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5.1 A comunicação do Partido

5.1.3 Teletelas: vigilância, propaganda e disciplina

O “aparelho” que normalmente merece mais atenção em 1984 é a teletela. É ela que resume tecnologicamente a solução imaginada para um sistema de vigilância e de transmissão de conteúdo que faz o Grande Irmão ser onipresente, ter voz, olhos e ouvidos. No Livro de Goldstein consta: “Nada é eficiente na Oceania, exceto a Polícia do Pensamento” (p. 191). As teletelas tornam justamente essa polícia mais eficiente porque são capazes de captar cada detalhe

da vida íntima dos cidadãos que potencialmente poderiam causar algum desequilíbrio no futuro.

A teletela serve, sobretudo, para regular a vida dos membros do Partido114 de forma objetiva. É através dela, por exemplo, que o indivíduo é despertado pela manhã: “A teletela estava soltando um apito ensurdecedor, que continuou no mesmo tom durante uns trinta segundos. Era sete e quinze, hora de se levantarem os empregados de escritórios” (p. 33). Os atos que compreendem o despertar e a preparação para o dia de trabalho também são acompanhados e disciplinados por meio da teletela: “Winston ficou em posição de sentido diante do aparelho, onde já apareceram a imagem de uma moça magricela porém musculosa, metida em uniforme e sapato de ginástica” (p. 33). A “moça magricela” não será apenas uma imagem desconectada da vida daqueles que a contemplam. Ela conduz os exercícios, aparentemente acompanha cada um e exige os procedimentos ideais: “- Smith! – gritou da teletela a voz da megera. – 6079 Smith W! Tu, tu mesmo! Inclina-te mais, por favor. Podes fazer mais que isso. Não, não estás te esforçando. Mais baixo! Assim está melhor, camarada. Agora, todo mundo, descansar! Olhai para mim” (p. 38).

Além dessa função ordenadora da vida aos moldes militares, a teletela veicula informações sobre a situação na Oceania. Os conteúdos informativos mais recorrentes dizem respeito à guerra, à produção industrial, à exposição dos traidores do Partido e às realizações do Grande Irmão para o povo. A música militar serve para preencher os intervalos: “Dia e noite as teletelas feriam os ouvidos com estatísticas provando que hoje o povo tinha mais alimento, mais roupa, melhores casas, melhor divertimento – que vivia mais, trabalhava menos, era mais alto, mais saudável, mais forte, mais feliz, mais inteligente, bem mais educado, do que o povo de cinqüenta anos atrás” (pp. 75-76) 115 .

114 Vale mencionar que os proles não são controlados pelas teletelas, já que sequer as possuem

como um bem doméstico. Os membros da elite do Partido possuem um dispositivo capaz de desligar as teletelas. Como O‟Brien sintetiza, diante da surpresa de Júlia: “desliguei. Nós temos esse privilégio” (p. 164).

115 Essa lista de benesses casa com o ideário utópico de oferecer uma vida melhor para todos,

especialmente aos menos assistidos ao longo da história. Isso, no entanto, não significa – como o texto comprova ao longo das suas páginas – que se tenha alcançado esse ponto. O que se mantém é o discurso utópico num mundo distópico.

Uma característica interessante no processo de construção da verdade – através dos meios de comunicação - é obtida por meio do uso constante de dados numéricos na produção de algum produto. Diante das informações divulgadas pelo Ministério da Fartura sobre as previsões trimestrais de produção de botinas, Winston reflete:

Em qualquer caso, os sessenta e dois milhões estavam tão perto da verdade quando cinqüenta e sete, ou cento e quarenta e cinco. Com toda probabilidade, não haviam fabricado botina alguma. Ou, mais certo ainda, ninguém tinha a menor ideia de quantos calçados tinham sido produzidos; nem ninguém se importava.(...) E assim era com todos os fatos registrados, pequenos ou grandes. Tudo se fundia e confundia num mundo de sombras no qual, por fim, até a data do ano se tornara incerto (pp. 42-43)

A informação vira uma névoa, um fluxo de pouco sentido, e só rende algum tipo de indagação na mente de Winston antes de ele passar pela Sala 101 e por O‟Brien. Depois que ele, ao final, é “transformado”, esse tipo de notícia entra em sintonia com seu modo de viver diante das informações da teletela sobre, por exemplo, a guerra: “As notícias da frente africana eram extremamente inquietadoras. O dia todo sentira-se intermitentemente preocupado com elas” (p. 275). Winston, depois de ter se tornado “oco”, estava finalmente pronto para ser um membro ideal do Partido, um espectador absolutamente passivo.

