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Parte I AS THERMAS E A VIDA BALNEÁRIA

1.1 A estação das águas

Estou agora no Prata. A estação das águas começa em Março, mas os hotéis já regorgitam de forasteiros. Noto na “gare”129

uma senhora luxuosamente vestida, ostentando na mão esquerda, em todos os dedos, á excepção do pollegar, anneis e “marquises” de brilhantes: verdadeira vitrina, em miniatura, da Casa Nico.

Convenhamos em que é luxo exaggerado para uma estação de águas, de mais a mais modesta como essa do Prata130, onde existe apenas meia dúzia de casa, inclusive os hotéis. É que os nossos hábitos são, a esse respeito, de uma contradicção flagrante: muitas famílias não distinguem o campo da cidade, para o effeito das “toilletes”. Querem ser sempre, estejam onde estiverem, escravas do luxo e da moda, ou por vaidade ou por ostentação. Nem mesmo as variações da temperatura as convencem. Ainda agora, sob os rigores da canícula131, vejo, na mesma estação, uma senhora com um vistoso mas pesado vestido de velludo roxo. O traje leve, próprio do calor, parece simples demais para quem, habituada a usar seda, não se póde conformar em vestir-se de outra fórma,

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Segundo Carl E. Schorke, três avaliações da cidade foram possíveis nos últimos duzentos anos: a cidade como virtude, a cidade como vício e a cidade para além do bem e do mal. Foi a partir do século XVIII que se desenvolveu a idéia da cidade como virtude, cunhada principalmente através da filosofia do Iluminismo. Voltaire, Adam Smith e Fichte formularam a visão da cidade como virtude civilizada em termos adequados a suas respectivas culturas nacionais. Opostas a essas idéias elaborou-se também no século XVIII uma contracorrente que via a cidade como vício. Olivier Goldsmith via na acumulação da riqueza, a produção de homens decadentes. William Blake e Maximo Gorki, cada qual a seu tempo, descreveram a cidade moderna como “tijolos, fuligem e imundície”, o crime social da época. Cf: A idéia de cidade no pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. In: Schorke, Op. cit.

127

RIBEIRO, Op.cit. p. 11

128 Idem, p.11

129 Estação de embarque. Aspas do autor.

130 A estação do Prata referia-se à cidade de Águas da Prata/SP, última estação de embarque e desembarque da Mogyana

antes de chegar a Poços de Caldas.

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mesmo na roça ou na fazenda, onde há também cavalheiros que só vão para a mesa de smoking ou de casaca..

O comboio, transporta a estação da Cascata, começa a ganhar as alturas. É com difficuldade, arfando, que vence as fortes rampas da estrada, nos acclives dos morros. A paizagem é differente, abandonada a planície e conquistada a serra. De lado a lado, descortinam-se aos olhos do viajante os mais lindos panoramas, que lembram aspectos da Suissa. Tem-se, ás vezes, a illusão dos lagos – são as lagoas tranquillas que dormem no fundo dos valles, algumas com pequenas ilhas verdejantes.

A locomotiva reconquista de repente a marcha célere: é que, afinal, ganhou a várzea, estando já a pouca distancia dessa supposta enorme cratera de um vulcão extincto onde se acha Poços de Caldas. E dalli a instantes, pára na estação, ponto terminal da linha, onde desembarcam as innumeras famílias que do Rio e de S.Paulo vêm fazer antecipadamente a famosa estação de aguas thermaes.132

Com o pseudônimo de Carlos da Maia, o escritor paulista Couto de Magalhães havia reunido em elegante volume as suas interessantes impressões de viagem sobre Poços de Caldas, a principal

estação de cura do início do século passado no Brasil. Decidido a fugir das elevadas temperaturas da

capital, de seus clientes e afazeres diários, o autor resolve partir para “esta formosa estância balnearia.”133

