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4. SITUAÇÃO JURÍDICA DOS CONTRIBUINTES BENEFICIÁRIOS DE

4.1. Entendimento pretoriano e efeitos dele decorrentes

Nesse panorama de intensos conflitos fiscais já apresentados ao longo deste trabalho acadêmico, é imperioso apresentar como a Suprema Corte tem posicionado-se a respeito da concessão unilateral de incentivos fiscais em matéria de ICMS.

Com efeito, o Supremo Tribunal Federal já foi instado a manifestar-se diversas vezes, apresentando entendimento consolidado no sentido da constitucionalidade da Lei Complementar nº 24/75 e, consequentemente, da inconstitucionalidade das leis estatais que têm concedido benefícios fiscais unilateralmente, como pode ser exemplificado86 pela declaração de inconstitucionalidade da Lei 4181/2003, que havia instituído o Programa de Desenvolvimento do Setor Aeronáutico no estado do Rio de Janeiro (RioAerotec); da Lei 2483/1999, que havia implementado o Programa de Promoção do Desenvolvimento Econômico Integrado e Sustentável do Distrito Federal (Pró-DF), dentre outros diplomas normativos.

Essa postura da Suprema Corte não se trata de uma novidade, mas remonta ao final do século XX (final da década de 80 e início da década de 90), “sendo que um lote de decisões causou grande comoção em 1º de junho de 2011, quando em apenas uma sessão de julgamento sete estados tiveram suas leis de incentivos fiscais declaradas inconstitucionais”87. Para ciência, as ações diretas de inconstitucionalidade (14, apesar de serem 7 estados) foram as seguintes: ADI 3.794, ADI 2.906, ADI 2.376, ADI 3.674, ADI 3.413, ADI 4.457, ADI 3.664, ADI 2.688, ADI 3.803, ADI 3.702, ADI 2.352, ADI 1.247, ADI 4.152 e ADI 2.549.

A problemática que se apresenta no âmbito da Suprema Corte está no que concerne aos formalismos legais em que está imbuída, uma vez que, amiúde, verificou-se revogação de lei concessora de incentivos fiscais tão logo fosse objeto de ação direta de

86

MEDEIROS, Alberto. Inconstitucionalidade de benefícios fiscais unilaterais em matéria de ICMS e segurança jurídica dos contribuintes. In: Revista Dialética de Direito Tributário - 238. São Paulo: Dialética, 2015, p.11.

inconstitucionalidade, restando por prejudicado o prosseguimento desta em decorrência da perda do objeto, embora, em seguida, a referida lei fosse reeditada.

Mas, há indicativos de que tal situação será alterada, conforme é possível pressupor mediante a proposta de lei PL 4.355/12, já aprovada pela Câmara dos Deputados e em aguardo de apreciação pelo Senado Federal. Esta proposta possui o escopo de alterar a Lei nº 9.868/99, a fim de autorizar o julgamento de processo pela Suprema Corte que tenha por objeto dispositivo revogado de lei ou ato normativo88.

Acerca do contexto atual, Fernando Facury Scaff89 fornece o exemplo da ineficácia dos pleitos submetidos à análise do Supremo Tribunal Federal mediante o exemplo do caso ocorrido no Pará (o primeiro a ter sentença de mérito sem a lei objeto de análise ter sido revogada previamente), mediante ADI 3.246; que, a despeito de o julgamento ter ocorrido em 2006, ainda não transitou em julgado, em decorrência da interposição de embargos de declaração. Ao passo que tal ocorre, no âmbito de deliberações do Confaz, foi celebrado o Convênio ICMS, em 20 de janeiro de 2010, pondo termo à controvérsia, autorizando o estado do Pará a não exigir os débitos que seriam oriundos da concessão de incentivos fiscais de forma unilateral.

