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1.  O CONCEITO DE ATH 22 

1.2.  Mito e Tragédia 33 

O conceito de ἄτη se insere em uma tradição que merece ser recordada e, assim sendo, que possa dar os parâmetros necessários para que se compreenda como surge o mito que vigora por trás do complexo vocábulo ao qual esta tese se dedica. Destarte, é possível compreender a complexidade que

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Denomina-se Paixão, com letra maiúscula, o sofrimento de Jesus Cristo na Cruz. (HOUAISS, 2008, p. 2105)

envolve o conceito de ἄτη e sendo, de certa forma, intrínseco ao desenvolvimento da tragédia grega, como ele se incorpora ao processo de desenvolvimento do drama.

Tratava-se de um novo período na história de toda a Grécia e é preciso entender em que medida o drama trágico vem para se aliar a essa nova sociedade. Relativamente a isso, disserta Vernant (2008, p. 04):

O momento da tragédia é, pois, aquele em que se abre, no coração da experiência social, uma distância bastante grande para que, entre o pensamento jurídico e social de um lado e as tradições míticas e heroicas de outro, as oposições se delineiem claramente; bastante curta, entretanto, para que os conflitos de valor sejam ainda dolorosamente sentidos e para que o confronto não deixe de efetuar-se.

Esse embate, no entanto, entre um pensamento da cidade e a tradição oral e familiar, é combinado de forma magistral pelos trágicos gregos. De certo modo, há uma nova forma de se encarar a realidade e questioná-la, por outro lado, as histórias passadas de geração em geração reforçam a tradição, quando utilizadas como motivo para o desenvolvimento do drama. Se, por um lado, a experiência de encenar assuntos históricos pudesse gerar a histeria pública e falhar em seu objetivo,11 mesclar os relatos tradicionais com as novas ideias e reflexões da cidade só reforçaria, no palco, a evolução deste πολίτης.

Não obstante, não é tarefa fácil lidar com temas conhecidos e que, seguindo apenas a tradição, poderiam soar enfadonhos. É por isso que não é unicamente por uma herança arqueológica que a tríade trágica é formada por Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Analisados individualmente, cada qual serviu à tragédia de forma peculiar, inserindo no mito os elementos necessários

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A respeito da Queda de Mileto, citada em Histórias por Heródoto, tratar- se-á em momento oportuno.

para atrair o público e atingir o sentimento de tensão e exaltação, marcando etapas relevantes no desenvolvimento da história e do gênero trágico.

Por conta do que já foi dito, não é difícil compreender o porquê do uso do mito como mote da tragédia clássica. Assim como a cultura cristã renova dramaticamente as passagens da vida de Jesus Cristo, incorporando a ela elementos que respeitem a intenção de cada uma das representações, os mitos eram, pelos autores trágicos, revisitados constantemente em suas peças.

É a tragédia de Ésquilo Persas, a mais antiga peça conservada, que já aponta para o conhecimento do autor sobre o mito, sua estrutura e os elementos que o distanciavam da realidade. Se Frínico foi multado por sua apresentação da

Queda de Mileto, o mais correto seria que nenhum outro autor

buscasse amparo em um relato histórico que pudesse causar identificação temporal para o público. No entanto, não é o que acontece. Embora Persas, das trinta e duas tragédias clássicas que chegaram completas até os dias de hoje, seja a única cujo tema baseia-se em uma passagem recente da história dos gregos, ela é posterior à peça de Frínico e demonstra todo o potencial e conhecimento do autor em relação ao mito, fato este que o possibilita desenvolver uma tragédia sobre um evento recente com elementos próprios do mito, quer eles sejam o intervalo espaço-temporal, uma riqueza de detalhes imagéticos, a interpretação simbólica e universalista ligada aos fatos, aspectos do maravilhoso em relação à corte persa ou mesmo a presença de uma figura fantástica (o espectro do rei). Dessa forma, o tragediógrafo proporciona o distanciamento apropriado entre a veracidade histórica e a identificação com os espectadores.

