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A fórmula de Heisenberg e o princípio de incerteza: observação, objeto e

Capítulo 3: O ataque de Popper

2. A interpretação estatística e suas consequências

2.1. A fórmula de Heisenberg e o princípio de incerteza: observação, objeto e

A crítica inicial de Popper é que o intento de Heisenberg de eliminar as entidades metafísicas falha, afinal, Popper aponta a trajetória passada da partícula, dedutível pela teoria, como entidades inobserváveis que persistem na teoria dentro da interpretação de Heisenberg, que as eliminam somente através da decisão de destituir o significado de ocorrências passadas em física. Cabe a Popper demonstrar que esses enunciados têm relevância na física.

De outro lado, a mesma acusação de fracasso sobre o “programa de Heisenberg” pode ser feita por Popper sob a definição de metafísica como enunciados não falseáveis e de

109 enunciados falseáveis como enunciados objetivos. Se aceitarmos esses princípios, a referência de Heisenberg ao nosso conhecimento pelo princípio de incerteza torna as fórmulas de Heisenberg não falseáveis, portanto, metafísicas. Pois, pela proposta epistemológica de Popper, o conhecimento subjetivo não é falseável. Mas, em princípio, não é essa acusação de fracasso que Popper faz a Heisenberg, mas a primeira.

Popper define a fórmula de Heisenberg brevemente, como sendo um enunciado que afirma que toda mensuração interfere nas grandezas das entidades quânticas através da troca de energia entre instrumento de medida e o fenômeno analisado. Apesar de sempre ser possível realizar medidas em que a grandeza medida não seja perturbada, o preço a ser pago é “interferir fortemente em outras magnitudes características do estado a ser medido” (POPPER, 2010a, p.240). Essas relações vigem entre as grandezas de posição e momentum, portanto, “(…) é impossível, em princípio, prever a trajetória de uma partícula” (POPPER, 2010a, p. 241). O conceito trajetória de entidades quânticas perde o sentido físico para Heisenberg.

Lembremos que Heisenberg considera que há uma disparidade inconciliável entre a linguagem clássica e o fenômeno quântico. Disparidade por conta da impossibilidade de atribuir os conceitos da linguagem clássica aos fenômenos quânticos, que apresentam a dualidade onda-partícula. Por exemplo, a luz (tradicionalmente aceita como uma onda) que apresenta desvio de momentum pelo efeito Compton, o que pressupõe o comportamento típico de corpúsculo e o decaimento radioativo da matéria que apresenta franjas ondulatórias de interferência, podendo ser deduzidas matematicamente grandezas como amplitude de onda (HEISENBERG, 1949, p. 10). As imagens mentais ondulatórias e corpusculares são contraditórias entre si, em última instância por serem originárias da linguagem clássica, que é derivada das “necessidades cotidianas” (HEISENBERG, 1949, p. 11).

Os conceitos da linguagem clássica são incompatíveis com os fenômenos quânticos, o que demanda uma crítica dos conceitos, uma limitação dos conceitos através da análise dos experimentos. As fórmulas de Heisenberg, sob a interpretação da incerteza, seria a evidência da limitação dos conceitos clássicos. O próprio conceito clássico “observação” é incompatível com o conceito “coincidência espaço-temporal” (HEISENBERG, 1949, p. 2). De outro lado, os conceitos que são empregados na física têm os seus limites dados pelas operações que permitem previsão, dessa forma, devem obedecer aos limites impostos pelas relações de

110 incerteza. O conceito “observação” é um conceito da linguagem clássica e recebe seu significado através da pressuposição tácita de que a interferência da mensuração no fenômeno é negligenciável, tal pressuposto tácito não é preenchido pela teoria quântica. A teoria decide o que é observação, as operações definem os limites de sua aplicação, da aplicação do conceito “observação”. A observação é toldada e, segundo Heisenberg, é impossível dizer o que é objeto observado (objeto) e o que é aparato observador (sujeito), somente uma aplicação que seja atenta aos limites da linguagem na qual a “observação” foi forjada permite que o conceito “observação” seja aplicado aos fenômenos quânticos, isso atentando para os limites apontados pelo princípio de incerteza, uma lei da natureza (HEISENBERG, 1949, p. 3). Aqui, sujeito e objeto misturam-se e, portanto, inserem-se as constatações subjetivistas.

Popper, que atenta para o conceito de “trajetória” na formulação clássica do princípio de incerteza, aponta que, embora tal conceito seja considerado sem sentido para Heisenberg (POPPER, 2010a, p. 241 & HEISENBERG, 1983, p. 64) é possível calculá-lo. Possibilidade que não é negada mesmo por Heisenberg, que simplesmente destituí o conceito trajetória de significação física por se referir ao passado e, portanto, não servir para fins de previsão (HEISENBERG, 1949, p. 1). Para Popper, há duas formas de considerar tal possibilidade de cálculo: a subjetivista que considera que tanto a posição precisa quanto o momentum preciso existem (portanto uma trajetória existe), porém há um limite imposto ao nosso conhecimento (vide HEISENBERG, 1949, p. 21) e a objetiva, que afirma que a trajetória simplesmente não existe no regime quântico e atribuir tal conceito a uma entidade quântica é sem-sentido. Mas como compreender a existência da dedução do cálculo da trajetória pelo formalismo da teoria quântica? Para Popper, Heisenberg vacila entre uma e outra interpretação, sustentando-se sobre a afirmação de que “uma Física „objetiva‟, neste sentido, isto é, divisão nítida do mundo, em objeto e sujeito, deixou evidentemente de ser possível” (POPPER, 2010a, p. 244). Bem, já vimos que Heisenberg tem essa interpretação por considerar que há uma tensão incontornável entre a linguagem clássica (forjada pelas necessidades das experiências cotidianas (HEISENBERG, 1949, p. 11)), na qual tal divisão é clara, e os fenômenos quânticos, nos quais a aplicação dos conceitos da linguagem clássica deve ser revista.

Popper intenta apresentar esse ponto através da sugestão de experimentos imaginários que permitem o cálculo passado do corpúsculo. Mais do que isso, ao passo que Heisenberg

111 destitui tais cálculos de significação física, Popper propõe que eles sejam importantes no processo científico, que é baseado em testes empíricos. Para isso, porém, o filósofo deve apresentar a sua própria interpretação da teoria quântica e, dentro de suas relações, demonstrar como o cálculo do passado do elétron é cientificamente relevante.

Para Heisenberg, porém, a possibilidade de uma medida precisa de posição e de momentum simultâneos é contraditória com o formalismo da teoria quântica. Sendo a impossibilidade de tais medidas simultâneas à própria base da mecânica quântica e reveladora da impossibilidade de compatibilidade entre a linguagem clássica e os fenômenos quânticos (POPPER, 2010a, p. 246 & HEISENBERG, 1949, p. 21). Popper argumenta contra essa ideia ressaltando que, embora as fórmulas de Heisenberg sejam conclusões lógicas da teoria, a interpretação dessas fórmulas como “regras limitadoras da precisão de medida possível de atingir” (POPPER, 2010a, p. 246) não decorre da teoria.