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A boa fé e a proteção da confiança como elementos de elisão de responsabilidade dos

4. SITUAÇÃO JURÍDICA DOS CONTRIBUINTES BENEFICIÁRIOS DE

4.3. A boa fé e a proteção da confiança como elementos de elisão de responsabilidade dos

Em nosso ordenamento, à símile da segurança jurídica, a boa fé consiste em um dos princípios basilares das relações jurídicas, sendo, assim, presumida e, consequentemente, apenas, excepcionalmente, destituída diante de provas insofismáveis nesse sentido. Destarte, de modo menos abstrato, a boa fé dos contribuintes está no que concerne a uma conduta proba e leal, tendo por supedâneo a confiança nas instituições estatais, bem como nos atos delas emanados.

Aliada à boa fé, está a proteção da confiança, da qual o contribuinte esteve munido ao ter estabelecido a relação exonerativa com o poder público, gerando uma genuína expectativa de estabilidade em tal isenção, sendo, inclusive, determinante para seu planejamento econômico e estabelecimento em determinado local; induzindo, portanto, modificação em seu comportamento de mercado, o que, indubitavelmente, não ocorreria se não houvesse o incentivo estatal nesse sentido.

Acerca da proteção da confiança, Humberto Ávila preleciona:

O princípio da proteção da confiança só se justifica nos casos em que o cidadão tem a sua confiança, gerada por um ato estatal anterior, frustrada por urna nova manifestação estatal posterior contraditória. É preciso, em outras palavras, que haja frustração da confiança.108

De forma semelhante, manifesta-se Ana Paula Ávila:

O princípio da proteção da confiança exige, assim, que se tenha em conta a confiança dos beneficiários na estabilidade dos atos emitidos pelo Estado, representando uma espécie de contrapartida à presunção de legitimidade que gozam os atos administrativos, e à presunção de constitucionalidade que gozam os atos normativos do Poder Legislativo.109

Destarte, a confiança dos contribuintes no poder público, bem como a boa fé destes, é evidente, haja vista que seria pouco provável que arriscassem a vitalidade de seus

108 ÁVILA, Humberto, op. cit., 2011, p 401. 109

ÁVILA, Ana Paula. A modulação dos efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade: ponderação e regras de argumentação para interpretação conforme a Constituição do artigo 27 da Lei n. 9868/99. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 149-150.

empreendimentos em decorrência de incentivos fiscais temerários, passando a enfrentar os dissabores de processos judiciais e a lidar com a instabilidade, deveras prejudicial à atuação no mercado.

Com efeito, exigir que o contribuinte suporte o ônus financeiro de uma graça estatal da qual foi legitimamente beneficiário é o mesmo que lhe impor uma punição por cumprir uma lei, presumidamente constitucional, emanada do próprio Estado, que possui legitimidade para tal. Indubitavelmente, tratar-se-ia de um contrassenso jurídico! Nesse sentido, Roque Antônio Carrazza preleciona:

[...] como ficam as empresas contribuintes de ICMS que, para usufruírem de benefícios fiscais ou financeiros, agiram de acordo com o que estatuíam as leis locais, que supunham traduzir o melhor direito?

A nosso ver, tais empresas, em homenagem, se por mais não fosse, ao princípio da boa fé, devem ter preservadas as situações que surgiram até a declaração de inconstitucionalidade dos aludidos benefícios.

As vantagens no campo do ICMS, obtidas enquanto a legislação estadual não for declarada inconstitucional, devem ser preservadas. Afinal, as empresas não podem ser punidas, justamente, por haverem se norteado na bússola da legislação da entidade tributante.

Nunca é demais insistir que o Estado deve inspirar confiança nas pessoas e, portanto, não pode punir os que, munidos de boa fé, agem em consonância com o que a lei estabelece. Ainda que esta lei venha a ser declarada inconstitucional.110 Assim, a confiança nos entes públicos é um elemento idôneo a ser núcleo da tutela estatal, eximindo os contribuintes de responsabilidade quanto ao recebimento dos incentivos fiscais diante de sua fidedigna concessão.

Entender de forma diversa, exigindo a efetuação de pagamento retroativo por incentivos fiscais, com lhaneza recebidos, significa a materialização do venire contra factum proprium estatal, tutelando uma contradição do próprio poder público ao apresentar-se com um comportamento posterior de cobrança completamente incompatível com o anterior de concessão de isenção tributária.

