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3. CELEBRAÇÃO DE CONVÊNIOS NO ÂMBITO DO CONFAZ: UMA ANÁLISE

3.4. A exigência de unanimidade em face do regime democrático de governo

Percebe-se que além de menoscabar o sistema federativo, a Lei Complementar nº 24/75 avilta a democracia, considerada por Paulo Bonavides “a melhor e mais sábia forma de organização do poder, conhecida na história política e social de todas as civilizações.”78

Verifica-se que nenhuma exigência de unanimidade é democrática, uma vez que a democracia está no que concerne à dialética, a dirimir divergências mediante o acatamento de uma decisão, desde que majoritária e mesmo que individualmente considerada seja desfavorável, sendo necessário um saldo benéfico à coletividade. Conforme aduzem Alexandre Coutinho da Silveira e Fernando Facury Scaff,

77 Expressão utilizada por Sacha Cálmon Navarro Coelho (COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de direito

tributário brasileiro. 7ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 221.), malgrado o autor possua entendimento diverso.

É necessário notar que a exigência de unanimidade não se exige nem mesmo para alterar a Constituição. As propostas de Emenda Constitucional devem ser aprovadas por 3/5 dos votos dos membros do Congresso Nacional. Todo o processo legislativo possui regras de aprovação inferiores a essa proporção de 3/5. Então, se para alterar a Constituição, mesmo em preceitos basilares (é claro, naquilo que não contrarie cláusula pétrea), exige-se 3/5 dos votos, não se afigura aceitável que para qualquer concessão de incentivo fiscal deva-se atingir votação unânime. Pode-se concluir que tal regra sequer foi recepcionada pela CF/1988.79

À símile, entende Ivo César Barreto de Carvalho:

[...] o quórum de unanimidade para a aprovação de concessões de benefícios fiscais em matéria de ICMS é antidemocrático, fere a autonomia dos estados- membros e do Distrito Federal, além de instituir uma condição, verdadeiramente um obstáculo, praticamente impossível de se atingir, a não ser através de pressões políticas ou concessões mútuas de duvidosa legitimidade.80

Assim, a exigência de unanimidade presente na Lei Complementar nº 24/75 privilegia a decisão de um único ente em detrimento dos demais, já que basta uma única discordância para que o convênio não seja firmado, o que indubitavelmente vilipendia o regime democrático de governo, cujos pilares já se encontram fragilizados, máxime diante da crise de representatividade que se verifica na espera política.

Tal crise é notória, uma vez que a coletividade pouco se identifica com os seus próprios representantes, os quais não apresentam, em regra, uma sólida e bem definida postura ideológica, deixando, pois, a sociedade alheia às suas atuações, inviabilizando o controle e a manifestação de necessidades populares.

Destarte, a população brasileira encontra-se amiúde alijada dos processos decisórios, a despeito dos consectários que estes trarão para a vida em sociedade. Tal fato transporta-se para o direito tributário, seara na qual se evidencia a ausência de uma consciência fiscal popular. No que concerne ao exposto, aduz Aliomar Baleeiro:

Em uma democracia, essa consciência nítida da parte que incumbe a cada cidadão na distribuição das despesas indispensáveis ao funcionamento do Estado, é reputada essencial a um elevado padrão cívico. Em verdade, pequena parte da população, atingida por impostos diretos e pessoais, compreende bem quanto lhe coube no rateio do custo da máquina governamental.81

Com efeito, à símile da forma federativa de estado, conforme já elucidado no tópico anterior, o regime democrático também possui frágeis bases de sustentação, o que reverbera nas mais diversas searas, inclusive a tributária.

79 SILVEIRA, Alexandre Coutinho da; SCAFF, Fernando Facury, op. cit., 2015, p. 42. 80

CARVALHO, Ivo César Barreto de, op. cit., 2015, p. 271.

81 BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 18ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012,

Contudo, apenas no que concerne à exoneração fiscal no âmbito do Confaz, observa-se a institucionalização da ruptura para com o regime democrático, apresentando-se a unanimidade como uma severa exigência não factível e totalmente dissoante para com os demais quóruns de deliberação em nosso ordenamento jurídico constitucional, consubstanciando-se uma condição irrefutavelmente antidemocrática.