A tragédia e a comédia tornaram-se, ao longo do século V, o centro do debate de questões próprias da cidade democrática grega. O uso do tema mítico, embora não único, tornava-se o

veículo condutor para os poetas exporem, também, uma nova forma de pensamento. A trama desenvolvida pelo autor acaba por explorar diferentes aspectos dos mitos.

Vidal-Naquet (1999, p. 233) discorre que, na tragédia, “é preciso que a cidade ao mesmo tempo se reconheça e se questione”. Esta preocupação, no caso de Ésquilo, faz com que o homem enquanto indivíduo passe inteiramente a segundo plano. O vencedor da batalha de Salamina não é um grego em particular, mas a comunidade como um todo. O mesmo ocorre com Agamêmnon; embora a tragédia a que dá título relate os momentos finais da vida do comandante grego, destacando o drama familiar, é o coletivo que se evidencia, em um debate acirrado sobre as questões que envolvem o público e o democrático em relação à justiça.

E é justamente no momento em que o autor precisa justificar os acontecimentos ocorridos entre os antepassados que a presença de conceitos, como o de ἄτη, satisfaz a necessidade dos tragediógrafos em buscar no pensamento grego a identificação com a audiência. Por conseguinte, se em Ésquilo a composição mítica é trabalhada com elementos visuais que saltam aos olhos e uma linguagem primorosa, em Sófocles atinge-se um novo patamar de experimentação. O autor ousa em transformar o mito conhecido, acrescentando elementos que alterem sua estrutura. Dentre suas tragédias conservadas, o mito de Édipo é o que merece maior atenção e sem dúvida que a leitura que fez do mito tebano o definiu para toda a posteridade. O autor ousa em transformar o mito conhecido, acrescentando elementos que alterem sua estrutura. Dentre suas tragédias conservadas, o mito de Édipo é o que merece maior atenção e sem dúvida que a leitura que fez do mito tebano o definiu para toda a posteridade. No entanto, a interpretação estabelecida por Sófocles deste mito tradicional não inibiu outras releituras. Será talvez Sófocles o autor que em

definitivo coloca “o Homem” no centro do seu pensamento dramático.

Segundo Grimal (1993, p. 128), diferentemente do que acontece na versão tradicional do mito, a versão imortalizada por Sófocles teria sido posteriormente modificada por Eurípides e, ainda, na forma épica da lenda, a morte de Jocasta não teria impedido o herói de continuar seu reinado, inclusive sem que ele tivesse se tornado cego.

Girard e Ouellet (1980, p. 181) também atentam a essa questão. Para os autores, Sófocles é quem transforma o drama mítico em drama trágico, eliminando e inserindo informações que lhe fossem convenientes. A esse respeito, corrobora Vernant (1999, p. 54) afirmando que Sófocles omite, também, a questão da diferença de idade entre Jocasta e Édipo. Logo, a maleabilidade no tratamento de informações pormenorizadas flexibiliza o sentido final de cada versão dramática.

Aristóteles, embora não tenha presenciado a efervescência da tragédia clássica, como conhecedor e classificador dos primeiros gêneros literários, faz uma ressalva extremamente pertinente à composição da tragédia:

É, pois, necessário ter presente o que já por várias vezes dissemos, e não fazer uma tragédia como se ela fosse uma composição épica (chamo composição épica à que contém muitos mitos), como seria o caso do poeta que pretendesse introduzir numa só tragédia todo o argumento da Ilíada. Na epopeia, a extensão que é própria a tal gênero de poesia permite que as suas partes assumam o desenvolvimento que lhes convém, enquanto nos dramas o resultado do desenvolvimento seria contrário à expectativa. Que bem o mostraram todos os poetas que quiseram incluir em uma tragédia todo o argumento da Ruína de Tróia, em vez de uma só parte, como o fez Eurípides [na Hécuba], ou toda a história de Níobe, contrariamente ao que fez Ésquilo. Todos esses poetas falharam ou foram mal

sucedidos nos concursos, e o próprio Agatão falhou pelo mesmo defeito. (Poética, 1456ª 11)12

O que Aristóteles quer deixar claro ao seu leitor é que a Tragédia e a Épica são dois gêneros distintos e, portanto, se ocupam de matérias de abrangência diferentes para suas composições. No entanto, se a tragédia não necessita de um relato extenso e se dedica a trechos específicos de uma história muito maior, isso se deve, também, ao conhecimento que o público detinha do mito grego. É o que ocorre, para citar apenas uma tragédia como exemplo, com Antígona de Sófocles.