Mediante o exemplo narrado em epígrafe, demonstra-se a ausência de eficácia do âmbito jurisdicional, carecedor de efetividade e, consequentemente, celeridade, a qual não é dispensada pelas disputas econômicas e políticas. Sobre essa disfunção no âmbito da Suprema Corte, Sérgio André Rocha destaca:

Se o protagonismo do STF na interpretação constitucional, no contexto da argumentação jurídica e com a participação no processo dos demais intérpretes da Constituição, não é uma ameaça à segurança jurídica possível na sociedade de risco, o tempo que leva para a Corte se pronunciar sobre as questões o é.90

De forma semelhante, ressalta Marciano Seabra de Godoi:

Um aspecto importante [...] é a necessidade de que não decorra um lapso de tempo excessivamente longo para que o sistema jurídico defina de modo definitivo as consequências dos atos praticados pelos cidadãos. Esse é um dos aspectos mais problemáticos da realidade atual do Direito Tributário brasileiro, em que os tribunais, e principalmente o Supremo Tribunal Federal, não conseguem julgar causas tributárias de capital importância num prazo razoável.91

88

BRASIL. Câmara dos Deputados. Disponível em: <

http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/489324-CAMARA-APROVA- PROJETO-QUE-AUTORIZA-STF-A-JULGAR-LEI-REVOGADA.html.> Acesso em: 08 abr.2016.

89

SCAFF, Fernando Facury, op. cit., 2014, p. 99.

90

ROCHA, Sérgio André. O protagonismo do STF na interpretação da Constituição pode afetar a segurança jurídica em matéria tributária? In: Valdir de Oliveira Rocha (coord.). Grandes questões atuais de direito tributário. Vol. 15. São Paulo: Dialética, 2011, p. 245.

91

GODOI, Marciano Seabra de. Proteção da segurança jurídica e guinadas jurisprudenciais em matéria tributária: análise da doutrina atual e de alguns casos recentes. In Valdir de Oliveira Rocha (coord.). Grandes questões atuais de direito tributário. Vol. 16. Paulo: Dialética, 2011, p. 244.

Em se tratando do posicionamento do Egrégio Tribunal acerca da temática em exame, ressalta-se o entendimento reiterado pela inconstitucionalidade de incentivos fiscais concedidos fora do Confaz. Nesse sentido, tem-se a ADI 4.635 MC-AgR-Ref/SP, julgada em 11.12.2014 pelo Tribunal Pleno, na qual ficou plenamente elucidado como se manifesta o Supremo Tribunal Federal:

A existência de convênios interestaduais celebrados em atenção e em respeito à cláusula da reserva constitucional de convênio, fundada no art. 155, § 2º, inciso XII,

alínea “g”, da Constituição da República, traduz pressuposto essencial legitimador

da válida concessão, por estado-membro ou pelo Distrito Federal, de benefícios, incentivos ou exonerações fiscais em tema de ICMS. – Revela-se inconstitucional a concessão unilateral, por parte de estado-membro ou do Distrito Federal, sem anterior convênio interestadual que a autorize, de quaisquer benefícios tributários referentes ao ICMS, tais como, exemplificativamente, (a) a outorga de isenções, (b) a redução de base de cálculo e/ou de alíquota, (c) a concessão de créditos presumidos, (d) a dispensa de obrigações acessórias, (e) o diferimento do prazo para pagamento e (f) o cancelamento de notificações fiscais.

No referendo no agravo regimental na medida cautelar na ADI 4.635 supramencionada, o Relator, Ministro Celso de Mello, assim aduziu:

Com efeito, a outorga unilateral, por determinado estado-membro, de benefícios de ordem tributária em tema de ICMS não se qualifica, porque inconstitucional , como resposta legítima e juridicamente idônea à legislação de outro estado-membro que também se revele impregnada do mesmo vício de inconstitucionalidade e que, por resultar de igual transgressão à cláusula constitucional da reserva de convênio, venha a provocar desequilíbrios concorrenciais entre referidas unidades federadas, assim causando gravame aos interesses do estado-membro alegadamente prejudicado.92

Destarte, no âmbito da Suprema Corte, o entendimento já se encontra tão pacificado que está em deliberação a proposta de súmula vinculante número 69, por iniciativa do Ministro Gilmar Mendes, tendente a sumular a inconstitucionalidade de incentivos fiscais concedidos fora do âmbito de deliberação do Confaz, o que o faz nos seguintes termos:

Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional.