Tem-se, assim, a configuração de uma situação assaz preocupante no seio da democracia brasileira, uma vez que muitos são os atentados a esta, ainda que oblíquos; mas nenhum de forma tão explícita e normatizada como o presente na Lei Complementar nº 24/75. Trata-se de um retrocesso permitir que o regime democrático seja relegado à condição de inferioridade, como notoriamente é feito no âmbito do diploma normativo em comento, que avilta o referido regime desde a ausência de legitimidade dos convênios em si mesmos considerados (dada a violação à separação dos poderes e, consequentemente, à ausência de representação popular nas deliberações), alcançando seu expoente máximo de menoscabo na exigência de quórum unânime para a celebração dos convênios desonerativos em matéria fiscal.

Há quem entenda de modo diverso, como Lucas Bevilacqua:

A exigência de unanimidade dos estados para a concessão de incentivos fiscais não se realizou de modo despropositado. Tal previsão parece razoável em função de que, se porventura fosse exigida apenas votação por maioria, alguns dos estados da Federação poderiam reunir-se para conceder incentivo fiscal a um ou a alguns deles com vistas a exterminar o mercado interno de outro ente federado. Portanto, solução outra não vislumbrou o legislador de então com vistas a conferir unidade ao mercado interno.82

No entanto, partir da premissa em epígrafe, de que alguns estados entrariam em conchavo a fim de lesar os demais; significa derrogar os ditames presumidos da boa fé em nosso ordenamento jurídico, sendo completamente descabido pressupor a inclinação dos entes federados a agir deliberadamente em prejuízo dos demais, quando seria possível a celebração de acordos, com cessões mútuas em prol da coletividade.

Ademais, utilizar a possibilidade da ocorrência de um ardil para justificar uma exigência inflexível e plenamente incoerente com a base principiológica democrática e seus consectários em nosso ordenamento jurídico é o mesmo que exagerar na argumentação a fim de conduzir a um raciocínio jurídico equivocado com aparência de verdadeiro. Permissa venia, trata-se, portanto, de falácia argumentativa.

Analisando-se qualquer deliberação sob a ótica da suposta mancomunação, conduzir-se-ia à derrogação do princípio majoritário e ter-se-ia que efetuar uma reforma em

toda a ordem jurídica brasileira, na qual diversos quóruns são utilizados para aprovação das mais diversas pautas, tanto no âmbito legislativo quanto jurídico.

Ainda que houvesse conluio de alguns entes federados em detrimento dos demais, tem-se que os estados mais abastados estão em menor número na federação, logo não haveria meios de concretizar um estratagema em prejuízo dos entes federados menos desenvolvidos, os quais também não seriam os ‘senhores absolutos’ das deliberações, visto que incentivos fiscais impulsionam o estabelecimento de investimentos no mercado de determinada localidade, mas não de forma exclusiva, haja que vista que há outros elementos incentivadores de um empreendimento, tais como: mercado consumidor, infraestrutura, dentre outros.

Observa-se, por derradeiro, que muitas mais facilidades para boicotes são encontradas na Lei Complementar nº 24/75, nos moldes estabelecidos de exigência de unanimidade do que se houvesse um quórum de maioria absoluta de deliberação, por exemplo; pois, na configuração atual, basta uma mera animosidade política entre entes federados para que um destes atravanque as deliberações, não sendo necessário nenhum ardil para tal.

Em suma, a exigência de unanimidade é evidentemente antidemocrática, e, consequentemente, resgatadora de efeitos perniciosos que permeiam quaisquer civilizações que convivam com o autoritarismo em detrimento da vontade soberana da maioria.

Nesse sentido, informa-se que há proposta legislativa em trâmite no Congresso Nacional a fim de eliminar essa exigência desarrazoada de unanimidade, qual seja: PLP 85/2011.83 Destarte, percebe-se que o trâmite de tal proposta é um avanço legislativo sem precedentes na evolução da perspectiva democrática no âmbito dos incentivos fiscais, trazendo a lume o recrudescimento da base axiológica de nosso Estado Democrático de Direito.

