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2.3 O tráfico de seres humanos em uma abordagem morfológica

2.3.3 O intuito de exploração da vítima: dolo

2.3.3.1 A exploração da vítima no mercado do sexo

2.3.3.1.1 A exploração sexual à luz dos debates feministas

Este estudo parte da premissa de que, no Brasil, o exercício da prostituição é lícito e, mais que isso, essa atividade profissional encontra-se prevista no Código Brasileiro de Ocupações do Ministério do Trabalho e do Emprego (MTE), sob o número 5198-05. Assim, a análise é feita considerando que os indivíduos adultos têm o direito de optar livre e conscientemente pela atuação no mercado sexual.

48 A vinculação entre as práticas se destaca em situações como a seguinte: “Um depoente afirmou

que um pacote turístico pode ser vendido a qualquer pessoa na Alemanha pela quantia de 10 mil dólares. Tal pacote inclui uma passagem de ida para o Brasil, duas de volta para a Alemanha, hospedagem no R. P. Hotel e também dinheiro para compras. O bilhete sobressalente é para que a garota vá para a Alemanha. As que chegam a ir, normalmente, ficam trancadas dentro de casa e são impedidas de aprender a língua do país. Alguns indivíduos querem recuperar o dinheiro investido nas moças e as emprestam mediante pagamento para seus amigos. Outras acabam por cair nas mãos de gigolôs e não conseguem mais voltar ao Brasil” (JESUS, 2003, p. 160).

O exercício não compulsório da prostituição não há de ser considerado uma possível finalidade do tráfico de seres humanos, já que o fim do tráfico é sempre exploratório. Por essa razão, sublinha-se aqui que a exploração dos serviços sexuais de outrem, inclusive da prostituição, é que configura o tráfico. Contudo, esse aspecto não é pacífico, tendo-se as origens históricas do tratamento normativo da temática em âmbito internacional, bem como as divergências dos debates feministas em torno da prostituição.

A partir do incremento dos movimentos migratórios femininos em fins do século XIX e início do século XX, as concepções originárias de tráfico de escravos negros deram lugar à inquietação concernente ao tráfico de mulheres brancas. A ampliação do fluxo de mulheres solteiras, bem como da oferta de serviços sexuais (muitas vezes disponibilizados mediante escravização) motivaram a construção de uma perspectiva do tráfico associada à exploração sexual feminina (KEMPADOO, 2005).

O tráfico das mulheres brancas surge no cenário internacional como uma decorrência da expansão do processo de mercantilização – que converte também o ser humano em artigo negociável no comércio global –, bem como da cultura do patriarcado enraizada há muito no seio social, que cuidou de assentar a sujeição do sexo feminino ao masculino. Fala-se, inicialmente, em tráfico de mulheres brancas tendo em vista a venda de moças europeias como parte do fenômeno de europeização do mundo, símbolo de efetiva modernidade no início do século XX (KAPPAUN, 2011). Com o passar dos anos, esse mercado passou a ser suprido por novos perfis de vítima, não mais restritos ao da mulher europeia.

Esse contexto passou a chamar a atenção da comunidade internacional, tendo sido abordado em documentos internacionais – como o Acordo Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, assinado em 1904, e a Convenção Internacional Relativa à Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, assinada em 1910 – e também debatido pelos grupos feministas.

Há basicamente dois posicionamentos feministas distintos acerca do tráfico com fins de exploração sexual de mulheres, os quais, embora coincidam quanto ao interesse de promover o bem-estar feminino, são díspares quanto à valoração do exercício da prostituição e, logo, ao reconhecimento da configuração do tráfico em casos de migrações voluntárias motivadas pela intenção de exercício de atividades sexuais em outras localidades (PISCITELLI, 2006).

O primeiro deles, conduzido por uma perspectiva moralizante e radical, atrela de forma necessária o tráfico de pessoas à prostituição. Com base nessa perspectiva, o exercício da prostituição é sempre degradante e indicativo da opressão patriarcal, julgando-se inviável a inserção verdadeiramente livre da mulher no mercado do sexo. Essa perspectiva tem cunho abolicionista, uma vez que parte da premissa de que a libertação das mulheres depende da desconstrução das instituições patriarcais, entre as quais se insere a prostituição (KEMPADOO, 2005). Sendo assim, o combate ao tráfico toma a forma de ataque à prostituição.

Esse primeiro movimento teve como nota característica a construção de um pânico “sexualizado e racializado” (SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009, p. 77) em torno dos fluxos de moças estrangeiras com finalidade de prostituição voluntária ou forçada, na medida em que elas eram concebidas como símbolo da imoralidade. As mulheres migrantes proveniente do “Sul” deixam a invisibilidade para serem demonizadas (SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009) pelo risco que ofereciam aos valores das famílias ocidentais, cristãs e brancas do norte (BAZZANO, 2013). Por essa razão, as inquietações iniciais acerca do tráfico de seres humanos não estavam atreladas ao intuito de proteção aos direitos das vítimas exploradas, mas sim ao escopo de resguardar a imagem da mulher branca europeia, “símbolo dos valores ocidentais (cristandade, família burguesa e civilização), consequentemente, protegendo o modo de vida dos países ocidentais” (BAZZANO, 2013, p. 5).

