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A etimologia e semântica da palavra 46 

1.  O CONCEITO DE ATH 22 

1.5.  A etimologia e semântica da palavra 46 

Quando uma palavra é traduzida de inúmeras formas diferentes, para um mesmo verso, é de se pensar o que ocorre em relação à sua etimologia. O que ocorre com o termo ἄτη não é uma exceção na tradução de um texto que, além da língua, indissociavelmente apresenta também uma leitura particular do tradutor.

Dodds, na introdução de seu livro (1963), elege o conceito de ἄτη como um dos temas para sua discussão inicial sobre a questão do irracional na Grécia antiga. O autor vem sendo retomado, desde então, como parâmetro inicial de uma discussão acerca dos conceitos de ἄτη. Sua contribuição deve-se ao fato de ter feito relevantes apreciações que, inclusive, apontam para uma profunda discussão sociológica em voga nos dias atuais. Diz Dodds (1963, p. 03): “for early Greek justice cared nothing for intent, it was the act that mattered”, ou seja, para um senso de justiça primário, entre os gregos, o ato consumado é que, de fato, tem relevância.

Por essa importância de um ato consumado, para Dodds (1963, p. 17), os gregos já possuíam uma noção, que mais tarde seria debatida entre os antropologistas, de “culturas da culpa” (guilty-cultures), em contraposição às “culturas da vergonha” (shame-cultures). Segundo o autor, a noção de ἄτη alimenta uma sociedade baseada no sentimento de vergonha, ou seja, que transfere para um fato externo aquelas sensações que lhe são insuportáveis. Benedict (1972, p. 188) discute a diferença básica entre o mundo oriental e o ocidental, a qual se fundamenta na cultura grega:

Nos estudos antropológicos de culturas diferentes, é importante a distinção entre as que profundamente enfatizem a vergonha ou a culpa. Uma sociedade que incute padrões absolutos de moralidade e orienta-se no sentido do desenvolvimento de uma consciência por parte do homem é uma cultura de culpa por definição, no entanto, alguém pode numa sociedade dessas, como a dos Estados Unidos, padecer ainda mais na vergonha quando se auto-acusa de grosserias que nada têm de pecados. [...] Onde a vergonha constitui outra sanção importante, não se experimenta alívio quando se divulga uma transgressão, ainda que seja a um confessor. [...] As culturas de vergonha, portanto, não prescrevem confissões ainda que aos deuses. Dispõem mais de cerimônias para boa sorte do que para expiação.

Sendo assim, será possível compreender porque os heróis de Homero e Ésquilo, mesmo deixando claro uma percepção de que foram tomados pela ἄτη, acabam por não conseguir se livrar de uma dependência auto-punitiva, do sentimento de constrangimento diante do mundo. No entanto, esses heróis transferem para uma força maior os atos que eles próprios não conseguem suportar sozinhos, embora tal estratégia não surta o efeito de expurgação necessária ao alívio da consciência.

Não são poucas as definições que a noção de ἄτη admite nos mais variados contextos e ao longo dos anos. Segundo Dodds (1963, p. 05), em Homero, é impossível contabilizar os acontecimentos atribuídos à ἄτη, ou ligados ao verbo ἄσασθαι “saciar-se”, “exceder-se”. No entanto, o autor deixa explícito que de forma alguma, como acontece na tragédia, o conceito será atribuído a um desastre, sempre ocorrendo como um “state of mind – a temporary clouding or bewildering of the normal consciousness”.

Para Saïd (1978, p. 75-76) existe uma dificuldade em traduzir a palavra que, muitas vezes, está ligada a uma condição de erro, mas também passa a designar toda sorte de infortúnios. Completa Dawe (1968, p. 95) que o sentido mais comum de ἄτη é ruína, destruição, desastre, infortúnio.

Todavia, a palavra pode admitir, para o autor, um sentido mais restrito, mais especializado.