Com a possível conversão desta proposta em súmula vinculante, ter-se-á o agravamento de uma questão já tão complexa nos dias hodiernos que prescinde de maior imbróglio, que, indubitavelmente ocorrerá caso seja editada a aludida súmula vinculante, haja

92

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na medida cautelar na ADI 4635. Relator: Celso de

Mello. DJe: 22.09.2015. P. 23. Disponível em:

vista que tal normatização vinculará toda a administração pública, trazendo a lume mais problemáticas a serem dirimidas, às quais a proposta não se apresenta idônea a dirimir.

O aspecto precípuo lacunoso em tal previsão normativa é exatamente a situação jurídica dos contribuintes beneficiários dos incentivos fiscais fora do Confaz, bem como daqueles que continuam deles usufruindo. Tais contribuintes podem ser compelidos a recolher, retroativamente, o imposto cuja isenção lhes foi assegurada por lei e foi determinante para o delineamento de suas estratégias de atuação no mercado, se, porventura, for aprovada a edição da súmula vinculante em exame.

Ressalta-se, inclusive, que não se trata de uma problemática adstrita ao âmbito individual dos contribuintes, mas que reverbera nas mais diversas searas, sobretudo política, social e econômica, uma vez que poucos seriam aqueles que se manteriam no mercado, caso tivessem que restituir as isenções com as quais foram agraciados, influindo assim, de forma significativa, nos âmbitos trabalhista, falimentar, dentre outros. “De fato, eventual decretação de invalidade ex tunc de determinados programas estaduais de incentivos fiscais ocasionará repercussão em todo o sistema até então vigente no território nacional.”93

Destarte, trata-se de uma lacuna deveras preocupante, sobretudo, quando examinado sob o princípio da segurança jurídica que norteia nosso ordenamento.

Conforme explicita Alberto Medeiros,

[...] o STF ainda não se manifestou adequada e profundamente, como esperado, sobre as consequências jurídicas da declaração de inconstitucionalidade dos benefícios fiscais de ICMS concedidos unilateralmente pelos estados, notadamente do ponto de vista da possibilidade (ou obrigatoriedade) da cobrança retroativa do tributo por esses entes. Esse cenário, sem sombra de duvidas, acirrou-se de forma preocupante após a concessão da medida liminar na AC nº 3.802/DF- que, na prática, autorizou a cobrança retroativa dos valores economizados pelos contribuintes do DF no passado – e se acirrará ainda mais após a publicação da já citada Súmula Vinculante sobre o tema, ainda em discussão perante a Corte.94 Deveras, configura-se um cenário de intensa instabilidade para os contribuintes, cujo dirimir da controvérsia lhes é essencial, dada a necessidade de planejamento e execução de seus empreendimentos em consonância com a receita de que dispõem, aspecto sobremaneira influenciado pela concessão de isenções fiscais.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal não pode se escusar de decidir a questão sem ter por supedâneo o interesse público envolvido, haja vista que os efeitos perniciosos advindos da declaração de inconstitucionalidade dos incentivos fiscais serão percebidos em toda a federação brasileira, sobretudo nos entes federados menos desenvolvidos ou ainda em

93 BEVILACQUA, Lucas, op. cit., 2013 p. 245. 94 MEDEIROS, Alberto, op. cit., 2015, p. 14.

desenvolvimento, afastando-se, ainda mais, do afã constitucional de desenvolvimento regional equilibrado. À símile do exposto, expõe Lucas Bevilacqua:

Os possíveis prejuízos resultantes da ausência de convalidação dos incentivos fiscais de ICMS seriam imprevisíveis em sua extensão, notadamente em se considerando a

real possibilidade de “desindustrialização” daqueles estados periféricos, onde as

sociedades empresárias contam com os incentivos fiscais para o desempenho regular de suas atividades empresariais.95

Portanto, diante de possíveis efeitos nefastos aos próprios entes federativos, em última análise, ocasionados porventura por uma mera declaração de invalidade dos incentivos, a Suprema Corte, fazendo jus ao seu epíteto de guardiã da Constituição, tem a incumbência de conferir segurança e, consequentemente, estabilidade às relações jurídicas nesse cenário de tumulto fiscal, pondo termo às querelas que permeiam a matéria de incentivos fiscais no ICMS e concedendo a concreta tutela jurídica à boa fé dos contribuintes e à presunção de legalidade dos atos emanados do poder público.

