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A estrutura hierárquica do professorado na constituição do sistema de

2.1. A formação de professores para o magistério na educação básica

2.1.1. A estrutura hierárquica do professorado na constituição do sistema de

Para refletir sobre a estruturação do sistema formal de ensino no Brasil recorremos a Anne-Marie Chartier (1998) que, ao realizar uma análise sobre a realidade francesa, nos fornece subsídios para pensar a organização que historicamente assumiu a escola brasileira.

Segundo Chartier (1998), na França, desde a criação do sistema público de ensino, coexistiram dois corpos hierárquicos de funcionários: um correspondente ao ensino primário de massa, com seus professores formados em instituições próprias e seu tipo específico de carreira; outro corpo de funcionários correspondia ao ensino secundário – o liceu, o qual não era concebido como um ensino de massa, sendo acessível apenas a uma parcela da população, com seus professores formados em universidades. Segundo a autora, cada um desses corpos de funcionários sempre teve identidades profissionais e imagens públicas muito bem definidas diferenciando-se em relação à formação, perfis profissionais, sistemas de ingresso e progressão na carreira e organizações sindicais, constituindo em duas diferentes “ordens” até os anos do pós-guerra: a ordem do primário e a ordem do secundário. Somente devido ao aumento de cobertura dos cursos posteriores ao primário no período pós-guerra, há uma diversificação de trajetórias escolares, algumas conduzindo a cursos profissionalizantes de nível secundário e outras ao secundário acadêmico com direito de acesso ao nível superior.

O processo de democratização do ensino na França, segundo Chartier (1998), vai fazer com que as diferenças entre as duas ordens progressivamente se diluam: a escolarização obrigatória se estende, a população escolar cresce e, em decorrência, o mercado de trabalho para os professores amplia-se consideravelmente. Há uma massificação da profissão e a ordem do secundário torna-se cada vez mais parecida com a ordem do primário com a criação dos Institutos Universitários de Formação de Mestres, que agrupou a formação de professores para o primário e o secundário na mesma instituição. Essa reforma mudou a concepção de formação dos professores primários, tornando-a mais parecida com aquela dos professores secundários, dando maior ênfase à formação teórica. Por sua vez, mudou também a imagem dos professores secundários, acabando com a distância que lhes conferia superioridade perante os professores

primários. A mudança ocorreu também no perfil dos professores formadores, o corpo docente universitário, em sua maioria composta por professores de formação específica, foi sendo substituído por professores de formação pedagógica – os pedagogos dos Institutos Universitários de Formação de Mestres.

Estabelecendo um paralelo entre a estruturação do sistema formal de ensino no Brasil e na França, observamos que no Brasil, historicamente, tivemos a constituição de pelo menos três diferentes ordens hierárquicas de professores. A primeira ordem hierárquica, coincidentemente a da França, é integrada pelos professores generalistas, em maioria mulheres, regentes de turmas de educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, formados inicialmente no nível médio, curso de Magistério e, em anos mais recentes, no curso de Pedagogia.

A segunda ordem hierárquica, tanto no Brasil como na França, constitui-se dos professores especialistas, regentes de disciplinas atuando nos anos finais do ensino fundamental e ensino médio, formados no nível superior em cursos específico que privilegiam o conteúdo. Esses professores tiveram seu papel definido, desde o início da escolarização, no curso secundário público de elite, de cunho acadêmico, que garantia o acesso ao curso superior.

Diferentemente da França, destacamos no Brasil uma terceira ordem hierárquica: a dos professores leigos, mal pagos, muitas vezes sem vínculo formal de emprego. Essa ordem de professores sempre esteve presentes na constituição da educação brasileira e, atualmente, ainda são encontrados na maioria das creches, tanto públicas como conveniadas, nas escolas rurais unidocentes das regiões mais pobres, nas escolas comunitárias das favelas de cidades do Nordeste e do Norte, nos programas pré-escolares de baixo custo ou como monitores de educação de adultos. Esses professores, na sua maioria mulheres, muitas vezes estão vinculados a programas educacionais fora da área de educação, ligados a órgãos de assistência social, a entidades filantrópicas ou comunitárias. Atendem os filhos da pobreza, aquelas crianças e adolescentes que costumam ser rejeitados pelos sistemas formais de ensino.