Eram quase dias findos do mês de janeiro de 1925, e na noite anterior havia chovido muito em São Paulo. Naquela manhã, “límpida e macia”134

as ruas ainda estavam molhadas, mas Carlos da Maia, já na Estação da Luz deixava São Paulo com destino “ao valle mineiro, onde pouco além da estação do Prata demora o casario branco da cidade de Pedro Sanches”135. Da capital ao vale mineiro, a viagem seria longa. Até o destino, enfrentava-se uma série de controvérsias, como a venda de frutas nacionais e de excelentes qualidades, porém fraudadas pela perspicácia dos intermediários que enganavam aos seus compradores. Acondicionadas em um daqueles pequenos cestos de taquara, forrados com espessas almofadas de papel ou jornais, as mais bonitas ficavam a vista, enquanto, as

132 MAIA, Carlos da (pseud.). Uma estação em Poços de Caldas, crônicas publicadas n’ O combate, de São Paulo, em

fevereiro e março de 1925. São Paulo: Instituto D. Anna Rosa, 1925. pp 12-14

133 MAIA, Op. cit. p. 7 134 Idem, p. 7

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outras, “occultas ao olhar perscrutador, eram verdes e incomíveis.”136

Além do que, saborear o desejado café nas estações de estrada de ferro, não soava uma boa idéia. Contraditório aquilo. Na terra clássica do café, bebia-se um líquido negro, morno e nauseante que dava engulhos no estômago. Não era a primeira vez que o autor visitava os poços de águas. Sua última estação havia sido há quatro anos. Bem lá, no início dos anos vinte, quando a cidade tomada por uma nova atmosfera mental associava a cura de suas águas termais ao inquestionável prazer dos jogos e suas diversões.

Fazer a estação já era algo desses tempos, os tempos modernos137. Porque antes, as pessoas iam ás Caldas, ou seja, dirigiam-se ao “lugar, onde se tomao banhos destas águas, ou outras artificiaes.”138 Ir ás Caldas significava banhar-se em águas termais, apropriar-se de um remédio natural para os males que maculavam enfermos desse país. Nesse tempo, ainda remoto, não havia prescrição médica ou algo parecido perante as águas medicinais. Não existiam casas de banhos e tampouco costumes fundamentados na moderna prática da Crenologia.

Fazer a estação era um termo que havia sido incorporado às práticas médicas balneárias no

Brasil, aproximadamente após o retorno do doutor Pedro Sanches de Lemos das mais afamadas estâncias hidrominerais da Europa, no ano de 1902. Médico das águas e com o auxílio patriótico do governo de Minas, Pedro Sanches havia sonhado em transformar aquele vale raso e lodoso, cortado por inúmeros ribeirões, numa estação balnear “como as da Europa”139, que surgiam “do meio da verdura e

das flores”140

.

Em 1867, o médico iniciara seus estudos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Nessa época rumores já davam conta da cura de certas moléstias através das águas milagrosas encontradas nos rincões do nosso país. Interessado nas histórias que ouvia, Pedro Sanches de Lemos dirige-se em 1873, um ano após a sua formatura, para os campos das caldas, a fim de averiguar a veracidade dos relatos que então ouvira. Surpreendido com as curas que se realizavam e com a freqüência cada vez

136 MAIA, Op.cit. p. 10

137 “A definição de termos como modernidade ou moderno, apesar de serem definidos como uma qualidade dos tempos

atuais ou próximos daquele que está discursando, e ou pertencente aos dias atuais, passa a representar e identificar a sociedade no momento em que o processo de industrialização se torna definidor das relações de produção e comércio, ou seja, a sociedade moderna é vinculada ao sistema de produção capitalista implantada a partir do século XIX”, de acordo com DEZAN, Waldir Vilalva. A implantação de uma modernidade: o processo de verticalização da área central de Campinas. Dissertação de mestrado apresentada a Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Universiade Estadual de Campinas, 2007.

138 Vocabulário Portuguez Latino. A el Rey de Portugal D. João V pelo padre Dr. Raphael Bluteau. Ano 1712-1729.

Coimbra.

139 LEMOS, Pedro Sanches de. Op. cit. p. 176 140

maior das pessoas que de longes lugares chegavam, esse doutor das águas, estudou durante quarenta e dois anos ininterruptos a ação milagrosa das águas sulfurosas na Vila de Nossa Senhora da Saúde, hoje cidade de Poços de Caldas.

