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Rousseau (1995, p. 22) considera a família como “A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural [...] um espaço social ocupado pela criança o tempo necessário para sua conservação”. Podemos inferir, então, que esse tempo se diferencia nas diferentes

sociedades e momentos históricos, na medida em que a infância, assim como a adolescência, vêm se estendendo em idade cronológica e o que é considerado necessário também torna-se mais elástico. Outro fator que pode tornar esse tempo mais ou menos prolongado é a forma como representamos o sujeito que deve ser assistido. O estigma pelo qual o sujeito está subordinado pode fazer com que o tempo necessário seja eterno. O mesmo acontece se o ambiente social assim o considerar.

Para Goffman (1988), existem modelos de estigmas na carreira moral do estigmatizado e um deles é aquele que se origina da capacidade da família de constituir-se como uma cápsula protetora para aquele que poderia vir a ser estigmatizado; para tanto, ela faz do controle de informações uma cápsula de proteção. No caso dos surdos, essa cápsula pode ser dissimulada pela ausência de uma língua em comum, o que impede que qualquer informação chegue aos sujeitos. Uma vez que seu déficit auditivo não lhe permite ouvir o que é dito a seu respeito na língua de entorno, o português oral.

Fazendo uso de gestos naturais, ou criando gestos caseiros, o sujeito surdo fica encapsulado pelas informações, ainda que escassas, que circulam no seu restrito mundo social. Ao não ter fluência na língua de sinais, os pais, ainda que inconscientemente, garantem o controle desse sujeito, o que propicia que ele permaneça dependente por um tempo bastante dilatado.

Percebe-se que esses fatores são corroborados pela lei que, na sua função reguladora, garante a subsistência do sujeito, que considera incapaz para tanto. Ainda que o sistema de saúde, com todos os seus déficits, faça crer que nos primeiros anos de vida, grande parte das famílias que têm um filho com qualquer peculiaridade sensorial, física ou mental, a ajuda seja necessária, para que algum membro da família possa assisti-lo, essa necessidade também é dimensionada por um sujeito que possui uma representação social do surdo, formada pelo senso comum. Como pode ser constatado, a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) não tem em seu corpo uma provisão de formação para o sujeito, na qual ele possa encontrar outra forma de estruturar-se se não com a provisão do Estado. A família estabelece-se como o núcleo capaz de originar e transformar representações sociais, mas, antes de tudo, com forte poder de disseminá-las.

Para Kyle (1999), a família é o berço da educação bilíngue para surdos, pois centra-se nela o poder de decisão de onde e como a criança com déficit auditivo será educada, o que a posicionará como surda ou como deficiente auditiva, como já discutido em Campos (2009), estando também sobre o seu comando a língua pela qual essa criança se constituirá, ainda que

o grupo familiar não partilhe dessa língua. Mais explícitamente, mesmo que a família não saiba Libras, é ela quem inscreve a criança surda na escola bilíngue e dá acesso à sua criança a uma língua que poderá, ou não, partilhar com ela. Sem dúvida, um contrassenso, mas uma realidade vivenciada em uma proporção alarmante nas escolas de surdos e fortemente pontuada pelos entrevistados.

Para além da escola, a família foi a instituição mais presente, nesta tese, quase que unanimemente citada como o elemento responsável pela baixa proficiência na Libras dos alunos, e identificada como o que falta aos alunos, da perspectiva dos professores. A exceção foi o entrevistado professor 1, que se colocou ciente do desconhecimento da família a respeito da língua, mas sem a ênfase colocada por todos os outros; cinco dos professores apontaram a família como um fator que enfraquece a educação bilíngue para surdos. O desconhecimento da língua, a falta de comunicação com o filho, ou mesmo o desinteresse em aprender a Libras, foi um fato lembrado e lamentado pelos professores. Apenas o professor 3 não cita a família no processo de aprendizado dos alunos surdos.

Assim, a base da cadeia é colocada, nesta tese, como frágil e todo o processo de ensino torna-se fragilizado sob o olhar dos educadores, que tomam para si a tarefa de formalizar a Libras ao mesmo tempo em que está sendo adquirida. Se o berço está vazio, cabe ao professor ocupá-lo. Como posto pelo professor surdo 7: Para mim como professor é como se eles fossem filhos, que eu encontro todo dia, que tenho contato todo dia. Então, eu sou um modelo, um espelho.

O professor 1, ao fazer sua análise, não identificou qualquer fragilidade nos seus alunos, e entende que cada desconhecimento é o motor para um novo desafio, quando diz: Mas o que eu faço e às vezes eu sinto falta em algum e eu fico estimulando, é da curiosidade, é de querer saber, querer conhecer, de fazer aquilo interessante. Para suprir as faltas, o professor busca caminhos alternativos para que o próprio aluno enfrente o que poderia ser um obstáculo. Colocando-se no lugar de adulto mais experiente, proporciona meios para que ocorra a zona de desenvolvimento proximal ao aluno que terá a oportunidade de explorar, imitar e descobrir, na presença desse adulto, um parceiro de conhecimento e instigador de saberes a serem descobertos.

O que se questiona é se o fato desses atos não estarem firmemente embasados em suportes teóricos, como se constata em outros aspectos analisados, levará aos objetivos de desenvolvimento que as crianças surdas poderiam alcançar, ficando mais uma vez obscurecida a relação aprendizado e desenvolvimento, que no caso dos surdos tem como um dos pontos

centrais a linguagem.

Para Vigotsky (2007), a linguagem inicialmente é um meio de comunicação entre a criança e seus interlocutores, em seu ambiente, e na conversão em fala interior, organizará o pensamento, passando a ser função interna. Temos, então, que à criança surda, pelo que determina a lei, está garantida a comunicação; no entanto, o que almejam os profissionais aqui vistos e ouvidos, é a constituição de sujeito e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Para tanto, assumem, como consta no relato de do professor 7, a função de transformar ambientes em uma metáfora de herói: Eu não sou Super-Homem não, eu não sou, tem que lutar muito, mas eu vou influenciando, é difícil.

Se aos alunos ouvintes o modelo de língua está personificado nos membros familiares, para os alunos surdos esse modelo está no professor surdo, que se coloca no papel de modelo de seus alunos, de língua e comportamento que, acreditam eles, mudará a postura de seus alunos no futuro, como é colocado pelo professor 7:

É o humano que tem que mudar, é o que as crianças vão se apoiar, se eu fecho tudo em mim, as crianças vão imitar isso também, eu falto, falto, falto, as crianças vão fazer isso. Se eu fico brincando no celular, as crianças vão fazer isso também e para sempre vão reproduzir isso. […] Elas prestam atenção, para mim como professor é como se eles fossem filhos, que eu encontro todo dia, que tenho contato todo dia.

No entanto, esse papel não é exclusivo dos modelos surdos, como dito pelo professor 5: O que esse professor falar pra esse surdo é lei. Então, para o surdo, ele acaba sendo uma referência muito grande, pra esse… professor acaba sendo uma referência muito grande para esse surdo. Essa posição do professor ouvinte pode levar o surdo a outro modelo da carreira moral, na qual o estigmatizado incorpora os padrões frente aos quais eles fracassam (Goffman 1988, p. 42).