Observamos que diferentemente do que ocorreu na França com o processo de democratização do ensino em que as diferentes ordens de professores se diluíram, no Brasil essas três ordens hierárquicas sobreviveram a sucessivas reformas legais e organizacionais: a criação do ensino de 1º grau em 1971, com a junção do primário e do ginásio; a implantação dos programas compensatórios de

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educação pré-escolar na década de 1970, que em muitas regiões até incentivou o recrutamento de professores leigos; o aumento de professores primários formados no curso de Pedagogia também não alterou o perfil geral desses profissionais e não chegaram a modificar essas carreiras. Assim, essas ordens hierárquicas sobreviveram a todas essas mudanças sem perder suas posições na estratificação interna da profissão, mas, incorporando ao seu perfil as mazelas das transformações sociais como a perda de prestígio, desvalorização social, condições de formação e de atuação precárias, discriminações de gênero, origem social e econômica, dentre outras.

Por muitos anos a formação dos professores da educação infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental foi oferecida nas Escolas Normais. O Decreto 3281, de 23 de janeiro de 1928, da Reforma do Ensino, no seu artigo 87, capítulo I parte III referente ao Curso Normal, definia a Escola Normal como um estabelecimento destinado a formação propedêutica e profissional dos mestres devendo ser organizada de tal modo que se constitua em centro de pesquisa pedagógica. Os professores primários, oriundos das Escolas Normais, não recebiam uma formação própria nas ciências da educação e nas técnicas pedagógicas. Somente a partir dos anos 20 e 30 do século XX, as Escolas Normais, em diferentes estados brasileiros, sofreram reformas inspiradas nas teses da Educação Nova. Fernando de Azevedo, em 1953, ao referir-se sobre os motivos que o levaram a realizar a reforma do Ensino Normal em São Paulo afirmava:

[...] essa organização arcaica que vinha desde a fundação das primeiras Escolas Normais e se conservava através de sucessivas reformas que não lhes atingiam a estrutura fundamental, se lhes permitiu prestar, ao seu tempo, serviços realmente importantes, não só na preparação profissional do professor como na difusão do ensino apresentava graves inconvenientes, do ponto de vista técnico. Era uma organização ultrapassada que não correspondia às novas necessidades e aspirações da cultura e das tarefas especializadas para as quais se propunham preparar os candidatos ao magistério primário. (AZEVEDO, 1958, p. 176-177)

Defensores e propagadores das teses da Educação Nova no Brasil, os renovadores que assinaram o Manifesto de 32, apontavam os problemas educacionais brasileiros como os mais urgentes diante da configuração de uma sociedade em vias de modernização. A proposição das linhas gerais de uma política nacional de educação apresentava, naquele momento, a questão da formação de professores como sendo de fundamental importância, principalmente para os

quadros da escola secundária. No Manifesto de 32 é nítida a preocupação com a formação profissional dos professores que, para os signatários do Manifesto, eram considerados parte da elite nacional; deveriam, portanto, receber uma formação universitária de qualidade, como recebe os médicos, os engenheiros, os cientistas, por exemplo. Destacamos que para ser professor do ensino secundário ou do ensino superior não era necessária uma formação profissional específica, isso porque, não havia ainda no Brasil, até os anos 30 do século XX, cursos de formação de professores para o nível secundário; somente após a criação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras no interior da universidade brasileira é que estes se constituiriam.

No contexto brasileiro dos anos 20 e 30 do século XX, a formação dos professores assumiu importância fundamental e várias ações foram feitas no sentido de materializar mudanças: as Escolas Normais foram reorganizadas; as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras abrigaram os primeiros cursos de licenciaturas do Brasil; disciplinas especificamente de formação pedagógica foram introduzidas nos currículos dos referidos cursos; sedimentou-se a necessidade de uma formação própria para formar professores. Quando da Reforma da Escola Normal no Distrito Federal, Fernando de Azevedo afirmava a necessidade de que os professores da escola primária fossem formados em uma cultura profissional específica, até então quase que inexistente no Brasil. Essa cultura profissional seria dimensionada pela introdução das disciplinas: Psicologia Geral e Aplicada; Pedagogia; Didática; História da Educação; Sociologia Educacional.