Em 1884, ano de publicação do seu primeiro livro “As águas thermaes de Caldas – Província de Minas Gerais”141

, o médico afirmava que o conhecimento popular sobre a eficácia das águas medicinais, já era anterior ao ano de 1815, quando diversos doentes procuravam as fontes de águas quentes como remédio natural ou como cura sobrenatural. Do gabinete de seu consultório redigia constantes notícias acerca do suposto vale milagroso de onde indicava o tratamento pelos banhos quentes para as bronquites, as moléstias de pele, as úlceras, os reumatismos e as moléstias do útero; além dos suadouros e dos banhos de demora142 e do imprescindível esquecimento dos cuidados

tristes143 como condição de bom sucesso na cura pelas águas mineromedicinais. Era desse gabinete que o médico esperava para um futuro próximo “todos os processos da balneoterapia moderna”144 para os poços de caldas. Um desses cuidados tristes dizia respeito à aplicação de injeções intramusculares de mercúrio ou de água sulfurosa naqueles doentes afetados pela sífilis. As injeções de água sulfurosa eram colhidas nas próprias nascentes, sendo muito doloridas e quase insuportáveis no momento de sua aplicação.

Ás sete horas já elle estava no consultório a examinar doentes, desnudando braços flácidos, magras espáduas, nádegas, sempre preconisando o tratamento pelas injeçções hypodermicas, único efficaz na syphilis.

- Olhe, meu amigo, dizia, apertando os olhinhos malicioso, com a seringa entre os dedos – o baptismo devia ser uma boa injecção de mercúrio. Para a mancha original sempre seria de mais effeito do que a água das pias. Deixe lá falar. E, estendendo o braço, mostrava os armários atochados de livros, citava autores, capítulos celebres e emitia conceitos occulistas sobre o Homem e sua misera condição.

141 LEMOS, Pedro Sanches de. As águas thermaes de Caldas. (Província de Minas Geraes). Médico clinico nos Poços de

Caldas desde 1873. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1884.

142 Banhos de imersão nas águas sulfurosas com tempo determinado. Variavam de 15 a 20 minutos. 143 LEMOS, Pedro Sanches de. As águas thermaes de Caldas. Op. cit. p. 49

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- Nós estamos no planeta para o soffrimento, e só – os gosos são raros, não contam.

Falava de cabeça baixa, sorrindo mysteriosamente, e lá ia desinfectar a agulha, voltava á sala a chamar outro cliente, e desapparecia no gabinete. Um gemido surdo accusava a agulhada, mas o doutor animava, heróico e consolador:

- Que é isto comparado ás grandes dores que o senhor tem soffrido? Prompto. Vá. Está melhor.145

Em 1902, recomendado por Campos Salles e Rodrigues Alves à Legação Brasileira de Paris, Pedro Sanches de Lemos tornou-se o primeiro médico brasileiro a viajar pelas cidades hidrominerais européias, no intuito de averiguar as maneiras pelas quais se processava o tratamento pelas águas medicinais. As paisagens das cidades termais e as memórias de curistas e viajantes que ele só conhecia através de seus incontáveis livros franceses que versavam sobre a cura hidrológica nos países europeus, tornar-se-iam realidades nos oitenta e oito dias de viagem que ele empreenderia na experiência vivida das cidades hidrominerais; cujas emoções de um médico-flâneur, apaixonado pelas águas medicinais, seriam posteriormente publicadas na sua obra “Notas de viagem – Na Alemanha, na Suissa, na França” de 1902.

A distração dos doentes em cassinos e teatros e a construção de salas de concertos e conversação onde eles pudessem se reunir, palestrar, ler jornais, ouvir música, jogar, assistir a representações dramáticas e a outras divertimentos146 era uma das primeiras preocupações desse médico com relação aos inúmeros lugares onde existiam fontes de águas termais no Brasil, e que, em um futuro próximo poder-se-iam transformar em agradáveis cidades hidrominerais, a exemplo do que já acontecia na Europa.