O conteúdo das teletelas é essencialmente disciplinador e propagandístico. Não há nada que se pareça com diversão ou que recorra a uma noção de beleza, cultura ou arte. Ele é deliberadamente programado para fazer o poder entrar nas casas e deixar claro que a voz do Partido está ali, que nada foge ao controle e que há uma verdade (mesmo que ela nem sempre seja a mesma). Numa descrição dessas notícias, Winston relata um informe extraordinário feito através das teletelas: “Atenção! Atenção, por favor! Acaba de chegar uma notícia da frente de Malabar. Nossas forças do sul da Índia lograram uma gloriosa vitória. Estou autorizado a dizer que essa batalha poderá aproximar a guerra do seu fim. Eis a notícia...” Logo em seguida são apresentadas a cifras de mortos na frente inimiga, imagens sanguinolentas e, por fim, o anúncio de redução da ração de chocolate de 30 para 20 gramas. “A teletela – talvez para celebrar, talvez para

afogar a lembrança do chocolate perdido – atacou “Oceania, nossa terra”. Era dever de todos ouvirem o hino de pé. Todavia, na posição em que [Winston] estava, não podiam vê-lo” (p. 27).

Nos dispositivos capazes de transmitir imagens em Admirável, Fahrenheit e

Revolução, os autores não chegaram a imaginar recursos técnicos que pudessem

captar sons e imagens ao mesmo tempo que os transmitissem. Em 1984, isso é fundamental para o panoptismo disciplinador que transforma completamente a vida do indivíduo que vive sob vigilância contínua: “O membro do Partido vive, do berço à cova, sob os olhos da Política do Pensamento. Mesmo quando está sozinho jamais pode ter certeza do seu isolamento” (p. 202). Isso, no entanto, não é um sistema isolado. O controle pode se mostrar de várias formas, seja na fiscalização sobre a privacidade através dos vôos de helicópteros da Patrulha da Polícia que monitoram ruas e casas (p. 6) ou no controle das cartas:

Quanto a mandar uma carta pelo correio, era impossível. Por um processo que nem mesmo era secreto, todas as cartas eram abertas em trânsito. (...) quando ocasionalmente havia necessidade de se mandar uma comunicação, existiam cartões postais impressos com longas listas de frases, e o cidadão riscava as que não se aplicavam. (pp. 107 e 108) A vida não é observada apenas no trânsito e no registro das informações. As manifestações físicas são alvo de vigilância contínua. Garante-se, dessa forma, a supressão dos atos potenciais do sujeito: “Nada do que ele faz é indiferente. Suas amizades, seus divertimentos, sua conduta em relação à esposa e aos filhos, a expressão de seu rosto quando está só, as palavras que murmura no sono, e até os movimentos característicos do seu corpo, é tudo ciosamente analisado” (pp. 202-203). Essa vigilância envolve qualquer manifestação visível que pareça dar a ideia de que alguém está pensando:

Era terrivelmente perigoso deixar os pensamentos vaguearem num lugar público, ou no campo de visão duma teletela. A menor coisa poderia denunciá-lo. Um tique nervoso, um olhar inconsciente de ansiedade, o hábito de falar sozinho – tudo que sugerisse anormalidade, ou algo de oculto. (p. 63)

As teletelas são as definidoras do próprio modo de agir dos membros do Partido. O sistema nervoso deve ser controlado, deve ser domesticado caso não se queira correr o risco de ter ideias próprias. Como relata Winston: “Manter o rosto sem expressão não era difícil, e com esforço se podia até controlar a respiração: mas não era possível controlar o bater do coração, e a teletela, era bastante sensível para captá-lo” (p. 80). O ideal é ter, de fato, um real olhar bovino, uma vida sem indagações e sem dúvidas capazes de gerar uma expressão facial traidora. O ideal é ter transformado o duplipensar em modo de vida, em natureza.

Outro risco diz respeito a uma conduta que pareça associal: “era sempre ligeiramente perigoso fazer qualquer coisa que sugerisse o gosto pela solidão, mesmo que fosse apenas passear sozinho. Em Novilíngua havia uma palavra para isso: proprivida, e significava individualismo e excentricidade” (p. 83). A normalidade ideal é a que em nenhum segundo mostre a humanidade instintiva de cada um.

O mecanismo de punição e controle em 1984 tem menos relação com o ato em si. A verdadeira intenção do poder é conseguir criar um sistema que previna e elimine a dissidência, mesmo que ela esteja longe de ser comprovada. O fato vale pouco, a mera possibilidade deve ser banida:

Pensamentos e atos que, descobertos, resultariam em morte certa, não são formalmente proibidos, e os intermináveis expurgos, prisões, torturas, detenções e vaporização não são infligidos como castigo por crimes realmente cometidos, mas são apenas a liquidação de pessoas que poderiam talvez cometer um crime no futuro. (p. 203)

A teletela é a encarnação tecnológica do Grande Irmão capaz de levar a verdade, disciplinar corpos e mentes, vigiar e monitorar e, principalmente, moldar a vida. Usando um termo de Foucault, a teletela consegue “docilizar” o indivíduo e tornar a governabilidade possível em seus aspectos mais íntimos.

O conteúdo, em si, não parece ser capaz de convencer ou persuadir a todos de forma profunda. Mesmo que Winston possa não ser um cidadão completamente igual aos demais e até seja menos conformado, há poucas evidências de que por trás do olhar dos demais membros do Partido não haja o

mesmo turbilhão de dúvidas e memórias incompatíveis com o regime. Estão, como na maior parte do tempo na vida de Winston, silenciados e controlados. A propaganda das teletelas só é absolutamente eficiente quando o sujeito perdeu completamente a humanidade, quando perdeu a esperança e a alma, quando ficou oco.