Na reforma do ensino para a formação de professores, o Curso Normal passou a ser composto de: Curso Geral e Propedêutico de 3 anos; Curso Especial e Profissional de 2 anos. Naquele momento, a formação profissional do professor passava pela introdução das Ciências da Educação e da Filosofia da Educação nos cursos de licenciatura e na escola normal, o que pode ser considerado como grande avanço porque, anteriormente, aceitava-se a idéia de que qualquer indivíduo bem letrado, de boa índole e de reconhecimento na comunidade, poderia ser professor. Nesse contexto, entendia-se que para ser professor bastava o domínio do saber da tradição de cada área de conhecimento.

Como podemos perceber a importância da formação dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental em cursos de graduação já havia sido levantada no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, que defendia formar o espírito

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pedagógico de todos os professores em nível superior, em instituições incorporadas às universidades. Assim, o Decreto 3810, de 19 de março de 1932, regulamenta a formação técnica de professores primários, secundários e especializados para o Distrito Federal com prévia exigência do curso secundário, e transforma em Instituto de Educação a antiga Escola Normal. O Instituto de Educação passa a ser constituído pela escola secundária e pela escola de professores, sendo estas estabelecimentos anexos, para fins de experimentação, demonstração e prática de ensino o Jardim de Infância e uma Escola Primária.

Segundo Cury (2003), a demanda de formação de professores primários no nível superior não teve sequência, mesmo com iniciativas de algumas Universidades Brasileiras, como a Universidade do Distrito Federal, pioneira na elevação dos estudos pedagógicos ao nível universitário, que, em 1935, incorporou a Escola de Professores de Anísio Teixeira, primeira formadora de professoras primárias em nível superior. No entanto, em 1939, com a extinção da Universidade do Distrito Federal e a anexação de seus cursos à Universidade do Brasil, a Faculdade de Educação volta a se chamar Escola de Professores, reintegrando-se ao Instituto de Educação. A formação de professores e de especialistas para a escola primária fica reduzida a uma dimensão, segundo Mendonça (1997), apenas técnico-metodológica e a Escola Normal prevaleceu inabalável por muitos anos, sendo a principal referência para a formação dos professores primários, apesar da existência dos cursos de Pedagogia desde 1939.

O modelo nacionalista de formação de professores foi consolidado pelas Leis Orgânicas do Ensino Primário e Normal, de 1946, pregavam um ensino igual para todos e apresentavam uma série de especificidades de cada etapa de formação do aluno. A Lei Orgânica do Ensino Primário, Decreto 8529/46, em seus artigos 25, itens c e d e artigos 34, 35 e 36 dispõe sobre o corpo docente para este nível de ensino, sua carreira e remuneração. A Lei Orgânica do Ensino Normal, Decreto 8530/46, estabeleceu as diretrizes gerais para o funcionamento das escolas normais em todo o país. Pretendia dar uniformidade à formação de professores em todo o território nacional, estabelecendo princípios e normas relativos a regime de estudos, conteúdos programáticos, métodos e processos didáticos. Essa lei criou os Institutos de Educação que, além dos cursos normais, ofereciam cursos de especialização para professores primários e cursos de habilitação em Administração Escolar. De acordo com a Lei Orgânica, o Ensino Normal era considerado como um curso de

formação profissional, de nível secundário e tinha como finalidades: prover a formação do pessoal docente necessário às escolas primárias; habilitar administradores escolares destinados às mesmas escolas; desenvolver e propagar os conhecimentos e técnicas relativas à educação da infância.

