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3. A FAMÍLIA JAPONESA

3.1 A família japonesa tradicional

Diante do estudo e análise das famílias japonesas constituídas no Brasil, nos deparamos com uma questão a respeito da organização dessas famílias, com relação às suas funções, os papéis desempenhados pelos pais e pelos filhos e aos valores que permeiam toda essa organização familiar, que no caso dos japoneses, assumem uma configuração peculiar e mostra-nos um universo bem diversificado se comparado ao contexto familiar ocidental, via de regra, o modelo predominante no Brasil.

Os imigrantes nipônicos que se instalaram no Brasil, carregavam em sua bagagem cultural e de valores, um modelo familiar que pode ser considerado um dos fatores que facilitou a expansão econômica dessas famílias nas décadas de 20 e 30 no nosso país, no qual “as relações de cooperação dentro do grupo e entre os vários grupos domésticos são altamente elaboradas, porém, mantêm uma flexibilidade que facilita seu ajustamento às novas condições de trabalho que encontraram nos países de imigração.” (CARDOSO,1998, p. 82)

A organização familiar da época Edo (1600-1867) permaneceu durante séculos no Japão e constituiu o que se denominamos a família tradicional japonesa. Este modelo tinha

como a célula de base o ie, ou casa, o “instrumento do poder e matriz da subordinação do individual ao coletivo, a permanência do ie em todos os níveis do edifício social garantia a estabilidade da ordem política e administrativa.“ (BEILLEVAIRE, 1997, p. 203).

O ie16 constituía-se num grupo de filiação patrilinear que tinha em comum o culto

aos antepassados permanente durante as gerações, cuja continuidade seria perpetuada através do nome, bens materiais e imaterais e títulos, através de uma linha de filiação real ou fictícia. Normalmente estava associada a uma rede de parentes e de vizinhança, que na prática, eram pouco diferenciadas entre si. O ie funcionava também como uma entidade social que englobava em seus domínios os aspectos de parentesco, econômicos e religioso.

Cabe notar que apesar do destaque para a filiação patrilinear, a maior ênfase do sistema familiar tradicional japonês não se referia à continuidade consangüínea, mas principalmente, à sua perpetuação enquanto um grupo corporativo, considerado como ponto fundamental. Portanto, a perpetuação genealógica consistia apenas numa linguagem que permitiria a criação e manutenção dos laços necessários para a ordenação e cooperação do grupo.

Tomamos como referência para tal afirmação, a existência da regra de adoção de um filho, que apesar de sacrificar a linguagem consangüínea, garantia a existência de um encarregado pela gestão dos negócios e perpetuação do grupo.

O chefe da casa constituía-se no poder principal do ie, e todos os seus membros deviam-lhe respeito e obediência, afinal, representava o sucessor da linhagem ancestral e encarnação da própria casa. Além disso, o chefe gozava de alguns benefícios em várias

16 A palavra ie tem o conteúdo aproximado ao da palavra casa em francês, significando, simultaneamente

atividades cotidianas como o privilégio de ocupar o lugar de honra (yokoza) na mesa, durante as refeições, o direito de banhar-se antes de todos os demais membros da casa e o de degustar pratos preparados especialmente para ele.

A regra de sucessão do ie baseava-se na primogenitura patrilinear, na qual apenas um filho, o primogênito, herdava a direção da casa e normalmente, a totalidade dos bens da família. Na ausência do primogênito ou quando este era julgado incapaz ou indigno de gerir os negócios e o nome da família, o chefe da casa poderia optar pelo sistema de adoção, no qual ele detinha o direito de escolher aquele considerado como o seu melhor sucessor.

O filho adotado constituía-se quase sempre num jovem ou adulto jovem e renunciava a toda a sua origem, inclusive o nome, devendo identificar-se com a casa adotiva e aceitar os cultos aos seus antepassados e as obrigações atribuídas pelo seu novo papel. Suas aptidões físicas e morais eram importantes, tanto que em alguns casos, podia-se optar por uma filiação adotiva ao invés da filiação real na sucessão familiar. A modalidade de adoção mais encontrada referia-se à adoção de um genro (denominado mukuyôshi), que seria o marido da filha do chefe da casa.

Independente da condição do sucessor, seja ele um parente de sangue ou um aliado, a estrutura patrilinear e genealógica do ie permitiam que ele ocupasse a condição de filho, cumprido as funções que lhe cabiam.

Se por um lado, a adoção significava para o adotado o abandono formal de sua pertença doméstica de origem, por outro lado, conferia novos laços com a casa adotante, pois as duas casas poderiam prestar auxílio mútuo nos trabalhos e nas festividades.