A tragédia, que conta o sofrimento da irmã de Etéocles e Polinices, em profundo conflito entre os ditames da cidade e os valores familiares da tradição, começa in medias res13, o

que demonstra que os espectadores já eram familiarizados com aqueles contextos. Diferentemente de uma história detalhada do mito, para além das marcações presentes nas falas das personagens, que situam a plateia sobre início da ação, há também que se levar em consideração os vários monólogos de abertura como, por exemplo, a fala da nutriz no início de

Medeia (Med. 1-48), estes têm por função sintetizar os dados

do mito e contextualizar os espectadores sobre o momento concreto em que a ação inicia-se.

É conhecida, em contrapartida, a preferência de Sófocles pelas cenas dialogadas de abertura, que substituem o tradicional monólogo. Em Antígona, nos primeiros versos, é a própria heróina quem lamenta para Ismênia e introduz o fato de elas estarem sofrendo pela herança herdada de Édipo. Nos versos seguintes, Antígona falará sobre o enterro de seu irmão

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Tradução de Filomena Yoshie Hirata em: HIRATA, F. Y. A hamartía aristotélica e a tragédia grega. In: Anais de Filosofia Clássica, vol. 2, n. 3, Universidade de São Paulo, 2008.

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Segundo Moisés (1974, p. 287) trata-se de uma convenção própria da poesia épica clássica, que preconizava que a ação do poema deveria começar pelo meio, no pressuposto de que o trecho inicial não só carecia de interesse para o leitor como poderia perfeitamente ser narrado mais tarde.

Polinices, que se encontra morto e jogado ao relento; no entanto, detalhes da história de seu pai e da batalha entre os irmãos não são descritos, indício que confirma o conhecimento do público da saga dos Labdácidas.

Há que se recordar ainda, o efeito causado pelos cantos corais que, em muitos momentos, retomam questões pertinentes ao mito como forma de rememorar a audiência e, é claro, sublinhar informações que sejam oportunas ao drama. É o caso, por exemplo, do coro de anciãos de Maratona em Heráclidas (Heracl. 232-235), em que o canto coral se compadece da aflição de Iolau e dos filhos de Héracles, lembrando a linhagem das crianças e a heroicidade do pai.

Para se ter uma ideia da potência da criação de um autor, de acordo com Asheri (2006, p. 60), a imagem que Ésquilo criou de Xerxes e seu império, através de Persas, foi tamanha que ainda foram sentidos na sociedade os efeitos de sua criação. Segundo o historiador, inúmeros detalhes da vida de Dario e outros comandantes aquemênidas serão deixados de lado, ao longo dos anos, em detrimento da imagem tirânica e incômoda de Xerxes. A imagem construída por Ésquilo de Dario, em contrapartida, fez com que o rei fosse inocentado e inclusive idealizado quando comparado ao filho. O incêndio de templos jônicos seria, por muito tempo na própria Pérsia, erroneamente atribuído a Xerxes, fato este que se deve, em parte, à imagem construída por Ésquilo.

Portanto, é possível perceber como os autores lidarão com o mito dentro da tragédia. A arte de cada um deles será explorada em toda sua magnitude, porém, sem esquecerem da tradição. Esta tradição possibilita leituras plurais e, mais do que isso, permite que as preocupações do período possam ser inseridas dentro do discurso do drama para a identificação direta do espectador com os antepassados gloriosos. Além de um resgate do passado fica evidente, também, o impacto que o

drama instaurava na sociedade, até mesmo perpetuando imagens construídas no ambiente do teatro.

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