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A língua portuguesa, utilizada pela maioria dominante, na perspectiva do ouvintismo dos Estudos Surdos, aparece no discurso dos professores como o meio de acesso ao mundo, como aquela que abre, amplia o mundo dos sujeitos surdos, permitindo que interaja com a sociedade circundante, em contraste com a Libras, que cumpre o papel comunicacional intra comunidade surda.

Bahan (2011, p. 2), ao discutir a afirmação de Hall (1982) segundo a qual “Pessoas de culturas diferentes não só falam línguas diferentes, mas, o que é possivelmente mais importante, habitam diferentes mundos sensoriais”, levanta a hipótese de que “cada sentido, possivelmente, tem um significado ou interpretação diferente em diferentes culturas” (BAHAN, 2011, p. 96). Ao discutir tais afirmações, o autor não tratava da dicotomia surdo/ouvinte, mas de surdos de diferentes partes do mundo.

Certamente não se trata do mesmo contexto, mas, ao redividir o mundo em língua portuguesa e no da Libras, infere-se que a visualidade dos surdos não se trata da mesma visualidade que os ouvintes vivenciam. É parte do papel dos professores a aproximação desses “mundos”, no entanto, o profissional está imerso nas representações de tal forma que executa o movimento contrário, que tende a distanciar as partes, criando espaços distintos para sujeitos que partilham a mesma cultura.

Os dados disponibilizados pelos professores permitem constatar que os profissionais da área dividem o mundo em dois, o mundo da Libras e o mundo propriamente dito, como se, ao comunicar-se através da Libras, o surdo estabelecesse um mundo à parte, dentro do mundo real. Os discursos, tanto de professores surdos, quanto de professores ouvintes, manifestam a língua em espaços e tempos diferentes. Dessa perspectiva, a Libras não se coloca como a língua de constituição do sujeito surdo, mas sim como a língua com a qual pode comunicar-se com seus pares surdos, e somente com eles e a sociedade solidária.

Entre as línguas, está o sujeito, muitas vezes jovens que devem fazer a transposição entre um mundo e outro, sem a ferramenta adequada para tanto. Se a Libras só tem papel entre os surdos e o português é a língua que os conecta com o mundo de verdade, o que, ou quem cumpriria o papel de minimamente tangenciar esses conhecimentos? Ainda que aprenda a língua portuguesa, o professor surdo, que ao falar nela se coloca como aprendiz, não se apropria dela, como pode ser visto no discurso do professor 2 (surdo), quando diz: Na verdade, eu, eu escrevo mal, tenho uma gramática ruim, e no do professor 7 (surdo) que revela: Eu tenho trauma no português.

Quando se trata da língua portuguesa, os professores surdos se deslocam do lugar de professor para o de alunos, pois eles também não aprenderam e percebem o seu acesso ao “mundo” interrompido, por não saberem a língua, como diz o professor 7 (surdo): Português faz uma guerra dentro de mim, uma briga mesmo, parecia que quando eu pegava os sinais eu esquecia o português, não conseguia percorrer os dois caminhos ou quando o professor 2 (surdo) diz: Na verdade, eu, eu escrevo mal, tenho uma gramática ruim. Porque não aprendi, estudei muitos anos, eu estudei, cresci e não vi nada de português. Ao se verem no lugar dos alunos, os percebem e percebem a si mesmo em desvantagem e buscam, através da Libras, reverter a situação.

Já os professores ouvintes estabelecem com mais clareza essa cisão dos dois mundos, quando estabelecem a importância da língua portuguesa para seus alunos surdos. Para o professor 1,

no português, é para buscar informações, para se comunicar, é exatamente por a gente não ter muito material em Libras, a gente não tem as famílias que saibam Libras, a comunidade ouvinte, as pessoas, então,ele vai usar muito mais essa língua portuguesa que a Libras, assim, o movimento da língua portuguesa pra ele, eu acredito, é maior na nossa sociedade do que a Libras. A Libras, ela fica mais fechadinha no mundo dele, ali, nos contatos que ele tem com os amigos, com os adultos surdos.

Com a Libras, é lidar com o que está posto, sem pensar em mudanças. Ainda quando pensam no ensino da Libras, o objetivo é o aprendizado do português, como aponta a professora 4:

Acho que é fundamental, se você não conhece sua própria língua não tem como estudar outra, até como professora de espanhol falo isso da língua portuguesa também, se a gente não conhece a nossa língua mãe, não tem como você se envolver plenamente, numa segunda língua.

Como diz a professora 5, Ela tá num mundo de ouvintes, ela precisa saber o português, porque tudo na vida dela gira em torno da língua portuguesa. Por que é a língua... do País. Para a professora 6, Porque ele está num mundo de ouvinte, né? Então ele tem que estar preparado para o mundo.

Está posto para os professores que os surdos devem aceitar as representações que lhes estão impostas, ainda que isso estabeleça uma desvantagem, por não existir a possibilidade de transformar o olhar do outro, ainda que todos admitam a dificuldade no aprendizado da língua, o que questionaremos posteriormente, a única alternativa que se visualiza.

Os professores ouvintes são atores do aprendizado nas duas línguas, enquanto os surdos delineiam seus papéis apenas para a Libras. O professor 2, ainda do seu lugar de aprendiz da língua portuguesa, proporciona caminhos para uma metodologia, ao dizer: Entender a própria frase do surdo. Eles me perguntam, ‘um’, ‘o’. Eles me perguntam: o que significa? ‘Um’ eu imagino que você não conhece a pessoa. É um homem, um homem qualquer. ‘O’ significa que você conhece a pessoa; o fulano de tal, ou seja, buscar olhar o mundo da perspectiva do surdo, para que ele possa, pela língua portuguesa, entender a cultura e a sociedade que o circundam.

No entanto, quando diz, entender a frase do surdo tratamos de compreender a sua constituição, sua estrutura de pensamento através da Libras e, para que isso aconteça, é necessário que conhecer profundamente a língua, o que, segundo os relatos, até esse momento, não é uma realidade das escolas bilíngues para surdos, como pode ser constatado na fala do professor 3: A questão era 90% dos professores que estão nas escolas de surdos da prefeitura não têm língua de sinais fluente, fluente no mínimo. Não estou dizendo ultra, mega... fluente. Sinalizando que existe uma representação de que eles é que têm de se adequar ao que se tem a lhe oferecer, do seu lugar comprometido.

Para Moscovici (2012, p. 87), as Classes dominantes e dominadas não possuem uma representação igual à do mundo que elas compartilham, mas o veem com olhos diferentes, julgam-no de acordo com critérios específicos e cada uma faz isso de acordo com suas próprias categorias. É dessa forma que os surdos puderam ser ancorados e em um mundo à parte estabelecemos o equilíbrio buscado pelas representações, de forma tal que a tensão entre as partes não seja extrema a ponto de colocar as partes em atrito, ao mesmo tempo em que não distende o suficiente para que a tensão seja esquecida.

O discurso sobre minoria não é suficiente para que as línguas habitem o mesmo mundo, assim o português segue representando o mundo real, enquanto a Libras é suficiente apenas para o “mundo dos surdos”, mundo este que localiza-se a parte, sem a perspectiva de encontro a língua de comunicação, ainda que somente entre os pares, conforme prescrito na lei.