Ressalta-se que a confiança nas instituições estatais é, inclusive, associada à segurança jurídica, podendo ser considerada, até mesmo, parte constitutiva desta em seu aspecto subjetivo, como o faz Canotilho nos seguintes termos:

Esses dois princípios – segurança jurídica e protecção (sic) da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da proteção de confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos (sic) da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas (sic) da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos (sic) dos poderes públicos. [...] Deduz-se já que os postulados da

segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante “qualquer acto” de “qualquer poder” executivo, legislativo e judiciário.111

Assim, é dever do poder público, tendo por supedâneo a segurança jurídica das relações firmadas, tutelar essa confiança depositada na legislação desonerativa, a qual resta evidente à medida que o comportamento de mercado dos contribuintes foi influenciado e, deveras, modificado, a partir dessa genuína credibilidade nas instituições públicas, criando-se um liame de boa fé, lealdade e expectativa do cumprimento pelo ente estatal da avença celebrada, idônea à produção concreta de efeitos no plano econômico e fiscal.

Entretanto, a despeito do exposto, há quem entenda não haver boa fé na conduta dos contribuintes ao aceitarem os incentivos fiscais concedidos. Nesse sentido é o posicionamento de Ricardo Lodi Ribeiro, que o faz nos seguintes termos:

O que o princípio da segurança tutela é a boa fé, a sinceridade de propósitos e a dignidade da confiança, e não a esperteza e a malícia inerentes a um pacto entre contribuintes e governantes que, quase sempre, foram alertados quanto à ilegitimidade dos benefícios fiscais e acreditam na impunidade na coibição dessas, em detrimento dos demais integrantes do mercado que não tiveram acesso aos requisitos encomendados, e dos demais estados que veem sua arrecadação esvaziada por tais manobras.

[...] Por todos esses motivos, a ponderação entre a segurança do contribuinte com a legalidade e o princípio da conduta amistosa dos entes federativos conspira contra a manutenção de incentivos fiscais de ICMS sem aprovação do Confaz, onde dificilmente deve ser reconhecida a proteção da confiança legítima.112

Contudo, analisando-se o entendimento supramencionado, insurge-se de forma categórica, haja vista que não se vislumbra malícia ou esperteza nos contribuintes, mas, ao revés, confiança e vulnerabilidade, sendo tolhidos do livre planejamento de sua atividade empresária diante da possibilidade ameaçadora de serem submetidos à cobrança retrospectiva desarrazoada e injusta das benesses fiscais recebidas sem nenhum ardil ou conluio fraudulento.

Com tal possibilidade, conduz-se a um verdadeiro terror estatal, semelhante ao ocorrido outrora, consoante ressalta James Marins, em se tratando da permanência atual da situação de vulnerabilidade do contribuinte:

Embora já não exista entre nós a vulnerabilidade física do contribuinte decorrente do pavor atávico da irracionalidade da agressão estatal, esta remanesce na memória remota ou recente dos povos, diante da prática histórica do terror fiscal, prática associada ao imperialismo, ao absolutismo, ao estado de guerra ou de polícia. [...] Ainda que insegurança física, o sentimento de desigualdade, inspirado pela figura do sinistro coletor de impostos medieval seja, hoje, simples espectro, mero

111CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Portugal: Coimbra:

Almedina, 1998, p. 250.

112RIBEIRO, Ricardo Lodi. A proteção da confiança legítima do contribuinte. In: Revista Dialética de Direito

ectoplasma histórico, o contribuinte contemporâneo padece de outros fatores causadores de sua vulnerabilidade.

[...] O Estado fiscal é o único credor nos quadrantes do Direito que é simultaneamente, per se, criador, executor e julgador da relação obrigacional e – logo – o contribuinte é o único devedor no ordenamento jurídico cujo credor exerce tríplice função na relação obrigacional. A partir deste ponto de vista é possível visualizar o quão vulnerável é devedor tributário diante de seu credor onipotente.113 (Grifo do autor).