Contudo, tal evolução, malgrado seja significativa, ainda é incipiente, para não dizer tímida, haja vista que mantém a ratificação dos acordos na esfera de atuação do Poder Executivo, quando a ordem democrática brasileira clama pela concessão da aludida ratificação ao Poder Legislativo, cumprindo o escopo principiológico consubstanciado na separação dos poderes e na representação popular, fonte de onde emanda todo e qualquer poder em nossa nação.

83 PLP 85/2011: Art2º: [...] A autorização para a concessão e a revogação, total ou parcial, de isenções,

incentivos e benefícios fiscais dependerá, cumulativamente, da aprovação: I – pela maioria absoluta dos Estados e do Distrito Federal representados; e II – de pelo menos um Estado de cada uma das cinco Regiões Geográficas do País. (NR)

3.5. (In) constitucionalidade da exigência de unanimidade

Diante da situação já examinada de desequilíbrio socioeconômico, concorrência predatória e rivalidade exacerbada entre os entes federados como consectários de acirradas contentas fiscais, traz-se a lume o questionamento acerca da constitucionalidade da exigência de unanimidade como quórum necessário para celebração de convênios no âmbito do Confaz.

Não se almeja o afã de discutir se a Lei Complementar nº 24/75 foi ou não recepcionada pela Carta Magna de 1988, haja vista que se trata de uma temática sobre a qual não é cabível discussão diante da previsão expressa no artigo 34, § 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, fazendo referência ao diploma normativo em comento.

Muitos debates já ocorreram no âmbito da Suprema Corte acerca da constitucionalidade ou não de leis fiscais desoneradoras, contudo ainda não se observa discussões imiscuindo-se na temática específica da unanimidade.

Assaz questionamentos foram trazidos à baila neste capítulo em se tratando da unanimidade diante da forma federativa de estado, do desiderato constitucional de desenvolvimento regional e do regime democrático de governo, conduzindo-se ao desfecho do entendimento aqui manifestado em defesa da ordem constitucional brasileira, a qual, inexoravelmente, não se coaduna com essa exigência desarrazoada e desproporcional contida na Lei Complementar nº 24/75.

Conforme já ressaltado, a sistemática de convênios conserva pertinência com o escopo de coibir o cenário caótico em que se insere a guerra fiscal, porém a exigência de unanimidade para tal oblitera totalmente sua eficácia.

É evidente, inclusive, o total descompasso dessa exigência com a própria percepção do desiderato que legitima a existência e necessidade dos incentivos fiscais, qual seja: a superação das desigualdades socioeconômicas regionais; pois, se há significativas disparidades entre os entes federados, é de fácil ilação que os interesses destes não são convergentes, logo, dificilmente um consenso absoluto será atingido.

Consoante magistério de Regis Fernandes de Oliveira:

O órgão representativo da federação é o Senado [...]. Para as deliberações do Senado objetivando a manutenção da unidade da federação em relação ao poder tributário, há necessidade de decisão por dois terços de seus membros. Daí a incongruência não admitida pela Constituição Federal de que as decisões do Confaz se façam por unanimidade. Ora, se o órgão de representação política dos estados pode e deve decidir por maioria absoluta ou de dois terços, [...] nenhuma lógica estrutural ou sentido jurídico tem a exigência de unanimidade prevista para as deliberações do Confaz, em relação à outorga de benefícios.84

Portanto, a exigência de unanimidade para a celebração de convênios no Confaz é inconstitucional, sendo tão somente símbolo de “contrabando normativo autoritário da Lei Complementar nº 24/75” 85, eliminando quaisquer possibilidades de equilíbrio e harmonia entre os estados membros da federação brasileira, a qual resta aviltada diante de tantas rivalidades e seus efeitos deletérios ao desenvolvimento coeso regional; assim como resta completamente desvirtuado o propósito de competitividade salutar legitimador da razão de existir dos incentivos fiscais.

4. SITUAÇÃO JURÍDICA DOS CONTRIBUINTES BENEFICIÁRIOS DE