De acordo com Romanelli (2003), no Ensino Normal predominavam disciplinas de formação geral sobre as disciplinas de formação profissional, evidenciando uma ênfase na cultura geral em detrimento da formação técnico- profissional, apesar de se tratar de um curso de caráter terminal e profissionalizante, em uma época em que a maioria das alunas não prosseguia no nível superior. O sistema de avaliação dos alunos era determinado em lei e consistia em um conjunto de provas e exames. Havia uma limitação de faixa etária para ingresso no curso normal, sendo impedidos de se matricularem alunos com idade superior a 25 anos. Essa determinação representava um entrave à qualificação de grande parte dos professores leigos que vinham atuando no magistério.

A queda da ditadura não provocou uma mudança na formação dos professores primários, que permaneceu baseada no modelo nacionalista, consolidado pelas Leis Orgânicas, que vigoraram por duas décadas. A política educacional vigente não conseguia atender às demandas apontadas pelo momento histórico de retomada da democracia, portanto novas reformas eram necessárias. A perspectiva de uma educação nacional, que refletisse os princípios liberais incorporados à Constituição de 1946, foi acenada na década de cinqüenta, com as discussões em torno da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional, a qual só seria promulgada nos anos sessenta. O período que antecedeu à promulgação dessa lei foi marcado por controvérsias em torno das ideias de centralização e descentralização do ensino e da dualidade: escola pública e escola privada. O projeto foi alvo de discussão por vários anos e gerou conflitos entre os representantes liberais, que defendiam a escola pública e os representantes da Igreja Católica, que faziam a defesa da escola privada.

Nos anos setenta, com promulgação da Lei 5692/71, a formação de professor para o ensino primário, atualmente educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, passa a se chamar Habilitação para o Magistério, introduzindo um divórcio entre a formação geral e específica para a atuação profissional. A formação desse novo profissional passa a ser técnica e é colocada no mesmo patamar da formação com de técnicos agrícolas ou técnicos comerciais.

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Segundo Nosella (1998)

Para formar o professor, se criou o curso de magistério de 2º grau noturno e diurno, integral, padrão, tradicional, especial, público, privado, etc; se criaram cursos de pedagogia de 3º grau em universidade pública e privada; em cursos diurnos e noturnos, de fim e de meio de semana, de férias, “à distância”, vagos e cheios, com habilitações de todo tipo; criaram-se cursos de pós-graduação stricto e lato sensu, para todas as habilitações. (NOSELLA, 1998, p. 168)

Depois de um período marcado pelo tecnicismo da década de 1970, a formação dos professores da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental em nível superior, se apresenta na pauta dos encontros educacionais com mais ênfase, na década de 1980, tendo a Associação Nacional para a Formação dos Profissionais da Educação – ANFOPE, como sua maior representante. O momento era de intensas críticas sobre a educação que se consolidava aos moldes do capitalismo e sobre as formas de intervenção na prática escolar; clamava-se pela urgente reforma para a melhoria do ensino público, cujo fracasso vinha sendo constatado por todas as instâncias sociais.

Nas palavras de Diniz-Pereira (1999, p. 115) “[...] á medida que a reforma na educação básica se consolida, percebe-se que a tarefa de coordenar processos de desenvolvimento e aprendizagem é extremamente complexa e exige, já a partir da própria educação infantil, profissionais com formação superior”. Esta visão foi admitida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96, que trouxe intensos debates sobre a formação de professores para a educação básica e, de maneira expressiva, dos professores da educação infantil e dos anos iniciais do ensino fundamental.

Conforme nos aponta Diniz-Pereira (1999), Freitas (2002), Maués (2003), o contexto de aprovação da LDB 9394/96 foi marcado pelo neoliberalismo, interesse do capital financeiro, diminuição do papel do Estado nas ações, abrindo mais espaço no mercado competitivo. As políticas educativas se vêem sob as teses de descentralização e autonomia inscritas no modelo neoliberal, e o sucateamento das instituições públicas de ensino se confronta com uma ampliação de instituições privadas. Esse contexto se torna "terra fértil" para a manifestação de interesses opostos, tornando o debate acerca da formação de professores para as etapas iniciais da educação básica em nível superior objeto de disputas e interesses

específicos no interior da própria área (fundamentos, objetivos, princípios) e exterior a ela (instituições públicas versus instituições privadas).

2.1.2. Políticas educacionais na formação do professor da