Prieto (1965, p. 197), por sua vez, com um trabalho dedicado a Eurípides, faz menção ao contexto geral em que se insere o vocábulo e, em particular, sua presença no tragediógrafo:

1. Engano, erro, desvario, alucinação, extravio da razão ou dos sentidos, funesta obnubilação do julgamento que conduz à ruína e à morte – tal é a deusa, Ἄτη, companheira perene da humanidade, cujo pé, alado e breve, roçando um instante apenas a fronte dos mortais, os precipita no irreparável. O vocábulo ἄτη figura na obra de Eurípides mais de trinta vezes, nos vários casos gramaticais. Só três vezes, porém, na acepção de alucinação, desvario enviado pela divindade. E em nenhum caso se pode identificar com uma esperança traiçoeira. A esperança, contudo, é que, nalguns passos, se pode identificar com a ἄτη.

A acepção de ἄτη dada por Magnien e Lacroix (1969, p. 258) entende o termo como a “cegueira”, a “confusão”, a “perturbação” que resulta na perda do controle pelo homem. Reitera e acrescenta Chantraine (2009, p. 3) que o verbo ἀάω, que significa “conduzir ao erro”, por contração do nominativo ἀάτη, dá origem à palavra ἄτη, vocábulo pouco corrente na prosa ática, porém de grande presença na tragédia, em que significa o “erro”, a “ruína”, o “dano causado”. Na poesia, principalmente Alceu de Mitilene faz uso da forma αὐάτα.

Liddell e Scott (1996, p. 270) definem o vocábulo ἄτη como “bewilderment, infatuation, caused by blindness or delusion, sent by the gods, mostly as the punishment of guilty rashness”. Entretanto, Dodds (1963, p. 07) se opõe à definição dada pelos autores por entender que a ἄτη é o próprio ato, ou seja, the rashness, e não a punição divina por conta do ato imprudente do homem.

O sentido de “ofuscação” parece recorrente em todos os autores, em uma tentativa de equilibrar o primeiro sentido de cegueira, sem confundi-lo com a cegueira física. Beekes (2010,

p. 162), dessa forma, também apresenta para o termo os sentidos de “dano” e “penalidade”. Algumas traduções de tragédias esquilianas para a língua espanhola optam por uma tradução por ofuscamiento, o que, no caso de Persas, foi uma solução satisfatória encontrada pelo autor.18

De acordo com Malta (2006, p. 13) uma definição pertinente, tanto na tragédia como na poesia épica, seria a de “perdição”, ou seja, o resultado de alguém ter se perdido (no sentido figurado). E continua discorrendo sobre o assunto:

[...] sabemos que, aqui [Brasil], esse sufixo “- ao”, assim como em destruição e construção, indica não só o resultado, mas também a própria ação; assim sendo, a palavra “perdição”, a rigor, para além do seu uso corriqueiro, indica tanto a conseqüência quanto o ato de alguém se perder – e dessa forma pode servir de equivalente, tanto quanto isso é possível, para áte grega, indicando, ao mesmo tempo, a deusa (a causa), a desrazão do homem e a destruição daí recorrente. [...]

No entanto, como ficará claro nas análises, há uma clara distinção entre sofrer a ação da deusa ou uma punição divina e apenas padecer de algum outro mal. Os trágicos demarcaram de forma clara, principalmente Eurípides, quando, de fato, o conceito de ἄτη refere-se ao dano causado e não à influência maligna.

As traduções em língua portuguesa, em sua maioria, mesmo em Ésquilo que se aproxima de forma mais clara da noção homérica de um “state of mind” (DODDS, 1963, p. 05), não costumam utilizar o vocábulo “cegueira” e suas variações. Essa tendência encontra-se mais nitidamente nas traduções de língua espanhola e italiana. No entanto, como acontece na tradução de Troianas de Eurípides, por Werner (2004), o tradutor possui a preocupação em padronizar, mesmo respeitando os mais diferentes sentidos, todas as ocorrências de ἄτη, como

18

Vide: ESQUILO. Persas. Introducción, traducción y notas de Pablo Cavallero. Buenos Aires: Editorial Losada, 2007.

“desgraça”, nas seis vezes que o termo aparece na tragédia. Esse feito é raro, pois com um campo semântico amplo, a tendência é que o conceito apresente diversas acepções em um único drama, como acontece na tradução de Torrano (2009) e Oliveira (2006).

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