em um ponto, ao passo que distingue a figura débil dos entes caídos, jogo de palavras que reaparece na sexta linha. Mas, diferentemente do que se viu no poema de Murilo em que são opostos a um orbe dançante figuras aleatórias e seus contrários, em Nery os contrários são variações das próprias palavras, as quais se repetem sem receios, o que demonstra uma certa despreocupação formal. O jogo entre o alto e o baixo de um mesmo elemento, tal como o Ente e os

326

NERY, Ismael. Poemas. A Ordem, Rio de janeiro, v. 13, n. 60, p. 88, fev. 1935.

327

Por sinal A máquina do Mundo de Carlos Drummond de Andrade foi primeiramente publicado na revista A Ordem, ANDRADE, Carlos Drummond de. A máquina do mundo. A Ordem, Rio de Janeiro, v. 42, n. 11, p. 316-319, nov. 1949.

entes, vai ser repetido em outros radicais de palavras, que estarão aproximados a outras morfologicamente afins. Assim ocorre no início do texto com gritando/gritos, sentido/sentiram, viram/visto. Ao final do texto, por sua vez, essas oposições voltam em amaram/amado/amadas. Em geral as primeiras flexões morfológicas estão embaralhadas, momento em que os do-entes gritavam. Nas finais, amado e amadas estão próximos e, além disso, sucedem uma série de repetições de sons nasais, evocando talvez um embalar de ninar, talvez um mantra: “ninguém entendeu o que disse o Ente dos entes, mas todos, no fim, sentiram um grande consolo”. É possível perceber na composição de Nery um ideal de sintetização da escrita que, no entanto, vê-se forçada à repetição.

A parte interior do poema, entre a sexta e a décima quarta linha, por sua vez, destaca-se das restantes. Primeiramente, há nela um esforço descritivo por se assemelhar a uma linguagem apocalíptica, mas que falha em convencer na seriedade. Mesmo assim, é muito curioso por ser ali que se coloca uma figuração do Ente dos entes como três estrelas que giravam em torno de uma esfera de aço polido com cabelos de mulher. Isso depois aparece como um corpo de mulher, o qual teria uma estrela na púbis e duas outras nos bicos dos seios. Aí, então, o Ente dos entes falou numa língua que ninguém entendia, mas será ela que espalhará o amor e irá conjugar o amado com a amada, semeando filhos para um dia verem o Ente dos entes. Aliás, ali aparece a oposição homem/mulher, os quais vêm sempre seu outro no Ente dos entes: “para os homens era uma mulher e para as mulheres era um homem”. A esse respeito, Sergio Lima afirma que “Nery inaugurou a questão do ‘andrógino primordial’ como assunto na arte brasileira, além de se fixar em interpenetrações orgânicas pouco atentadas pela crítica acostumada à representação

acadêmica do ‘nu’ ou dos gêneros consagrados.”328

Nery dispõe a separação feminino e masculino em um nível mais elevado de compreensão de maneira a valorizar a relação entre os dois polos sem que, no entanto, essa atitude consista em um apaziguamento da tensão sexual. E, desse modo, chega a um ponto de conclusão idêntico àquele de Tristão de Athayde ao contrapor Pedro Dantas acerca de Breton: o espírito, enquanto automatismo, portanto menos intelectual e mais intuitivo, chegaria à aporia lógica de afirmar que o que é não é. A diferença entre os dois, no entanto, está na valoração relacionada a tal impasse. Enquanto Tristão toma para si o papel do filósofo guardião do

328

LIMA, Sergio. Surrealismo no Brasil: mestiçagens e sequestros. In: PONGE, Robert. Surrealismo e novo mundo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 312.

princípio da não contradição, o artista Nery vê contradições insolúveis, isto é, o homem só poderia ser completo por meio daquilo que ele não é: como pela mulher, como pela totalidade do mundo. Em outras palavras, Nery entrevê na androginia uma alegoria do princípio de tudo, causa final ou espírito.

Duas características do poema, por sua vez, devem ser destacadas por dizerem muito a respeito do que consiste a ordenação do espiritual: uma delas está no tipo de encadeamento das frases no trecho central da prosa poética de Ismael Nery, a qual se dá por meio de hipotaxes, conectando as orações hierarquicamente, mas, ainda assim, em uma ordem confusa. Essa talvez seja a principal marca sintática comum a vários poemas seus. A outra característica que deve ser desde já bem delineada é de ordem semântica, a qual consiste justamente em atribuir ao Ente dos entes o proferimento de uma língua que ninguém entendeu, mas que juntou amado com amada de modo a dar continuidade à vida. Há aqui um novo avatar da imagem mítica da língua viva, que seria a língua do espírito, ou ainda o amor que move o sol e as outras estrelas. “E falou em linguagem desconhecida. Ninguem entendeu o que disse o

Ente dos entes, mas todos, no fim, sentiram um grande consolo.”329

A pergunta metalinguística do espírito, assim, reaparece um Ismael Nery, o qual a põe logo após localizar a trindade nos principais pontos erógenos da mulher. Enquanto na cena bíblica do Pentecostes os estrangeiros compreenderam em sua própria língua o que falavam os apóstolos inspirados pelo Espírito Santo, neste caso da visão do Ente dos entes ninguém entendeu nada; ainda assim, houve consolo. Por isso mesmo, não há exatamente paródia da citação bíblica, senão um ato consciente de distorção do cânone, uma espécie de reordenação espiritual que, mesmo sendo caótica, ao final, procuraria causar efeitos de catarse.

