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4.1 A comunicação para uma vida emocionalmente fácil

4.1.2 Cinema sensível: prazer, superficialidade e moralização

Na primeira vez em que um personagem – o Predestinador-Adjunto - se refere, num diálogo com Henry Foster, ao cinema sensível, a menção é feita da seguinte forma: “Ouvi dizer que o novo filme do Alhambra é magnífico. Há uma cena de amor sobre um tapete de pele de urso; dizem que é maravilhosa. Cada um dos pêlos do urso é reproduzido. Os efeitos táteis mais surpreendentes...” Depois desse comentário, Henry responde: “Certamente, não deixarei de ir” (pp. 46-47). O cinema, em Admirável, tem como uma das suas funções servir para causar prazer, um prazer físico e imediato. Os princípios do hedonismo e de uma vida que deve ser invariável e emocionalmente fácil servem como regras para a forma como os filmes são pensados, sobretudo como experiência sensorial superficial.

93 A experiência técnica da televisão era bastante incipiente nesse momento e, diferente dos

outros meios, Huxley não propôs nada além de uma presença de aparelhos televisores em ambientes como quartos, salas ou hospitais.

Essa ênfase nas sensações mais imediatas fica ainda mais evidente no momento em que o Selvagem participa de uma sessão numa das salas de cinema sensível. A descrição se torna mais viva justamente por se tratar de alguém não habituado às tecnologias de Admirável:

O Selvagem sobressaltou-se. Aquela sensação nos seus lábios! Ergueu a mão para levá-la a boca; o leve roçar nos lábios cessou, deixou recair a mão no botão metálico; a sensação recomeçou. Ao mesmo tempo, o órgão de perfumes exalava almíscar puro. Em tom expirante, uma superpomba de trilha sonora arrulhou: “U-uh”; e, não vibrando mais de trinta e duas vezes por segundo, uma voz de baixo, mais que africana em sua profundidade, respondeu: “Aa-aah!” “Uh-ah!Uh-ah!” Os lábios estereoscópicos uniram-se de novo, e mais uma vez as zonas erógenas faciais dos seis mil espectadores do Alhambra titilaram com um prazer galvânico quase intolerável. “U-uh...” (p. 204)

Além das sensações físicas, também merece destaque o enredo. Ele é essencialmente moralizador e didático. A história mostra como o abandono ou a perda do condicionamento pode fazer com que o indivíduo aja de forma antissocial e, portanto, inadequada: “A Beta loura foi raptada e mantida em pleno céu, pairando, durante três semanas, em um tête-à-tête ferozmente antissocial com o negro louco” (p. 205). Esses filmes são produzidos na Companhia Geral de Filmes Sensíveis que também faz parte do complexo de 60 andares da Fleet Street. Da mesma forma que os versos hipnopédicos, nada, como se viu, é produzido aleatoriamente. Há um sentido prático nesses filmes que faz com que sejam como um comprimido de „soma‟ menos intenso. O prazer do presente é abastecido constantemente e sempre confirma versos hipnopédicos como: “Fui” e “serei” me deixam doente; um grama, e com o “sou” fico contente” (p. 127). O cinema sensível é feito para o deleite do presente, como o soma - “Ao cabo de cinco minutos, as raízes e os frutos haviam desaparecido; a flor do presente desabrochava inteiramente rósea” (p. 127) -, já que causa prazer e distanciamento da realidade.

O cinema acrescenta, no entanto, uma moralidade que serve para reforçar as sugestões hipnopédicas. Um filme, por exemplo, propõe que só um desajustado falaria durante três horas, além de mostrar a incompatibilidade “natural” das castas no caso do “negro louco” que rapta a “Beta Loura”, ao final do

filme, “depois de uma longa série de acrobacias aéreas, três jovens e belos Alfas conseguiram libertá-la. O negro foi mandado para um Centro de Recondicionamento de Adultos e o filme terminou de um modo feliz e decoroso, com a Beta loura tornando-se amante de seus três salvadores” (p. 205).

Além dos filmes de ficção como o que foi visto pelo Selvagem, há também os documentários. Quando o Selvagem, ao final da história, decide se afastar do mundo civilizado e se isolar numa área não muito distante de Londres, em pouco tempo ele é descoberto como um fato curioso ou exótico para esses documentários. Um “fotógrafo” decide acompanhar a sua vida:

Do seu esconderijo construído cuidadosamente no bosque, a trezentos metros dali, Darwin Bonaparte, o mais hábil fotógrafo de caça de grande porte da Companhia Geral de Filmes Sensíveis, observava toda a cena. (...) “Esplêndido!” Manteve suas câmeras telescópicas cuidadosamente focadas no alvo móvel – coladas nele; instalou uma objetiva mais poderosa para obter um close da fisionomia frenética e contorcida (admirável!); tomou durante meio minuto a vista em câmara lenta (efeito de uma comicidade deliciosa, prometeu a si mesmo); ouviu durante esse tempo, no receptor, os golpes, os gemidos, as palavras ferozes e desvairadas que se gravavam na trilha sonora, à margem da fita (p. 306) Na sequência dessa produção cinematográfica ainda seriam acrescentados recursos próprios do cinema sensível: “Depois que introduzissem os efeitos do sensível, no estúdio, seria um filme estupendo. Quase tão bom, pensou Darwin Bonaparte, como a vida amorosa do Cachalote; e isso, por Ford, não era pouca coisa!” (p. 307).

Doze dias depois, o Selvagem se tornaria a principal atração nas salas de cinema. A vida do Selvagem se transformou num espetáculo momentâneo e logo todos queriam saciar suas curiosidades, vendo-o pessoalmente: “No fim de alguns minutos havia ali dúzias deles, numa vasta circunferência em volta do farol, olhando, rindo, tirando fotografias, atirando-lhe (como a um macaco) amendoim, pacotes de chiclete de hormônio sexual, petits beurres panglandulares” (p. 309). O espetáculo estava completo e todos gritavam de

forma orgiástica: “Chicote, chicote, chicote.!”94 (p. 309). A multidão foi tomada por

sensações intensas semelhantes às cerimônias comunitárias (nas quais são cantados ritmada e repetitivamente versos como “orgião-espadão”). No próximo dia já não eram poucos curiosos buscando diversão: “Naquela tarde, o enxame de helicópteros que vinham zumbindo por sobre a crista de Hog‟s Back era uma nuvem escura de dez quilômetros de comprimento. A descrição da orgia de comunhão da noite anterior fora publicada em todos os jornais” (p. 313). O Selvagem, com sua individualidade anormal, virara uma celebridade capaz de oferecer momentos de curiosidade efêmera e de mobilizar uma multidão sedenta por excitação.