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2.3 O tráfico de seres humanos em uma abordagem morfológica

2.3.3 O intuito de exploração da vítima: dolo

2.3.3.2 A submissão da vítima a condições análogas à escravidão

2.3.3.2.2 Trabalho degradante

A questão já se inicia, mais uma vez, com forte marco de imprecisão em termos de definição. De acordo com entendimento adotado pela OIT, toda forma de trabalho escravo é degradante, mas nem toda forma de trabalho degradante é escravo. Também nesse caso a Organização distingue as situações utilizando como critério a liberdade. Assim, para a OIT, o trabalho escravo é um crime no

qual há sempre cerceamento da liberdade dos trabalhadores62.

De outro modo, a legislação brasileira segue orientação diversa, inserindo no tipo penal que aborda a redução do trabalhador a condição análoga à de escravo – art. 149, CPB – a submissão a condições degradantes de trabalho. Como este trabalho se destina a examinar com mais profundidade a situação do Brasil no contexto do tráfico de seres humanos e também considera que o

61 Esterci (1996) se utiliza do termo “peonagem” para designar a situação de trabalhadores

manuais da Amazônia, remunerados por produção e mantidos cativos em razão de dívida.

62 Nesse sentido, conferir: http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/brasil/projetos/documento.

php. Consideramos, inversamente, que esse tipo de delito viola também diversos outros bens jurídicos, e não apenas a liberdade.

trabalho escravo, em sua dimensão contemporânea, viola outros bens além da liberdade, optou-se por adotar nele o referencial do art. 149. Por essa razão, considera-se aqui que o trabalho degradante é modalidade de redução do

trabalhador à condição análoga à escravidão63.

De qualquer forma, aproveitando o avanço legislativo brasileiro, necessário buscar na doutrina uma noção que possa delinear os contornos que devem ser atribuídos ao trabalho degradante, no qual se optou, neste estudo, por inserir também a jornada exaustiva, assim como fazem outros autores como Delgado, G. (2007) e Viana (2007).

Brito Filho (2004b), ciente da dificuldade trazida pelo fato de a expressão “trabalho degradante” ser notavelmente aberta, propõe a caracterização do trabalho degradante por exclusão, ou seja, considerando o que não é digno. O autor escolhe como parâmetro de exclusão a noção de dignidade humana, escolha com a qual se concorda no presente estudo, em virtude de se ter nele adotado a noção de trabalho decente – cujo termômetro, conforme se sublinhou, é a dignidade humana – para averiguar a existência de exploração do labor humano em condições de preencher o terceiro elemento central de configuração do tráfico de seres humanos.

Melo (2003) enumera algumas circunstâncias de trabalho degradante que se identificam significativamente com as hipóteses analisadas neste estudo:

1 - utilização de trabalhadores, através de intermediação de mão- de=obra pelos chamados “gatos”;

2 - utilização de trabalhadores, através de intermediação de mão-de-obra pelas chamadas “fraudoperativas” (designação dada àquelas cooperativas de trabalho fraudulentas);

3 - utilização de trabalhadores, aliciados em outros municípios e estados, pelos chamados “gatos”; submissão às condições precárias de trabalho pela falta ou inadequado fornecimento de boa alimentação e água potável;

4 - alojamentos sem as mínimas condições de habitação e falta de instalações sanitárias;

5 - falta de fornecimento gratuito de instrumentos para a prestação de serviços;

6 - falta de fornecimento gratuito de equipamentos de proteção individual (chapéu, botas, luvas, caneleiras, etc.);

63 Destaque-se que o estudo da OIT a respeito do perfil dos atores envolvidos no trabalho escravo

rural no Brasil contemporâneo indicou que, segundo a percepção dos próprios trabalhadores, a existência de condições degradantes de trabalho (conforme 28,90% dos entrevistados) e jornada exaustiva (36,30% dos entrevistados) consiste em elemento indicativo da incidência de trabalho escravo (OIT, 2011, p. 27-28). Assim, a previsão normativa brasileira vai ao encontro da percepção dos próprios trabalhadores brasileiros vitimados pelo trabalho escravo.

7 - falta de fornecimento de materiais de primeiros socorros;

8 - não utilização de transporte seguro e adequado aos trabalhadores; 9 - não cumprimento da legislação trabalhista, desde o registro do contrato na [Carteira de Trabalho e Previdência Social] CTPS, passando pela [...]

10 - falta de exames médicos admissionais e demissionais, até a remuneração ao empregado (MELO, 2003, p. 15).

Márcio Túlio Viana traz como proposta para identificação de trabalho degradante a elaboração de cinco categorias de exploração. Confira-se:

O trabalho degradante envolve cinco categorias distintas. A primeira diz respeito ao próprio trabalho escravo stricto sensu, que pressupõe a ausência de liberdade do trabalhador. A segunda concerne à jornada exaustiva, seja ela extensa ou intensa, bem como ao abuso do poder diretivo do empregador, capaz de gerar assédio moral e situações análogas. A terceira categoria relaciona-se com o salário, que deve corresponder pelo menos ao mínimo e não sofrer descontos não previstos em lei. A quarta diz respeito à saúde do trabalhador que é alojado pelo empregador, dentro ou fora da fazenda, constituindo condições degradantes a água insalubre, a barraca de plástico, a ausência de colchões ou lençóis e a comida estragada ou insuficiente. A quinta e última categoria refere-se à ausência de condições mínimas de sobrevivência do trabalhador, em função da conduta do empregador, que não lhe oferece condições de sair dessa vil situação (VIANA, 2007, p. 45).