Já o poema em versos Eu, de 1933, publicado em A Ordem, em março de 1935, retoma a economia verbal e o destaque a pares opostos em um texto lírico, cujo primeiro enfoque é dado ao Eu visto como contradições:

329

NERY, Ismael. Poemas. A Ordem, Rio de janeiro, v. 13, n. 60, p. 88, fev. 1935.

330

Não há profeta se o indivíduo não é conhecido e para quê serviriam os olhos para aqueles que são cegos? O que exsurge do poema é justamente a separação entre um sentido literal e outro espiritual. Em um nível mais direto de compreensão, o poema soaria irônico já que, exceto pela língua dos mudos, de nada serviriam os ouvidos aos surdos ou os olhos aos cegos. Essa leitura ainda fica bem demarcada pela oposição dos elementos, ao se colocar os órgãos do corpo em uma coluna vertical paralela a outra que traz os sentidos dos homens. Contudo, ao se procurar uma positividade na ascese desse eu que não vê, não ouve e não fala, nota-se que, no quinto verso em destaque, os sentidos já não aparecem em oposição ao organismo humano, como se tivessem se separado deles, levando à possibilidade de um profeta ascético, já que seria desconhecido, cego, surdo, mudo. No poema, portanto, estão em oposição a ideia dos sentidos humanos como um puro dispêndio inoperante e, de outro lado, a de graça dada por aquilo que não muda, o puro “Eu sou”. Abstraindo-se cada linha na horizontalidade, o “Eu sou” cumpre a função de unir todos os quatro primeiros versos para culminar no quinto, o qual se constitui em uma visão sincrônica de todos os outros, capaz de dar uma conotação ascética e espiritualizada às doenças dos sentidos que não permitiam a visão do mundo exterior. Assim, pela graça, pelo sentido espiritual e essencial, o poeta renasce como profeta por uma abstração do mundo e pela certeza de sentidos interiores.

Entretanto, há novamente uma duplicidade semântica que dá um destaque especial ao quarto verso, visto que, se for comparado com todos os outros, tomar-se-ia a língua como órgão corporal da região da boca. Mas a palavra também deixa transparecer um sentido de língua

330

NERY, Ismael. Poemas de Ismael Nery recolhidos por Murilo Mendes. A

Ordem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 61, p. 151, mar. 1935. Os retângulos foram

enquanto idioma, no caso específico, uma língua dos mudos. Essa língua não mecânica, portanto da ordem do espírito, traz novamente à tona a possibilidade de uma língua viva e eterna, o que culmina em um sentido universal “de quase todo o mundo”, oposta à contingência da fala humana, se for aceita a paronomásia pela aglutinação das vogais “o”, o que dá um sentido muito mais mundano, portanto de “quase todo mundo”. À língua de quase todos, Ismael Nery pensa uma língua de quase tudo.

Murilo Mendes, tão logo publicou esses poemas, tratou de intercalá-los sempre com seus comentários, que têm tanto o caráter de homenagem de necrológio quanto o de oferecer uma poética e até mesmo um sistema filosófico. O centro do pensamento de Nery, para Murilo, seria a abstração do tempo e do espaço, ou seja, tratar-se-ia de uma abstração da realidade humana, o que indiretamente implicaria em uma seleção e sincronização do conteúdo dos sentidos. Murilo, a esse respeito, afirma que: “quanto à abstracção do tempo para o homem, é necesaria [sic] no plano intelectual e moral, tanto como a abstracção do espaço. Abstracção do tempo é necessaria pelo facto da vida ser

dynamica, isto é, existir o movimento e a evolução.”331

Ora, a abstração não seria apenas a fabricação de conteúdos mentais individuais e afastados do mundo, ela seria um esforço de encontro, no lapso da curta vida humana, com a própria positividade da vida, ela seria uma vivência direta de seu movimento e de sua evolução percebendo na atualidade e em quase tudo as permanências de ancestrais e as tendências futuras. A abstração do tempo, para Murilo Mendes, seria uma atividade dependente de materiais dados pela vida vivida, mas que teriam a particularidade de dar uma centelha do dinamismo da vida em sentido lato.

O homem essencialista é portanto o homem que tendo exgotado as experiências que a vida offerece, procura extrair uma philosophia fundada nos resultados de suas selecções.

A vida é para o essencialista uma construcção que se inicia com o nascimento e que se finda com a morte. Todo o homem possue um coefficiente de energia e de tempo determinado que não poderá ser desperdiçado sem prejuízo final. Eis porque devemos dar a maior efficiencia possível ás

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MENDES, Murilo. Notas e comentários. A Ordem, Rio de Janeiro, v. 13, n. 61, p. 194, mar. 1935.

acções de nossas vidas. O essencialismo chegou á conclusão que a vida não é outra coisa senão uma fornecedora de elementos constructivos [...].332 Na poética de Nery via Murilo, a vida não é um princípio de intuitividade que se baste para a consecução da obra de arte, pois ela é “fornecedora de elementos constructivos”, de onde se pode concluir que esses elementos só trazem resultados efetivos a partir de uma atividade do artista. Reconhece-se no essencialismo a efemeriedade e precariedade de uma vida humana, mas procura-se, nela mesma, uma