Essa vulnerabilidade dos contribuintes deve ser reconhecida pelo Poder Judiciário no dirimir do imbróglio fiscal configurado nesse cenário de conflitos na ordem tributária, não podendo trazer à cripta da obscuridade elementos que despontam, de forma latente, em defesa dos particulares, como uma convicção inabalável, a saber: boa fé, confiança e lealdade nas relações com o poder público; cumprindo estes particulares o escopo desenvolvimentista que lhes foi atribuído nas regiões realmente carecedoras de incentivos fiscais para ensejar o fomento da economia.

Pode-se, inclusive, considerar que exigir o pagamento retrospectivo fiscal dos contribuintes implica em enriquecimento ilícito do poder público, que foi beneficiado em seu desiderato distributivista, ao passo que os particulares sofreriam o ônus deste, sem quaisquer vantagens de ordem pecuniária; mas ao revés, convivendo com o risco iminente de ter comprometida sua própria viabilidade econômica em um mercado cada vez mais competitivo e predatório.

Contudo, à símile de Ricardo Lodi Ribeiro, entende Alcides Jorge Costa, in verbis:

Todos sabiam, estados e contribuintes, que os incentivos e benefícios unilateralmente concedidos eram inconstitucionais, tão clara e evidente é a sua inconstitucionalidade. [...] Os estados têm culpa, é claro, mas os contribuintes também. E em toda discussão um fator é esquecido. Os incentivos inconstitucionais, com frequência, davam às empresas que deles gozavam, uma situação vantajosa perante seus concorrentes situados noutros estados, com ofensa ao princípio constitucional da livre concorrência.114

Ressalta-se, a princípio, que, em abstrato, não se vislumbra nenhum vilipêndio ao princípio da livre concorrência, uma vez que esta é exercida à medida que são concedidas iguais oportunidades aos contribuintes de obterem incentivos fiscais; logo, a concessão destes, por si só, não pressupõe mácula à livre competição. Sobre o exposto, preleciona Fernando Facury Scaff:

Para que possa existir livre concorrência é imperioso que haja isonomia entre os contendores na arena do mercado. [...] Cabe ao Estado criar condições para que haja livre concorrência, não apenas com sua inação (permissão para o exercício da

113

MARINS, James. Defesa e vulnerabilidade do contribuinte. São Paulo: Dialética, 2009, p. 22-24.

114 COSTA, Alcides Jorge. Guerra fiscal e modulação dos efeitos das decisões do STF. In: Valdir de Oliveira

liberdade), mas também com ações concretas, reprimindo o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (cuja base é a isonomia). (Grifo do autor).115

É, inclusive, em razão da livre concorrência e da necessidade imperativa de manter-se no mercado, que se tem por justificada a posição das empresas que aceitam os incentivos fiscais, mesmo daquelas que possuíssem ciência do questionamento destes na via judicial quando do momento da celebração da relação jurídica com o poder público; não podendo, portanto, serem penalizadas por isso, haja vista que carece de razoabilidade impor a espera de decisão definitiva em controle abstrato de constitucionalidade para que decidam se aceitam ou não os incentivos, dada a ausência de celeridade já explicitada nesse âmbito.

Evidencia-se que o mercado econômico, ao inverso das decisões em demandas judiciais, é dinâmico; não concedendo tempo a hesitações, sob pena de encolhimento nos negócios e, consequentemente, uma possível falência.

Ademais, não se mostra razoável presumir que os contribuintes possuem plena ciência do imbróglio jurídico que permeia a concessão dos incentivos não amparados em convênios, uma vez que não se pode exigir tal conhecimento técnico daqueles que não são especialistas no âmbito tributário, ainda mais quando diante de diplomas normativos presumidamente constitucionais.

Logo, aqui se defende que ainda que haja o conhecimento de controvérsias quanto aos moldes legais de concessão de incentivos fiscais, este não se trata de elemento idôneo a descaracterizar a presunção de boa fé dos contribuintes, que mesmo ao não estarem alheios à ausência de entendimento pacificado nesse âmbito de isenções, estão agalhasados sob o manto protetor da presunção de constitucionalidade das leis (o que só é desconstituído com declaração judicial em sentido oposto) e da confiança que ensejam os entes públicos, uma vez que não se espera armadilhas e contradições do próprio Estado, ente público dotado de legitimidade popular e, portanto, credibilidade.