Brito Filho (2004b) chega a conclusões semelhantes, enumerando um rol de situações que configurariam o trabalho degradante. Em suas palavras:

Assim, se o trabalhador presta serviços exposto à falta de segurança e com riscos à sua saúde, temos o trabalho em condições degradantes. Se as condições de trabalho mais básicas são negadas ao trabalhador, como o direito de trabalhar em jornada razoável e que proteja sua saúde, garanta-lhe descanso e permita o convívio social, há trabalho em condições degradantes. Se, para prestar o trabalho, o trabalhador tem limitações na sua alimentação, na sua higiene e na sua moradia, caracteriza-se o trabalho em condições degradantes. Se o trabalhador não recebe o devido respeito que merece como ser humano, sendo, por exemplo, assediado moral ou sexualmente, existe trabalho em condições degradantes (BRITO FILHO, 2004b, p. 14).

Como se pode depreender dos entendimentos apresentados pelos autores mencionados, o trabalho passa a ser degradante quando são negados ao obreiro direitos mínimos. Esses direitos podem se referir às mais diversas facetas da relação de trabalho, podendo fazer menção a: saúde física e psicológica, segurança do trabalhador, moradia, higiene, alimentação, valor dos salários pagos (quando o são), tempo e intensidade da jornada, tempo de descanso entre

os períodos de trabalho, entre outras. Esses elementos, fortemente vinculados à noção de dignidade do sujeito trabalhador, remetem inevitavelmente à ideia de transgressão aos ditames inerentes ao trabalho decente.

Diante dessas considerações, percebe-se que o trabalho degradante e sua espécie, jornada exaustiva, representam os elementos de mais amplitude colacionados pelo art. 149 do CPB. De fato, com base em tais noções, pormenorizadas anteriormente segundo as perspectivas dos autores aludidos, permite-se a inclusão de diversos tipos de labor como trabalho escravo, ainda que não haja privação da liberdade do trabalhador ou mesmo que a privação da liberdade se dê de modo mais refinado e invisível. Por essa razão, esse elemento deve ser, sim, aferido nos casos de suspeita de existência de trabalho em condição de escravidão contemporânea, por se tratar de instrumento de justiça, que leva em consideração a existência de alterações substanciais na configuração atual do delito.

3 TRATAMENTO JURÍDICO INTERNACIONAL DA TEMÁTICA

Considerando que o tráfico de seres humanos consiste em aviltamento a múltiplos direitos do indivíduo, a análise da normativa correlata à temática não deve olvidar relevantes marcos históricos na evolução da tutela dos direitos em todas as suas dimensões e gerações. Sendo assim, é necessário fazer referência a documentos de atuação na seara de direitos individuais e políticos, sociais, coletivos e das minorias.

Nessa senda, pode-se citar a Magna Carta da Inglaterra, de 1915, que, ao trazer limites ao poder do monarca inglês, passa a estabelecer a lei como elemento limitativo, de forma a propiciar novas discussões sobre o exercício do poder que, anos depois, desembocaria no debate acerca do constitucionalismo. Do mesmo modo, merece destaque o Habeas Corpus Act, adotado também na Inglaterra, em 1697, como forma de tutela da liberdade de locomoção, direito que, não raro, é tolhido em casos de tráfico.

O Bill of Rights (1788) também evidenciou progressos na seara das garantias, na medida em que essa Declaração estabelece a supremacia da lei sobre o soberano, bem como a soberania do Parlamento, além de tutelar a liberdade individual, as garantias judiciárias e os direitos de petição e de voto. Outro passo importante foi dado com a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776), que pela primeira vez afirmou o direito à vida e alicerçou o consentimento do povo como fundamento do poder (OLIVEIRA, 2011).

A Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, originariamente datada de 1789 e reformulada em 1793, deu início ao ideal de universalização de direitos, embora ainda tenha se revelado restritiva, na medida em que não alcançava, por exemplo, as mulheres. De toda forma, esse documento assegurou os direitos de liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, liberdade de consciência, opinião e pensamento, bem como estabeleceu a igualdade de todos perante a lei e a separação de poderes (OLIVEIRA, 2011).