O papel da mulher17 nas casas era de totalmente sujeição aos pais, posteriormente ao marido e, por último, ao herdeiro. Talvez sua maior autoridade fosse exercida sobre a nora (yome), que deveria submeter-se às suas ordens antes de substitui-la. A nora passava por um período de “iniciação”, no qual deveria demonstrar seus dotes e capacidade para que fosse finalmente aprovada pela casa do marido. Além disso, as esposas eram responsáveis pelas tarefas de cuidado ao culto dos antepassados, como a limpeza do altar e renovação das oferendas e orações.

O culto aos antepassados limitava-se aos mais recentes e eram recordados no lar através da inscrição de um nome póstumo no butsdan (pedaço de madeira com a inscrição do nome, colocado sobre o altar). Segundo a tradição japonesa, o falecido atinge o verdadeiro estado de antepassado (kami) e perde sua identidade após cerca de trinta e três ou cinqüenta anos após seu falecimento quando alcança o fim dessa etapa. Após esse período, a casa continua a prestar-lhe o ritual e cultos, porém, de forma anônima. A cerimônia do Bon, comemorado em meados do mês de agosto, é o culto de veneração por todos os mortos da casa, sejam os antepassados recentes, os mais antigos, as almas errantes e os anciãos, considerados antepassados vivos.

Entre os camponeses, podia-se encontrar uma relativa igualdade nos papéis desempenhados por homens e mulheres nas tarefas agrícolas.

Os casamentos também obedeciam a determinadas regras e rituais, até que fosse, finalmente, formalizado. Durante a época Edo, o casamento passou a ser patrivirilocal (o

17 No final do período Kamakura (1185-1333) e durante os séculos XV e XVI, devido a um período de

sucessivos conflitos, os chefes das casas militares passaram a utilizar a transmissão integral da propriedade a um único sucessor,o primogênito, com a finalidade de fortalecimento e estabilização da estrutura fundiária. Até então, as mulheres tinham direito à herança e os casamentos não eram realizados em regime de comunhão de bens e a herança que a mulher recebia de seus pais era considerada sua propriedade particular, sendo livre

casal residia com a família do marido) após a cerimônia de acolhimento da esposa (yome) na casa do marido (yomeiri kon).

Nas famílias pertencentes à classe dos militares, a figura do intermediário (nakôdo),

que tanto podia ser um “profissional”como um amigo ou parente – desempenhava um papel primordial nos preparativos do casamento, estabelecendo o contato entre as famílias, muitas vezes afastadas geograficamente, e responsabilizando-se pelo estatuto e ascendência de cada uma delas e até pelo angúrio da união. Esta só era confirmada depois de uma série de encontros protocolares, ao longo dos quais o empenhamento das partes interessadas devia ir-se manifestando de modo progressivo e ritualizado, mas onde os futuros cônjuges estavam ausentes. Era habitual que estes só fossem apresentados um ao outro durante a última reunião acertada pelo nakôdo, denominada miai, termo que significa literalmente “encontro”, mas que, na utilização vulgar, remete para a idéia de casamento ‘combinado`. (Beillevaire, 1997, p. 211)

Entre os camponeses, os casamentos normalmente eram realizados entre os membros da própria comunidade local e existia uma liberdade maior que permitia, inclusive, relações pré-conjugais. Por isso, em algumas regiões, o casamento era apenas uma formalização de uma relação já estabelecida, e o papel do nakôdo limitava-se a uma função formal. No caso dos herdeiros, existia um cuidado maior na escolha da esposa devido à sua importância na família. Tal escolha era importante, podendo colocar em risco os destinos da casa.

Como os casamentos cumpriam um papel contratual e a condição da mulher, no início do casamento era caracterizado por um período frágil, conforme foi descrito acima, alguns fatores poderiam justificar a revogação do casamento, resultando numa separação. O principal motivo para esse pedido consistia na infertilidade da mulher, seguido por doenças graves, adultério e sinais de incompatibilidade com a casa dos sogros durante o período inicial do casamento.

político menor. Nessa época, não era incomum a existência de mulheres gerindo propriedades rurais e empresas comerciais, como produção de saquê e distribuição de arroz.

Após o casamento do filho sucessor, o casal ocupava as dependências do ie, considerado o centro simbólico do grupo familiar que acolhia o altar do culto dos antepassados. O período de sucessão não era fixo e dependia do estado de saúde do patriarca, mas normalmente ocorria em vida.

