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Delimitação do escopo do capítulo sobre a teoria da probabilidade e o objetivo

Capítulo 3: O ataque de Popper

1. O problema da probabilidade

1.1. Delimitação do escopo do capítulo sobre a teoria da probabilidade e o objetivo

Como mencionado na seção anterior, Popper tem como base de sua argumentação para uma interpretação positiva da teoria quântica, bem como para a crítica à interpretação de Heisenberg, uma teoria objetiva da probabilidade. A carência de uma interpretação satisfatória da probabilidade era, para Popper, o motivo pelo qual a mecânica quântica estava imersa em tantos problemas de interpretação, apesar do fato de gozar de grande êxito experimental:

86 (...) um dos pontos básicos de minhas considerações – a uma conjectura que se transformou em convicção: todos os problemas da interpretação da Mecânica Quântica podem ser considerados como problemas relativos à interpretação do cálculo de probabilidade (POPPER, 1976, p.100).

A teoria da probabilidade desenvolvida por Popper visava compreender como enunciados de probabilidade podem ser usados como enunciados empíricos, isto é, falseáveis. Para Popper, as confusões acerca da mecânica quântica são derivadas de interpretações subjetivistas, devidas ao papel desempenhado por enunciados estatísticos na mecânica quântica interpretados como lacunas de conhecimento, ignorância.

O filósofo desenvolve uma teoria frequencial objetiva que seja isenta dos problemas da teoria frequencial de von Mises, que é usada como ponto de partida para o desenvolvimento de sua teoria. Segundo Popper, a teoria de von Mises enfrenta mais problemas lógicos do que as interpretações subjetivas no tocante ao Problema Fundamental do Acaso, embora essas – em especial a teoria logicista influenciada por Wittgenstein, que trata os enunciados de probabilidade como um meio termo entre a deduzibilidade (probabilidade = 1) e a contradição (probabilidade = 0) – não podem explicar o uso de cálculos de probabilidade por físicos, em especial na teoria quântica. A interpretação keynesiana da probabilidade considera que ela assevera o “grau de confiança racional”, indicando que o cálculo da probabilidade não versa sobre algum dado do mundo, mas sobre o nosso conhecimento sobre ele, apontando quando podemos crer em algo e em que grau (POPPER, 2010a, p.63-4). Como o sucesso de um enunciado científico é o seu sucesso em

testes e que, para testá-lo, é necessário que o enunciado seja objetivo e não verse tão somente acerca do conhecimento do pesquisador, a interpretação subjetivista não pode explicar o sucesso dos usos dos cálculos de probabilidade na mecânica quântica.

Todo desenvolvimento do capítulo VIII da obra Lógica da Pesquisa Científica leva à forma lógica dos enunciados formalmente singulares e à sua caracterização como um enunciado falseável através de regras metodológicas adequadas. Notemos que o fato dos cientistas utilizarem o cálculo de probabilidade, estimativas estatísticas e congêneres na

87 prática científica (definida por Popper como tentativa e erro através de testes), entra como argumento contrário às interpretações subjetivistas da teoria da probabilidade.

O plano do capítulo VIII é desenvolver uma teoria objetiva de probabilidade, que deve ser uma teoria frequencial objetiva, considerando os problemas interpretativos presentes na teoria da probabilidade. A motivação de Popper para proceder dessa maneira é munir-se de uma apresentação da teoria da probabilidade que supere os problemas clássicos, abaixo citados, e que responda, por ser objetiva, sobre o uso que é feito pelos cientistas, sobretudo os físicos que se ocupam da teoria quântica, de procedimentos estatísticos.

Antes de tudo, é imperioso mencionar que o problema da teoria da probabilidade é um problema em si para Popper e em sua redação, apesar de preceder o problema da teoria quântica, é considerado como um problema à parte e distinto daquele tratado no capítulo IX. Certamente, a sua posição e a sua argumentação utilizadas no capítulo IX ressalta a anterioridade lógica do capítulo VIII e, é claro, os problemas tratados no capítulo IX seriam intratáveis sem a devida atenção despendida ao problema da Teoria da Probabilidade.

Contudo, o mistério a ser desvendado por Popper parece ser esse: como é possível que estimativas estatísticas sejam tão largamente utilizadas na teoria quântica e, ao mesmo tempo, sejam de caráter não-falseável? A resposta surpreendente está exposta na seção 68,

(...) como podem as hipóteses de probabilidade – que segundo vimos, são não-falseáveis – desempenhar o papel de leis naturais, no campo da ciência empírica? Nossa resposta é esta: enunciados de probabilidade, na medida em que se revelam não falseáveis, são metafísicos e destituídos de significação empírica; e, na medida em que se vêm utilizados como enunciados empíricos, são empregados como enunciados falseáveis (POPPER, 2010a, p. 224 – grifo meu).

O esforço no capítulo VIII é exatamente este: demonstrar como é possível submeter enunciados de probabilidade a testes empíricos e como esses enunciados se tornam falseáveis ao serem disciplinados por regras metodológicas (POPPER, 2010a, p. 224). Para tal, é

88 necessário examinar a forma lógica dos enunciados de probabilidades e apontar os aspectos que permitem esse tratamento, com o requisito de que a probabilidade seja definida como frequência medial. Como resultado, Popper chega aos enunciados formalmente singulares, que permitem o tratamento científico, pois tratam de enunciados acerca de frequências relativas, que são “os únicos [relativos a probabilidades] suscetíveis de teste empírico” (POPPER, 2010a, p. 233).

Temos, então, que o objetivo desse capítulo é investigar como os cientistas usam enunciados que são não-empíricos como enunciados empíricos, a partir da elaboração de uma teoria de probabilidade que seja objetiva e, portanto, que possa cumprir, através de regras metodológicas, o critério de falseabilidade que, como vimos, tem como uma de suas bases a objetividade. A teoria sugerida deve resolver os problemas da teoria de probabilidades, a saber,

o problema fundamental do acaso, que e o problema derivado do fato de que o cálculo de

probabilidades é aplicável somente a eventos casualoides31. Em outras palavras, eventos irregulares e insuscetíveis de regularidades matemáticas, seriam coletivos estatísticos se satisfizerem o Teorema de Bernoulli32, isto e, um teorema matemático – a primeira vista trata- se de uma contradição. O axioma da aleatoriedade – que reza que os cálculos de probabilidade sejam aplicados somente às sequências as quais não podem ser aplicadas regras matemáticas – pode ser preenchido como axioma ao lado do axioma da convergência que impõe a essas sequências limites de frequências. Esse é o problema fundamental que a teoria proposta por Popper deve responder: explicitar a relação entre o axioma da aleatoriedade e o axioma da convergência.

O plano de Popper para o capítulo VIII exclui o que ele chama de probabilidade de hipóteses, isto é, as questões acerca da relação entre probabilidade e corroboração, em especial a crítica à tese de que quanto mais provável uma hipótese, mais aceitável ela se torna; dando enfoque à probabilidade de eventos e ocorrências, não de hipóteses. Assim, o que primeiramente é focalizado pelo filósofo é o problema do acaso e o plano de uma nova teoria da probabilidade.

31

Este requisito corresponde ao Axioma da aleatoriedade, descrito pela teoria de von Mises como “a propósito de todos os coletivos, que não existe um sistema de jogo que se lhes possa aplicar com êxito” (POPPER, 2010a, p. 168).

32

O Axioma da Convergência defende que à medida que a sequencia de eventos se prolonga a sequência de frequências se aproxima de um limite definido (POPPER, 2010a, p. 167).

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