Consoante explicita Hugo de Brito Machado Segundo:

[...] em contraposição à tese de que o contribuinte incentivado “sabia ou deveria saber” que o incentivo era inconstitucional, pode-se dizer, ainda, que o estado-

membro, com mais razão ainda sabia disso. Desse modo, soa ainda mais injustificável que, como consequência do desfazimento da situação inconstitucional, saia ganhando, imensamente, aquele que foi o maior responsável por ela.116

115 SCAFF, Fernando Facury. Responsabilidade tributária dos contribuintes em razão da guerra fiscal. In: Valdir

de Oliveira Rocha (coord.). Grandes questões atuais de direito tributário. Vol. 19. São Paulo: Dialética, 2015, p. 62-63.

Em se tratando da concorrência entre os contribuintes por incentivos, é fato, porém, que alguns são agraciados com isenção na tributação em detrimento dos demais, mas tal é consectário lógico da própria política de incentivos fiscais, uma vez que seria inviável concedê-los a todos, devendo haver parâmetros objetivos de seleção daquele que melhor está em consonância com o esperado em prol do interesse público.

Assevera-se, contudo, que, caso algum contribuinte sinta-se prejudicado por ter optado por não receber incentivos fiscais fora do âmbito da sistemática de convênios no Confaz, poderá demandar uma indenização contra o ente concedente da isenção, limitando-se a este a responsabilidade por eventual reparação; o que, jamais poderá ser transmitido ao contribuinte de boa fé beneficiário dos incentivos, que nenhuma relação firmou com aquele que tenha se sentido lesado, estando, portanto, alheio a essa porventura estabelecida relação processual entre terceiro e poder público.

Nesse sentido, aduz Alberto Medeiros:

Com efeito, os eventuais prejuízos sofridos pelos demais estados que cumpriram a Constituição Federal e, possivelmente, deixaram de receber investimentos da iniciativa privada – deixando, com isso, de enriquecer e converter benefícios por meio de melhor prestação de serviços públicos à sua população -, devem ser compensados de outra maneira, que não atinja ou prejudique os contribuintes de boa fé e que seja apenas restrita ao âmbito dos entes federados.

Por isso, uma das mais interessantes soluções para o problema é aquela que considera possível essa reparação apenas no âmbito cível, ou seja, mediante o ajuizamento, no foro próprio do Supremo Tribunal Federal (responsável por dirimir desavenças entre os estados da Federação, nos termos do artigo 102, I, “f” da Carta Política) de ação indenizatória pelo ente federativo prejudicado contra aquele que concedeu unilateralmente o benefício declarado inconstitucional pela Corte.117 Ademais, é indubitável que a responsabilidade pela concessão dos incentivos fiscais é do ente público que os concedeu, sendo o particular tão somente probo e obediente ao seguir a legislação daquele emanada, sendo totalmente descabido e contrário aos ditames da boa fé, da segurança jurídica e da confiança cogitar-se acerca de cobrança retroativa de tributos cerne de isenção.

Nesse sentido, Fernando Facury Scaff apresenta seu magistério:

A pessoa que infringe a norma é o estado concedente dos benefícios fiscais à margem do Confaz. A empresa é terceiro nesta relação. O estado que concedeu os incentivos às empresas é a pessoa responsável – é quem responde pelo ato. Tanto isso é verdadeiro, que a norma que venha a ser considerada inconstitucional será a do estado. As empresas não cometeram nenhum ato contrário ao Direito – elas se beneficiaram das normas estaduais que concederam esses direitos sem a aprovação do Confaz, desobedecendo as regras da Lei Complementar nº 24/75. Mais: não haveria outra conduta possível para essas empresas, sob pena de seus negócios naufragarem. (Grifo do autor).118

117 MEDEIROS, Alberto, op. cit., 2015, p. 20. 118 SCAFF, Fernando Facury, op. cit., 2015, p. 70.

Superada essa problemática acerca da responsabilidade, passa-se ao exame da necessária modulação dos efeitos das decisões judiciais que, porventura, venham a, equivocadamente, responsabilizar o contribuinte, cujos efeitos devem ser ex tunc, concedendo a imperiosa segurança jurídica a relações concretizadas e estabilizadas no decorrer do tempo.