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1. Perceção dos problemas mais estruturantes e estratégias para a sua superação

2.2. Presente e gestão da privação

2.2.3 A Estratégia hipotecada

Socorrer-se das relações de interconfiança pessoal que permitem pedir dinheiro ou bens emprestado que se pagam em função das possibilidades era a estratégia convocada por 12 pessoas em 2011, a estas juntam-se mais 10 em 2014. São os desempregados, os incapacitados e os trabalhadores pobres os que mais recorrem a empréstimos para fazer face às necessidades inesperadas (quadro 48). São nestes perfis que mais aumenta o número de pessoas que recorre a esta opção em 2014.

Figura 12. Entrevistado por perfil e fase do barómetro em que convocam a estratégia hipotecada, 2011 e 2014

Fonte: Entrevistas a pessoas em situação de pobreza, Barómetro do Observatório de Luta contra a Pobreza na Cidade de Lisboa, Dinâmia-CET, 2014

Perante a carência aguda, o recurso a pequenos empréstimos junto da rede social é a alternativa, seja junto de família, amigos ou vizinhos:

“Tenho aqui uma senhora, que é essa senhora que foi hoje comigo ao bilhete de identidade, que é a D. Odete, trabalhava no hospital, ela apoiou-me muito quando ainda lá estava a trabalhar, ela apoiou-me muito lá, pronto de vez em quando recorro-me a ela. Se ela me emprestar, uma hipótese, para pagar a água ou a luz, depois ando-lhe a dar aos bocadinhos, mas enquanto aquele não tiver pago não lhe posso pedir mais nada. Não é que ela não me emprestasse, eu sei que me emprestava, mas eu não tenho coragem, não tenho coragem para fazer isso. E então vai-se pagando devagarinho, 5 euros, mais 5, mais 10, conforme, pronto! Tá pago, já posso ir outra vez incomodar a senhora. Ela às vezes diz “Ah rapariga, deixa lá se não tiveres pagas para o mês que vem.” “Não está aqui que é para ir abatendo que é para depois se eu precisar a senhora me emprestar outra vez” (Deolinda, 55 anos, incapacitada, 2014)

2014 3 desemp. – Liliana, Pedro, Sofia 2011 – 2014 3 desemp. – Anabela, Filipa, Olegário 2011 – 2014 2 desafiliados – Júlio, Ramiro 2011 – 2014 2 Idosos – Fátima, Graça 2011 – 2014 3 TP – Rita, Camila, Paulina 2011 – 2014 2 Incapac. – Deolinda, Aura 2014 3 incap.- Dália, Joaquim, Rute 2014 3 TP- Alda, Julieta, Verónica

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“Mais dez euros que eu devo à minha filha. Que ela não perdoa nem um cêntimo!” (Rute, 47 anos, incapacitada, 2014)

Também o “pedir fiado” junto de comerciantes: à farmácia, no caso de Joaquim e Olegário, para os medicamentos, ou à mercearia para garantir a alimentação para a família são outras das ações desencadeadas. Facto que Anabela lamenta:

“Ainda tenho lá [na mercearia] uma conta de vinte e tal euros sei lá há quanto tempo. Até tenho vergonha de lá entrar.” (Anabela, 47 anos, desempregada, 2014)

As entidades patronais são também um recurso perante uma emergência. Sem outra alternativa, pedir um adiantamento do salário afigura-se a solução:

“Não, não tenho, só se for assim à minha chefe ou ao meu patrão e depois tirar no ordenado…Às vezes faço, por exemplo, se eu tenho trinta euros, faltam vinte e estamos quase assim no fim do mês, eu peço. Peço os vinte para pagar.” (Julieta, 48 anos, trabalhadora pobre, 2014)

“A gente controla tudo, não dá para comprar mais nada sem ser aquilo. E há meses, quase todos os meses o meu marido tem que pôr um vale ao meio do mês. Que não dá, não dá!” (Paulina, 39 anos, Trabalhadora pobre, 2014)

Também os senhorios permitem alguns atrasos no pagamento da renda:

“Eu já não pago a renda ao dia 8, pago a renda ao dia 10, dia 11 conforme posso, vou ganhando e vou juntando e ai é que pago a renda porque o meu senhorio sabe a minha situação e tenho sorte de eu ter o senhorio que é, porque passando o dia 8 pagava a percentagem, mas não, ele sabe que eu tenho de pagar naquele mês mas do dia 8 ao dia 20 eu tenho de arranjar o dinheiro para lhe dar a ele, pronto…[ainda tem rendas em atraso?] Mais ou menos porque o que eu tenho a mais vou dando. Ainda não está, ainda me falta uns 80 euros para dar… mas é assim, ou dou 10, ou dou 20, vou dando a abater.” (Camila, 58anos, trabalhadora pobre, 2014)

Importa referir que alguns destes empréstimos assumem uma expressividade no conjunto das pessoas que integram o Painel, pois também a rede familiar se vê abraços com dificuldades financeiras. Situações de desemprego, cortes nos rendimentos e pensões de reforma baixas não deixam muito espaço de manobra para estas pessoas se socorrerem do auxílio familiar. No entanto, sem outras alternativas, também eles ajudam na medida das suas possibilidades, emprestando:

“A minha mãe ajuda-me um bocadinho mas também é doente. Mas…ela também não pode muito mais, o que é que ela me pode fazer? Vinte euros, cinquenta euros mas depois tenho que lhe dar. Pois, é quase sempre, tem sempre despesa extra. Mas é assim, o crédito que ela me oferece é eu ter que pagar para depois receber outro. Se pedir vinte euros, no final do mês tenho que lhos dar, para pedir outros…” (Alda, 51 anos, trabalhadora pobre, 2014)

174 Os dados induzem que a estratégia hipotecada tende a ser acionada apenas quando outras alternativas já foram esgotadas: o rendimento do trabalho não é suficiente para garantir a satisfação de todas as despesas, no caso dos trabalhadores pobres, o recurso aos apoios institucionais fica aquém das necessidades e quando a rede de solidariedade informal não consegue apoiar tanto quanto as necessidades exigem.

Para 9 pessoas - Aura, Deolinda, Rute e Dália (incapacitadas) Liliana, Sofia e Paulo (desempregados), Graça (idosa) e Ramiro (desafiliado) - o recurso a empréstimos prevalece sobre a iniciativa individual de garantir a satisfação das necessidades (estratégia autonomizante). Nestes casos, ela não é viável, por um lado, para Dália, Deolinda e Graça por motivos de saúde e, por outro, pela falta de oportunidades de trabalho disponibilizadas e adequadas a Aura, Liliana, Sofia, Rute, Pedro e Ramiro.

Quadro 53.Recursoà estratégia hipotecada segundo as restantes estratégias e perfil, 2014

Estratégia convocada em 2014 Recurso à estratégia hipotecada em 2014, por perfil Institucional Sim (19)

5 Incapacitados; 6 Desempregados; 1 Cuidadora; 5 Trabalhadores pobres; 2 Idosos; 2 Desafiliados Não 1 Trabalhador pobre

Total 22

Solidária Sim (22)

5 Incapacitados; 6 Desempregados; 1 Cuidadora; 6 Trabalhadores pobres; 2 Idosos; 2 Desafiliados

Não 0

Total 22 Autonomizante Sim (13)

1 Incapacitado; 3 Desempregados; 1 Cuidadora; 6 Trabalhadores pobres; 1 Idosa; 1 Desafiliados Não (9)

4 Incapacitados; 3 Desempregados; 1 Idosa; 1 Desafiliados

Total 22

O quadro seguinte permite traçar o perfil dos entrevistados que recorrem a estratégia hipotecada perante situações de necessidade imprevista e inadiável.