Normalmente, o período de aposentadoria do chefe da casa era marcado pela saída do casal idoso para uma dependência da casa principal, e em locais nos quais havia um excedente de terras, o casal poderia partir para uma casa independente, onde cultivava sua própria terra. Poderia acontecer do casal partir juntamente com os filhos solteiros, embora a função do herdeiro constituía-se também no cuidado dos irmãos mais novos. O momento no qual ocorria essa separação geralmente coincidia com o nascimento do primeiro filho do casal herdeiro.

A casa estava sempre associada a uma rede de parentesco (shinrui) que normalmente se estendia até os primos em primeiro grau do chefe da casa. Com o casamento, a esposa ou o genro adotado mudavam de shinrui, e simultaneamente estabelecia-se entre ambas uma relação de shinrui. Existiam também relações com os aliados da casa (engumi) que obtinham a mesma importância que os parentes consangüíneos.

Juntamente com os shinrui, desenvolvia-se outro tipo de agrupamento, denominado

dôzoku (mesma gente). O dôzoku pode ser definido como uma formação de várias famílias

elementares, ligadas pelo mesmo nome e patrilinearmente relacionadas, ligadas por relações de obrigações recíprocas, de ordem genealógica e econômica. O princípio constitutivo do dôzoku ocorria com a concessão de uma parcela de terra ou instrumentos pela casa de origem (honke) para a formação de uma nova casa, denominada de casa-ramo

Neste conjunto, o chefe a família principal é o administrador e centralizador de decisões, assim como o representante responsável por todo o grupo perante a comunidade. Cada casa, entretanto, tem a garantia de uma relativa independência, desde que cumpridas as obrigações impostas por sua submissão ao núcleo principal. (CARDOSO, 1998, p. 85) Enquanto a casa de origem era habitada pelo chefe da casa e posteriormente pelo seu sucessor, as casas-ramos eram construídas para os irmãos do primogênito, incluindo-se as irmãs e os empregados. Por isso, em muitas unidades de dôzoku, a ascendência era cognática e não patrilinear, pois muitas filhas estabeleciam-se no dôzoku, através da adoção de um marido.

Para o estabelecimento no dôzoku, fazia-se necessária a aceitação e a honra do nome da linhagem, o culto dos antepassados e o cumprimento das obrigações econômicas e políticas que caracterizavam essa unidade corporativa, mesmo dqaueles membros que não possuíam laços consangüíneos.

Os membros das casas-ramos eram ligados à casa de origem através de uma relação fictícia pais-filhos, na qual o chefe e a sua esposa eram denominados de pai e mãe e os seus filhos, de irmão mais velho e irmã mais velha. Essa mesma relação era estabelecida com empregados ou arrendatários, a quem havia a concessão de uma casa-ramo, pois na prática, a inexistência de laços consangüíneos não exprimia qualquer diferença. O que estava em jogo era a coesão e a participação do grupo nos rituais da casa de origem.

É importante frisar que alguns zaibatsus modernos (grandes monopólios empresariais) tiveram sua origem como dôzoku, que após um considerável crescimento econômico, puderam atingir meios para sua diversificação e independência da casa de origem. Temos como exemplos, grandes empresas como a Mitsui, a Mitsubishi e a

Diante de tudo o que foi exposto a respeito da família tradicional japonesa, podemos perceber que embora a relação de filiação fosse um critério de definição para a participação no sistema familiar produtivo, não tinha um critério exclusivo, e verificamos que o vínculo de filiação constituía-se tanto de modo biológico como social. Isso pode ser percebido através das adoções de filhos e maridos, pelo reconhecimento de empregados e aliados como membros do dôzoku, compartilhando do mesmo status dos membros que possuíam uma filiação consangüínea. Isso ocorria, uma vez que, a maior preocupação centralizava-se na continuidade da família, independente do seu contínuo genealógico.

Ao contrário do que ocorre na cultura ocidental, as características familiares não se constituíam como resultantes apenas da transmissão sangüínea, mas também da transmissão de símbolos sociais. Por isso, não existia distinção entre a prole de um filho ou de uma filha cujo marido fosse adotado e, desde que se cumprissem as obrigações e funções determinadas, todos eram considerados membros honrados do grupo familiar.

Com a Restauração Meiji (1868) ocorreram importantes mudanças que afetaram as dimensões políticas e sociais do país, refletindo também na família. Em 1890, é promulgada o Código Civil Meiji que só entrou em vigor no ano de 1898, devido a um longo processo de revisões que sofreu nesse período.