Mas o fato é que naquele ano de 1925 a estação havia começado mais cedo. Os trens da Mogyana todos os dias chegavam repletos de veranistas que demandavam a Poços de Caldas, como “região incomparável de cura ou encantadora estação de repouso.”147

Havia uma animação ruidosa no ar. A estação era elegante. Automóveis de alto valor misturavam-se às charretes das ruas empoeiradas desse lugar. Era a estação das águas, a simbiose do campo e da cidade. Antes, a propaganda das águas

145 NETTO, Coelho. Água de Juventa. 3 ed. PORTO: Livraria Chardron, de Lélio & Irmão, ltda. 1925 pp. 14-15 146 LEMOS, op. cit. p. 176

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era feita boca a boca, daqueles que recebendo a sua cura voltavam aos seus lares distantes, levando o “milagre” e a fama das águas de Poços de Caldas. Mas os que agora chegavam vinham através de outros veículos de comunicação, modernos e mais eficientes, como “o livro, o jornal, as revistas e o cinema”148

.

Era uma terra de médicos, mas ao mesmo tempo era uma terra de literatos. Não era a primeira vez que um escritor visitava aquele lugar. Coelho Netto em 1904 utilizou-se da paisagem côncava e das “águas maravilhosas”149

para escrever um romance sobre o poder de cura dessas águas. Freqüentador assíduo desde os tempos de Pedro Sanches, esse autor narrou com fidedigna convicção os dias pacatos e agitados daquela cidade. Eram sim, pacatos e agitados porque dependiam de seus doentes e esses por sua vez dependiam das estações. Elas sempre começavam alegres em meio a essa terra “encharcada dos abundantes aguaceiros que, sem estiada, durante os últimos dias nublados da semana anterior, haviam alagado os campos”150

. Coelho Netto narrava a luta incessante de um jovem casal que acabara de chegar à cidade, à procura do famosíssimo doutor Lino. Médico viajado, entendido das águas, última esperança do casal que viera do Rio para curar-se de um horrendo mal. O rapaz que sempre vivera na Europa, “de flanella riscada, gravata solta, de seda clara, cinta de fustão sobre a camisa de baptiste”151

era infeliz. Tinha vindo às Caldas porque o horror de sua situação, insuportável, o humilhava e o torturava perante a sua amada. Seria praga? Sortilégio? Ou coisa parecida de amante? “Um mez antes do casamento embarcára a ultima para a Europa, bem dotada e com uma palavra enganadora de esperança”152

. As águas eram a última esperança de cura para aquilo que ele não podia realizar como marido. A miséria de seu corpo irritava-o da mesma maneira quando via os homens que “vinham do banho e sahiam para o ar livre contentes, galrando e rindo, num bem estar de saúde”153. Era uma esperança física, mas era também uma esperança moral. As águas curavam não só os corpos estropiados daqueles que quase não andando, chegavam apoiados em muletas ou em cadeiras de rodas. As águas davam saúde e “e dando saúde, dava o direito de lutar, de viver, de ser feliz. Era só mergulhar o corpo nos poços nevoentos e quentes, e sentir a água untuosa, balsâmica, milagrosa...”154

148 Jornal Vida Social. n° 455. Ano X, 22 de agosto de 1926. 149

NETTO, Coelho. Água de Juventa. Porto: Livraria Chardron, de Léllo & Irmão, Ltda, 1925.p. 7

150 Idem, p. 12 151 Ibidem, p. 22 152 Ibidem, p. 29 153 Ibidem, p. 34 154

Esse tempo-espaço das águas termais era, portanto, para médicos e literatos, um campo de observação empírico, vez por ora científico, na medida de seu tempo, e apoiado apenas na observação meticulosa daqueles que acreditavam e viam in loco a cura pelas águas. Instigava porque algo acontecia. Havia um “que” de mistério no ar e a cidade, ainda um tanto campo, “parecia despertar d’um somno de inverno”155

quando começava a estação.

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