175 Quadro 54. Perfil do entrevistado que recorre à estratégia hipotecada

Reside em Santa Maria Maior/São Vicente

Incapacitados, desempregados e trabalhadores pobres Arrendatário no mercado privado

Vive em casas sobrelotadas/adequadas Tem problemas de saúde o próprio ou na família A saúde é limitativa do desempenho de atividade laboral Até 35 anos e de 46 a 64 anos

Agregados familiares com menores a cargo Casados

Considera-se pobre

Perceção do problema desresponsabilizante e Estratégia cooperante pelo emprego Sentimento de frustração e stress enquanto disposição para a ação

Coesão familiar boa Confiança interpessoal boa

Carência latente de rendimento, alimentos, saúde, habitação Perceção sobre apoios dissonante

Mais de 8 anos na situação de pobreza, intergeracionalidade

O crédito à banca no passado agudiza a pobreza no presente

Se até aqui demos conta do recurso a empréstimos informais junto da rede social dos entrevistados, tempos houve (na sua maioria anterior a 2011) em que as necessidades financeiras foram satisfeitas com o acesso ao crédito bancário. Melhores condições económicas no momento de formalizar o crédito davam confiança ao devedor e ao credor que o compromisso de dívida seria honrado. Todavia, alterações dos rendimentos destas famílias, em grande parte por situações de desemprego, tornaram difíceis para uns, impossível para outros, o seu pagamento. Pedir a insolvência ou a renegociação da dívida foi a solução encontrada.

176 Sem alternativa, e perante o avolumar de dívidas que cada vez mais se tornavam difíceis de liquidar, Anabela, Antero e Teolinda pediram a insolvência, estes últimos dois solicitam a insolvência antes de 2011, cujos prazos ainda decorrem:

“Então, deixei de pagar, fiquei desempregado, as dívidas foram acumulando automaticamente…” (Antero, 38 anos, incapacitado, 2014)

A diminuição dos rendimentos familiares fez Paulina, Pedro, Carolina e Rita procurarem as entidades credoras para negociar/ajustar as mensalidades aos rendimentos.

“E tenho a dívida com o banco. [Tem um crédito?] Tinha que foi pedido há 6 anos, era para 5 anos mas quando a minha vida começou a piorar deixei de pagar e depois fui acumulando juros, juros, juros, juros, juros, juros, juros, juros, juros, e hoje posso-lhe dizer que o abono dos meus filhos fico sem ele todos os meses.” (Carolina, 44 anos, trabalhadora pobre, 2014)

“É assim, estamos a pagar todos os meses. É mais uma despesa. Porque na altura, quando foi os batizados deles e tudo, tivemos que pedir um empréstimo, e então, ainda estamos a pagar. Por isso é sempre mais um percalço que a gente tem todos os meses.” (Paulina, 39anos, trabalhadora pobre, 2014)

Perante uma situação de incumprimento do pagamento de um crédito, Miguel viu o salário penhorado:

“Sim, mantém-se, no aspeto que ainda estou a pagar as dívidas antigas, e tudo o mais, penhora do vencimento também…continua, essa fase continua. Mais uns anitos até conseguir pagar tudo. Por outro lado já consegui pagar alguma coisa.” (Miguel, 34 anos, trabalhador pobre, 2014)

Por sua vez, Rute assume uma posição mais passiva perante a impossibilidade de pagar um crédito contraído para comprar um telemóvel. O corte nos apoios sociais tornou o pagamento da mensalidade inviável:

“Foi uma asneira que eu fiz, na altura em que o rendimento mínimo era maior (…) Dava para pagar e não coiso, só que por azar já no mês a seguir, ou dois meses a seguir baixaram mais cento e tal euros. Então eu tinha quatrocentos e cinquenta e tal e passei para trezentos e cinquenta e tal. Fez-me coiso e então deixei de pagar mesmo. Tive que deixar, e então a interjusticia já me ligou duas vezes, (…) Eu disse mesmo à senhora, - Olhe é assim, se quiser venham-me buscar, eu não tenho dinheiro, não vou roubar para lhe pagar.” (Rute, 47 anos, incapacitada, 2014)

É perante o presente contexto de vulnerabilidade económica que estes entrevistados lamentam a confiança pessoal com que se tornaram devedores à banca. Nada mais lhes resta do que subtrair aos parcos rendimentos atuais uma parcela para liquidar os créditos em dívida, que em muito afeta a atual sobrevivência destas famílias.

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