O Código reconheceu o ie como o elemento fundamental da sociedade japonesa e a “identidade pessoal continuava a ser principalmente definida pela pertença a uma casa e pela inscrição no registro doméstico, denominado koseki. “ (BEILLEVAIRE, 1998, p. 209). Além disso, a figura paterna continuava a ocupar a posição de chefe da casa, com autoridade para decidir a respeito da entrada de novos membros na família ou pela exclusão daqueles julgados inaptos.

O papel da esposa era o de submeter-se às decisões do marido e à sua família, sendo que os seus bens pessoais seriam administrados também por ele.

A sucessão ao lugar de chefe da casa e a transmissão de bens passaram a ser distintos. Com relação à sucessão, a preferência recaía sobre o filho primogênito, que recebia a posse dos documentos genealógicos e os instrumentos utilizados no culto aos antepassados. Na falta desse ou caso ele fosse afastado da sucessão (em casos de deficiência física ou moral), o chefe poderia adotar um genro e na ausência de filhas, algum sucessor. O filho adotivo possuía os mesmos direitos e benefícios do filho biológico, devendo renunciar ao seu nome e seus antepassados e passar a usar o nome e o culto dos antepassados da família adotante.

Com relação à transmissão de bens, o Código previa que o sucessor não poderia

herdar menos do que a metade do patrimônio familiar, sendo que a cota que caberia aos

demais filhos dependia da escolha realizada pelo pai. As filhas e os secundogênitos contavam com a possibilidade de fundar uma casa-ramo, dependente da casa de origem, de acordo com as condições econômicas do grupo.

Embora o Código permanecesse fiel na maioria dos aspectos essenciais da vida familiar japonesa, a sua aplicação nacional teve o mérito de acentuar uma unidade cultural no país, independente do status econômico, pois até então as regras e costumes apresentavam uma diversidade entre as classes sociais e as regiões geográficas.

Deve-se apontar, por outro lado, a importância da família na esfera política do Japão. Considerada a pedra angular da ordem social, a propagação da ideologia nacionalista que passou a vigorar no país utilizou-se de uma analogia estabelecida entre família e Estado de tal modo que afirmava uma identidade entre essas duas realidades. O Estado japonês passou a ser descrito como a extensão da instituição familiar.

Confundindo-se a origem da nação com a da casa imperial, os antepassados divinos do imperador tornavam-se os do povo na sua totalidade. Esta homogeneidade, simultaneamente espiritual e racial, da sociedade japonesa justificava também que a piedade filial (kô) fosse encarada como a manifestação elementar da lealdade (chu) dos súditos para com a autoridade imperial e os representantes do Estado. Ao venerar os antepassados, cada súdito perpetuava os laços entre as gerações e assegurava assim a perenidade e a harmonia do país. Esta teoria do “Estado-família”, ou kazoku kokka18

, levava deste modo a considerar-se a família como a própria matriz do Estado japon6es e como a fonte do seu ethos. (BEILLEVAIRE, 1998, p. 212).

Não foi apenas para o conceito de Estado que a estrutura familiar foi utilizada. Podemos notar que na constituição das relações trabalhistas nas empresas modernas a gestão pode ser considerada como familiarista, fundamentando-se em vários pontos na estrutura familiar japonesa. Dessa forma, a empresa é considerada como uma casa, representada pelo seu chefe e os empregados devem se empenhar ao máximo, de uma forma solidária, para atingir os objetivos do grupo, tal como ocorre na família japonesa.

Alguns dispositivos empresariais reforçaram a implantação dessa ideologia, que de certa forma mantiveram longe das empresas japonesas as influências das idéias marxistas e sindicais. Dessa forma, o emprego é vitalício para grande parte dos cargos e a hierarquia baseia-se na cordialidade e no giri (obrigação) dos empregados.

A estrutura e o funcionamento do ie pode, portanto, ser equiparado a uma empresa, pois a sua flexibilidade nas estratégias de sucessão permitiu assegurar sua perpetuação e sua capacidade produtiva, configurando-se na base social do país.

O processo de transformação e modernização do Japão foi efetuado através da conciliação entre as novas idéias e o conceito de “alma japonesa” através da manutenção de todos os valores que discutimos anteriormente. Apesar de todo o processo de aceleração promovido pelo governo no sentido da modernização e implantação de novas idéias no país, na prática, os valores e os comportamentos legados do passado não se dissiparam na

população, ao contrário, permaneceram durante muito tempo e continuaram a influenciar seus modos e valores, principalmente até o desfecho da II Guerra Mundial.