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O erro trágico e a falta trágica 50 

1.  O CONCEITO DE ATH 22 

1.6.  O erro trágico e a falta trágica 50 

Destacam-se, dentre os muitos textos que discutem o conceito de ἄτη na tragédia grega, aqueles que procuram demonstrar a relação que existe entre um erro trágico (ἄτη) e uma falta trágica19 - ἁµαρτία. Aspecto de grande importância para Aristóteles, é na Poética que o filósofo discute, dentro da tragédia, como o conceito de ἁµαρτία é parte essencial no drama:

Como a composição das tragédias mais belas não é simples, mas complexa, e além disso deve imitar casos que suscitam o terror e a piedade (porque tal é o próprio fim desta imitação), evidentemente se segue que não devem ser representados nem homens muito bons que passem da boa para a má fortuna - caso que não suscita terror nem piedade, mas repugnância -, nem homens muito maus que passem da má para a boa fortuna, pois não há coisa menos trágica, faltando-lhes todos os requisitos para tal efeito; não é conforme aos sentimentos humanos, nem desperta terror ou piedade. O mito não deve representar um malvado que se precipite da felicidade para a infelicidade. Se é certo que semelhante situação satisfaz o sentimento de humanidade, também é certo que não provoca terror nem piedade; porque a piedade tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, o terror, o respeito do nosso semelhante desditoso, pelo que, neste caso, o que acontece não parecerá terrível nem digno de compaixão.

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Há uma confusão na definição dos dois termos, que parecem designar somente a hamartía como falta ou erro trágico. Quem faz uma distinção é Suzanne Saïd (1978). Hirata (2008) também faz uso do termo “falta trágica” quando se refere à ἁµαρτία.

Resta, portanto, a situação intermediária. É a do homem que não se distingue muito pela virtude e pela justiça; se cai no infortúnio, tal acontece, não porque seja vil e malvado, mas por força de algum erro; e esse homem há-de ser algum daqueles que gozam de grande reputação e fortuna, como Édipo ou Tiestes ou outros insignes representantes de famílias ilustres. (Poética, 1452 b 30-1453 a 12).20

Como se pode perceber, a ἁµαρτία acontece por uma falta cometida pelo herói em algum momento, falta esta que se aproxima da noção de ἄτη simplesmente por serem dois conceitos que se apresentam como marcadores de um revés na tragédia. No entanto, é importante ressaltar que, sutilmente, eles se distinguem entre si, fato este que se explicita na força e na forma como esses seres são atingidos.

Dentre os estudiosos, Saïd (1978) procurou demonstrar que o erro trágico é um estágio inicial daquilo que viria a ser denominado “falta trágica”. Para a autora (1978, p. 76) não é possível compreender o conceito de ἁµαρτία sem fazer uma apresentação da noção de ἄτη. Isso acontece, principalmente, porque “le malheur (átē) se charge de culpabilité, tandis que la faute (qu’on l’appelle hamartía ou amplakía) prend l’allure d’um desastre.”

Este aspecto, apontado por Saïd, esclarece duas confusões na hora de se analisar os dois conceitos. Pensando, primeiramente, em relação à ἄτη, é perceptível que ela desperta no homem a culpa, por um erro cometido por ação divina ou não, que o deixa, muitas vezes, sem mesmo entender os motivos dos acontecimentos posteriores. Em segundo lugar, a ἁµαρτία, dessa forma, torna-se uma falta humana, motivada por erros que não competem a uma instância divina, mas ao próprio homem.

20 Tradução de Filomena Yoshie Hirata em: HIRATA, F. Y. A hamartía

aristotélica e a tragédia grega. In: Anais de Filosofia Clássica, vol. 2, n. 3, Universidade de São Paulo, 2008.

Essa tênue diferença entre os dois conceitos é o que marca a discussão entre os estudiosos. Para Dawe (1968), o maior obstáculo é compreender como um conceito excludente do papel dos deuses, que é o da ἁµαρτία, pode se encaixar em uma arte (tragédia) sobre figuras heróicas que caem na desgraça por forças divinas e irresistíveis. E é justamente realizando essa investigação que o autor conclui a evolução de um conceito para outro, como se a ἄτη representasse os primórdios da noção de ἁµαρτία, que surgiria posteriormente. Acerca da questão da responsabilidade divina e humana, que caracteriza a principal diferença entre os dois conceitos, discorre Dawe (1968, p. 100):

The division of responsibility between men and gods has long been properly understood to be an irresolvable problem in Homer: or to speak more realistically, it has long been understood that the Homeric poets did not recognize any contradiction between assigning responsibility for a particular event to the gods in one line and to men in the next.21

Logo, para o autor, uma ausência de diferenciação entre uma responsabilidade humana e uma divina é o que faz com que não haja a necessidade de outro termo que compita com a ἄτη na justificativa do erro ou falta trágica. A ausência da ἁµαρτία em Homero e nas primeiras tragédias de Ésquilo, reflete uma necessidade posterior de separar o erro cometido pelo homem por ação dos deuses e aquele que é motivado por ações puramente humanas.

Por sua vez, Golden (1978, p. 12), amparado pelos estudos de Bremer (1969), contraria a aproximação da ἄτη com a ἁµαρτία por acreditar que se trata de duas esferas antagônicas. Para o

21 A divisão da responsabilidade entre homens e deuses tem sido propriamente

entendida há muito tempo como um insolúvel problema em Homero: ou para falar de forma mais realista, foi entendido há tempos que os poetas homéricos não reconhecem qualquer contradição entre atribuir responsabilidade de um evento em particular para os deuses em uma linha e para os homens na próxima.

autor, se o conceito de ἄτη é causado por uma ação externa (divina) ao homem, a ἁµαρτία, por sua vez, é motivada por uma ação interna, ou seja, de ordem humana. Essa explicação corrobora a tese de Bremer (1969) de que há uma mudança de pensamento na formação do homem grego e, portanto, uma mudança de cultura.

No entanto, não é que Dawe discorde por completo dessa afirmação. Se isso ocorresse, o autor não citaria em seu trabalho a forte colaboração que Adkins (1960) realiza ao discutir a ἁµαρτία justamente como uma parte do processo evolutivo do pensamento do homem grego que, tomando consciência de sua posição no mundo, assume sua culpabilidade diante dos acontecimentos trágicos.

Sendo assim, a visão de Dawe também se aproxima da perspectiva apontada por Dodds (1963) da diferença entre uma

Shame-Culture em contraposição a uma Guilt-Culture. Embora

Dodds não entre no mérito da relação entre ἄτη e ἁµαρτία, ao discutir os dois conceitos antropológicos, o autor estabelece a relação da mudança de pensamento que posteriormente faria com que o conceito de ἄτη se tornasse cada vez menos popular.

Destarte, Saïd (1978, p. 142) conclui que não se pode deixar de perceber a relação intrínseca entre os dois conceitos, e que a única forma de compreender claramente as diferenças entre ἄτη e ἁµαρτία é realizando um estudo da responsabilidade que se exprime entre os trágicos.

Ao longo da análise das passagens em que a presença do conceito de ἄτη se constata, será possível entender de forma mais clara o debate proposto pelos autores.

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