É relevante destacar que, a partir de dado momento histórico, o movimento de garantia de direitos passou a considerar a especial situação de alguns grupos. Tendo em vista o objeto deste estudo, relevante mencionar os primeiros documentos que abordaram a questão do tráfico, originariamente pensado na perspectiva da escravidão. O Tratado de Paris, assinado por Inglaterra e França em 1814, centrou-se no repúdio ao tráfico negreiro utilizado à época como subsídio para a manutenção e reprodução das estruturas escravocratas coloniais. Anos depois, à “preocupação inicial com o tráfico de negros da África, para exploração laboral, agregou-se a do tráfico de mulheres brancas, para prostituição” (CASTILHO, 2008, p. 7). Nessa linha, em 1904, foi firmado em Paris o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas. Esse acordo foi convolado em convenção em 1905, ano em que, inclusive, foi ratificado pelo

Brasil (Decreto no 5591/1905). Esse documento, evidentemente, foi norteado por

um ideal moral-repressor de controle das condutas sexuais e da prostituição e visava coibir a migração de mulheres, virgens ou não (conforme expressamente previa o seu texto), com finalidade de exercício da prostituição. Os países se obrigavam, por meio dele, a adotar ações conjuntas no sentido de repatriar essas pessoas (art. 3º), o que revela seu escopo de tutela da moral sexual e não do indivíduo.

Em 1910, foi assinada também em Paris a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, que passou a vigorar na ordem

interna brasileira em 1924 (Decreto no 16.572). Esse documento inovou em

relação ao de 1904, uma vez que deu início à discussão de elementos como o consentimento e o emprego de força, coação, engano ou outras condutas fraudulentas com o fito de convencer ou obrigar mulheres a exercerem a prostituição (ALENCAR, 2007). É desse modo, por exemplo, que o documento diferencia os casos de tráfico de mulheres menores e maiores de idade, excluindo a relevância do consentimento apenas no primeiro caso (art. 1º). No segundo caso, isto é, em se tratando de mulheres maiores, o emprego dos referidos meios

coercitivos era requisito essencial para a configuração do tráfico (art. 2º)64.

64 Vale dizer que a Convenção de 1910 emprega a expressão “propósitos imorais” para se referir à

finalidade do tráfico. Contudo, muito embora não empregue expressamente o termo prostituição, há que se concluir que as condutas que visam punir estão atreladas ao exercício de atividades de cunho sexual, uma vez que estipula que a conduta é realizada com o intuito de “satisfazer as paixões de outrem” (arts. 1º e 2º).

Contudo, esse documento seguiu a mesma linha moralista da convenção anterior, prevendo medidas de extradição e controle migratório.

Na sequência, em 1921 foi adotada pela Liga das Nações a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças. Essa

Convenção foi adotada internamente pelo Brasil em 1930, por meio do Decreto no

23.812. Sua originalidade em relação aos textos anteriores se deveu à previsão expressa das crianças como possíveis vítimas do tráfico. Nos termos da Convenção, as crianças seriam os indivíduos menores de 21 anos de ambos os sexos, elemento este que deu início à mudança do perfil das vítimas. Seu conteúdo, do mesmo modo que as Convenções de 1904 e 1910, está voltado para a repressão, não prevendo medidas de proteção às vítimas (ALENCAR, 2007; MARWELL, 2009).

A Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores, adotada em Genebra em 1933, manteve grande parte das disposições dos textos precedentes, mas se destacou pelo modo como valorou a questão do consentimento. Ora, esse texto, mesmo que abordasse tão somente a situação das mulheres maiores traficadas, considerou que o consentimento eventualmente dado seria irrelevante, não servindo, assim, para afastar a incidência do delito (art. 1º).

Merece menção, ainda, a Convenção para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio, de 1949, assinada pelo Brasil em 1951 e ratificada em 1958, passando a vigorar na ordem jurídica interna em 1959, tendo em vista a

edição do Decreto no 46.981, bem como seu Protocolo Final. Essa Convenção

destacou-se entre as demais em virtude do alargamento sem precedentes do perfil da vítima. Ao definir o delito, considera que poderá ser vítima qualquer pessoa, deixando de estabelecer critérios sexistas e/ou etários. Seu texto manteve, ainda, a irrelevância do consentimento, excluindo a possibilidade de este ser utilizado para afastar a configuração do crime (ONU, 1950).

Segundo esse documento, o tráfico é incompatível “com a dignidade e o valor de pessoa humana” e, além disso, põe “em risco o bem-estar do indivíduo, da família e da comunidade”. Por essa razão, a Convenção impõe aos Estados o dever de adotar medidas de prevenção, reeducação e readaptação social das vítimas. Deve-se destacar, no entanto, que o viés moralista continuou latente, na medida em que a Convenção equiparou ao tráfico a exploração da prostituição

(art. 1º), empregando, em alguns dispositivos, apenas o termo prostituição, a exemplo da seguinte passagem:

As Partes na presente Convenção se comprometem a adotar medidas para a prevenção da prostituição e para assegurar a reeducação e readaptação social das vítimas da prostituição e das infrações de que trata a presente Convenção, bem como a estimular a adoção dessas medidas por seus serviços públicos ou privados de caráter educativo, sanitário, social, econômico e outros serviços conexos (ONU, 1950, art. 16).

Vale dizer que, após esses marcos normativos iniciais, a questão passou a ser discutida e regulada em outros instrumentos, firmados, sobretudo, no âmbito de Organizações.

3.1 Os instrumentos adotados no âmbito das organizações internacionais