Essa perspectiva ainda tem sido acolhida por significativo número de países (em afinidade com grupos cristãos conservadores), principalmente aqueles nos quais a prostituição é proibida em qualquer caso ou quando exercida por imigrantes. Como resultado, as profissionais do sexo são estigmatizadas e, não raro, vítimas de violência por parte das autoridades e da população nativa.

O outro posicionamento considera que as mulheres estão submetidas a estruturas de poder não só patriarcais, mas também estatais, capitalistas, imperialistas e raciais (KEMPADOO, 2005). A análise considera “perspectivas múltiplas” e não apenas as leituras de gênero e patriarcado, tendo em vista “a complexidade da própria indústria do sexo” (SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009, p. 79). Essa abordagem nega o viés de vitimização e submissão, considerando o poder de autodeterminação feminino, a liberdade de decidir sobre o próprio corpo

e, assim, a possibilidade da opção pelo exercício de atividades sexuais como estratégia de sobrevivência.

Sob essa orientação, a prostituição forçada deve ser dissociada da prostituição voluntária; e a prostituição de adultos da prostituição de menores, assim, o tráfico, não deve ser intrinsecamente atrelado à noção de prostituição (SANTOS; GOMES; DUARTE, 2009). Via de consequência, nessa linha de raciocínio, o tráfico não se concretiza por meio da simples migração para exercício da prostituição, motivo pelo qual se torna fundamental aferir as condições em que se dá o exercício das atividades sexuais, como ausência de liberdade, retenção de documentos e pagamentos, ausência de segurança e de cuidados mínimos com higiene e saúde (KEMPADOO, 2005).

Este trabalho, conforme já se teve a oportunidade de salientar, adere ao segundo posicionamento, por reconhecer que o tráfico ocorre mediante intuito exploratório em segmentos outros além do mercado do sexo. Ademais, parte-se aqui da premissa de que, ao menos no Brasil, a prostituição está prevista no Código Brasileiro de Ocupações, sendo, assim, opção laboral lícita.

Do mesmo modo, considerando a laicização do Estado, entende-se aqui ser inadequada a aplicação dos discursos abolicionistas atrelados à moral cristã conservadora no campo das políticas migratórias e antitráfico. Além disso, considera-se que essa perspectiva de autodeterminação é mais adequada em relação à tutela dos direitos humanos das vítimas, já que evita a estigmatização das profissionais do sexo, bem como a invisibilidade decorrente da clandestinidade. Como consequência, facilita o acesso aos mecanismos de reparação dos direitos.

Expostas essas questões, inevitável é inferir que a pessoa que auxilia ou facilita – sem qualquer forma de coerção ou abuso – o trabalho livre de outrem como profissional do sexo não deve responder por tráfico. Em vez disso, o que merece punição é o recurso à fraude, coação, ameaças ou submissão da pessoa, no local de destino, a cárcere privado ou condições degradantes, bem como o impedimento do retorno da pessoa ao local de origem (LIM, 1998; LIMA;

SEABRA, 2011)49.

49 A legislação brasileira, conforme se demonstrará em capítulo apropriado, não é feliz ao abordar

a questão nos artigos 231 e 231-A do Código Penal, utilizando expressões inadequadas – a lei brasileira prevê como finalidade o exercício da prostituição e não a exploração desta –, o que

Foi acolhida, por ocasião da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, no ano de 1995, a identificação da prostituição forçada como forma de violência, o que corrobora o entendimento de que o exercício livre da prostituição não implica necessariamente exploração da pessoa.

Exceção se faz ao caso dos menores de 18 anos, sendo que a inserção no mercado sexual com auxílio ou facilitação de outrem, ainda que haja concordância do menor, em contexto tipicamente de tráfico de pessoas (com deslocamento geográfico do menor), exige o emprego de lógica distinta (LIM, 1998). Em se tratando de crianças e adolescentes, está configurada a condição de vulnerabilidade presumida, em virtude de se encontrarem esses menores em condição peculiar em relação aos adultos (condição de seres humanos em fase de desenvolvimento de potencialidades), o que torna necessário um tratamento de mais abrangência e efetividade (MACHADO, 2003). Nesses casos, é presumida a existência de tráfico, se configurada a existência de exploração do labor sexual.

Nesse sentido, inclusive, dispõe o Protocolo de Palermo, ao considerar irrelevante o consentimento dado por menor (art. 3º). Vale sublinhar que a prostituição de menores é sempre entendida como exploração sexual, motivo pelo qual é mais apropriada a utilização desta expressão no lugar daquela nesses casos.

2.3.3.1.2 O adultocentrismo e o androcentrismo: a exploração sexual na