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3.1 A comunicação no Estado Unificado

3.1.2 A Fábrica de Música: a marcha única

Se a imprensa já se encontrava madura e havia uma experiência histórica de longa data, tanto sob o aspecto produtivo (conteúdo e impressão) quanto em seu consumo (leitores), o rádio ainda era uma tecnologia incipiente no início da

72 A tradução foi feita de outra forma, mas o sentido do termo é o mesmo de Tábua dos

década de 1920. O sistema que Zamiatin imagina para fazer o som do Hino e a Marcha do Estado Unificado serem executados em ruas, auditórios e praças (o sistema não se ramifica até as casas) é baseado em alto-falantes ligados à Fábrica de Música. Pode ser uma visão simplificada do rádio, mas a aplicação projetada para ele é até modesta diante do poder de alcance que o rádio desenvolverá pouco tempo depois.

Em seus relatos, D-503 lembra que há um período livre depois do almoço; é a “hora pessoal”, e esse tempo é preenchido com caminhadas e com a presença constante da Marcha como fundo musical. Essa música aparece em diversos momentos da narrativa, servindo como manifestação sonora que inunda o ar ou serve para conduzir aos cantos coletivos.

A música, além de ser a trilha constante que suplanta as possibilidades de silêncio e os sons aleatórios das multidões e dos espaços urbanos, se caracteriza também como um elemento que pertence a rotina. Para D-503, ela chega a causar encantamento: “a mesma marcha de todos os dias. Inexplicável o encanto desta repetição diária, sempre igual” (p. 38).

A Fábrica de Música chama mais atenção pelo aspecto daquilo que é executado como conteúdo e pela forma como isso é ouvido e apreciado. Não há aspecto na vida relatada em Nós que não seja conduzido à massificação de um modo de ser, pensar e agir. Qualquer coisa que escape de uma noção de ação coletiva e se aproxime de alguma manifestação que beire a originalidade ou a individualidade é tratada como perniciosa: “(...)ser original é violar a igualdade. É aquilo que na linguagem idiota dos antigos era chamado de “ser banal” significa para nós cumprir o dever” (p. 33). Ser trivial e banal é a forma correta de ser. Algo fora disso representa um atentado ao Estado. O original pode gerar o desequilíbrio e é preferível a estagnação a um devir que ponha em risco qualquer verdade instalada.

Isso não quer dizer, porém, que não haja tentativas de manifestações contra esse conjunto de normas, as quais garantem a imutabilidade social e as condições ideais de previsibilidade. D-503 registra em seu diário o ideal da sociedade estática: “Faltam ainda alguns degraus para o ideal. O ideal (está claro)

vai ser quando não acontecer mais nada,(...)” (p. 29). A vida perfeita no Estado é como uma marcha que toca todos os dias exatamente o mesmo compasso, na mesma hora, com os mesmos passos sobre a mesma calçada vítrea.

A imposição de um modo unificado se manifesta também, por exemplo, na forma como o tempo é rigorosamente dividido durante o dia até a determinação de momentos específicos para a vazão sexual. Causa espanto a D-503 a comparação que ele se dá conta ao constatar que o estado antigo consentia com uma vida sexual sem controle: “Com quem, quando e como quisesse (...) De modo absolutamente anticientífico, como animais” (p. 20). O domínio da puericultura não fazia parte das práticas naquela época, como lembra D-503. No tempo do Estado existem as Normas Maternal e Paternal para resolver o problema da reprodução humana. Tudo se converte em norma e regra.

Aldridge destaca que esse “princípio de organização foi emprestado a partir das teorias de gerenciamento industrial do engenheiro americano, Frederick Taylor, que estabeleceu a todos os planos imagináveis da vida privada e pública, métodos e valores obtidos a partir de conceitos mecanicistas da ciência e do pensamento científico” (p. 33). A administração científica se revela no Estado Unificado através de uma vida regulamentada em todos os sentidos e no uso irrestrito de soluções racionalistas para a maioria dos problemas da existência humana. Manter o controle sobre os habitantes é crucial para que nada de imprevisível aconteça. Uma das formas para obter esse controle é o uso das Tábuas dos Mandamentos Horários. Tabelas que definem hora a hora as ocupações dos habitantes. A inspiração desse sistema está relacionada às teorias tayloristas sobre eficiência industrial desenvolvidas para a indústria nas décadas iniciais do século 20. D-503 enaltece a eficiência desse sistema, mas ainda lamenta o fato de ela não ser absolutamente perfeita:

Vou ser franco. Não temos ainda a solução exata da questão da felicidade: duas vezes ao dia das 16 às 17 e das 21 às 22 nosso poderoso organismo único divide se em celular separadas: são as “Horas Pessoais” determinadas pela “Tábua dos mandamentos Horários”. Nessas horas podem se ver nos quartos de alguns as cortinas pudicamente fechadas, outros percorrem a avenida ao ritmo brônzeo da Marcha do estado unificado, terceiros, como eu agora, estão sentados à

escrivaninha. Mas eu creio firmemente, por mais que me chamem de idealista e fantasioso, que mais cedo ou mais tarde, virá o dia em que encontraremos na fórmula geral lugar para estas horas, um dia estes 86.400 segundos entrarão na Tábua dos Mandamentos Horários. (p.19) A Fábrica de Música e as marchas invariavelmente repetidas seguem simplesmente a mesma lógica e são, como o próprio termo induz, fabricadas com o propósito de incutir a cadência repetida do maquinismo inclusive nas horas de folga. Zamiatin não imaginava que o avanço tecnológico seria capaz de desenvolver aparatos capazes de envolver o indivíduo nos momentos ainda mais íntimos da vida doméstica e, nesse aspecto, a Fábrica de Música é menos expressiva, em termos de representações, do que o musicômetro.