Sensível à sua função precípua supramencionada, o Supremo Tribunal Federal, em uma decisão isolada (ADI 4.48196, que ainda não transitou em julgado, devido à oposição de embargos de declaração), pronunciou-se, de forma inovadora, no sentido da não cobrança de valores retroativos correspondentes aos tributos não recolhidos em razão de incentivos fiscais concedidos unilateralmente pelo estado do Paraná.

O relator, Ministro Roberto Barroso, de forma elucidativa, manifestou-se:

[...] É certo que a jurisprudência do STF sobre o procedimento a ser observado para o deferimento de benefícios em matéria de ICMS é mais do que conhecida. Não gera grande surpresa a decisão ora proferida, no sentido da inconstitucionalidade da lei estadual. Por outro lado, a norma em exame vigorou por oito anos, com presunção de constitucionalidade, de modo que a atribuição efeitos retroativos à declaração de inconstitucionalidade geraria um grande impacto e um impacto injusto para os contribuintes. [...] Observo, por fim, que a modulação, no presente caso, decorre de um juízo de ponderação que não envolve o assim chamado princípio da supremacia da Constituição. A supremacia da Constituição é pressuposto do sistema de controle da constitucionalidade e, por consequência, é imponderável. A ponderação ocorre entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da

95

BEVILACQUA, Lucas, op. cit., 2013, p. 245.

96Ementa:. I. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL QUE INSTITUI BENEFÍCIOS FISCAIS RELATIVOS AO

ICMS. AUSÊNCIA DE CONVÊNIO INTERESTADUAL PRÉVIO. OFENSA AO ART. 155, § 2º, XII, g, DA CF/88. II. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS. 1. A instituição de benefícios fiscais relativos ao ICMS só pode ser realizada com base em convênio interestadual, na forma do art. 155, §2º, XII, g, da CF/88 e da Lei Complementar nº 24/75. 2. De acordo com a jurisprudência do STF, o mero diferimento do pagamento de débitos relativos ao ICMS, sem a concessão de qualquer redução do valor devido, não configura benefício fiscal, de modo que pode ser estabelecido sem convênio prévio. 3. A modulação dos efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade decorre da ponderação entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, uma vez que a norma vigorou por oito anos sem que fosse suspensa pelo STF. A supremacia da Constituição é um pressuposto do sistema de controle de constitucionalidade, sendo insuscetível de ponderação por impossibilidade lógica. 4. Procedência parcial do pedido. Modulação para que a decisão produza efeitos a contatar da data da sessão de julgamento. (ADI 4.481, relator: Ministro Roberto Barroso, reqte.: Confederação Nacional da Indústria; intdo.: Governador do Estado do Paraná, Assembleia Legislativa do Estado do Paraná; Dje: 26 mar.2015.)

segurança jurídica. Pelas razões já expostas, entendo que devem prevalecer os últimos princípios, atribuindo-se eficácia a esta decisão a partir da data desta sessão.

Sobre a decisão em comento, Fernando Facury Scaff, preleciona:

Trata-se de uma novidade, pois até então o STF julgava impondo a cobrança retroativa de todo o imposto. A decisão adotou um caminho adequado: as empresas agiram de boa fé ao acreditar na lei que concedia os incentivos fiscais estaduais e realizaram investimentos que só foram economicamente possíveis graças à redução de tributos. [...] A cobrança retroativa dos impostos geraria enorme insegurança jurídica e poderia até mesmo representar grandes perdas em vários setores econômicos que se beneficiaram da lei. A decisão mostra um caminho que o STF pode começar a trilhar para começar a resolver o problema que o fim desses incentivos vai causar.97

Por derradeiro, em nome da segurança jurídica, da proteção da legítima confiança e da boa fé dos contribuintes, e da presunção de constitucionalidade das leis até que o oposto seja declarado, espera-se que a decisão proferida na ADI 4.481 torne-se um precedente a ser seguido pelas vindouras, atribuindo-se, assim, os justos efeitos jurídicos aos incentivos fiscais unilateralmente concedidos no período anterior à declaração de inconstitucionalidade, porventura ocorrida.