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5. FAMÍLIA E MIGRAÇÀO

5.1 Rompimentos de vínculo e cultura

A experiência migratória provoca durante sua experiência, a ruptura dos vínculos e da rede social de apoio das pessoas e famílias envolvidas nesse processo.Isso significa que, com a partida para outro contexto, parte da rede de relações interpessoais é rompida, e com isso, as satisfações afetivas deixam de ser efetuadas por aqueles vínculos conhecidos, levando a uma sobrecarga dos vínculos que restam ou que são preservados com a migração.

Segundo Sluzki (1997, 2003), o rompimento dessa rede social pessoal está relacionado a uma elevação do nível de estresse vivido pela família e pelos indivíduos, sendo associado a um crescimento no aparecimento de problemas psicossomáticos, de saúde mental e acidentes, cuja incidência pode ser localizada como conseqüência da perda dessa rede, responsável por muitas funções vitais para as pessoas, que no contexto migratório se vêem desprovidos desse apoio e função exercida pela rede pessoal, que se mantém no local de origem.

Como principal conseqüência, verificamos a sobrecarga das relações que se mantém, pois as funções previamente efetuadas pela rede ampliada, como amigos, colegas, parentes, é perdida, levando o indivíduo a buscar o preenchimento desse vazio naquelas relações que restam, levando a tal sobrecarga. Esse aumento na expectativa e nas necessidades podem acarretar numa maior insatisfação, caso tais necessidades não sejam atendidas, resultando em queixas, ressentimentos e afastamento entre as pessoas envolvidas.

Por outro lado, diante dessa sobrecarga, a indisponibilidade e o acúmulo de insatisfações aumenta, gerando conflitos e queixas entre as pessoas envolvidas.

Como o processo migratório ocasiona uma experiência disruptiva na família é natural que haja uma reconstrução da rede social, pois ela configura-se num sistema dinâmico que evolui através do tempo e do espaço. Nesse sentido, novos membros podem ser incorporados e/ou eliminados, as relações e funções desempenhadas também podem se modificar e com isso, um novo mapa relacional pode se configurar, contendo tanto os membros da rede que se mudaram juntos (como casal, o casal e os filhos, etc), pessoas remanescentes da rede anterior e novos vínculos que são gradativamente incorporados de acordo com as situações e circunstâncias vividas.

Porém, mesmo com a possibilidade dessa nova configuração da rede social, muitas vezes, se

comparada com a anterior, durante um período considerável de tempo, a nova rede tenderá a ser de tamanho menor, apresentará uma distribuição em quadrantes mais irregular, terá menor densidade e um repertório mais estreito de funções; será menos multidimensional, recíproca e intensa. Tudo isso caracteriza uma rede insuficiente, que tende, portanto, à sobrecarga – mais expectativas depositadas em menos relações – e à descompensação – crises pessoais e individuais. (SLUZKI, 1997, p. 91)

Percebemos, com tudo o que foi exposto, as conseqüências acarretadas pela migração no contexto familiar, o que aponta para a necessidade de entendimento e compreensão desse processo, para que não sejam realizados diagnósticos errôneos e patologizantes tanto com relação aos indivíduos como à família que experenciam um processo migratório.

Um aspecto importante a apontar, com relação às possibilidades de reconstrução das relações refere-se às características da sociedade hospedeira, que pode facilitar ou dificultar a recomposição dos vínculos sociais dependendo da receptividade do ambiente social

exercida nesses novos contextos e da estrutura social existente, representado pelo sistema de saúde, educacional, de bem-estar social, etc.

Nesse sentido, de acordo com Sluzki (2003), é importante entender o contexto pré e pós-migratório, isto é, verificar o grau de traumas e perdas vividos antes e durante a migração, através de questões que apontem o motivo que ocasionou a decisão, o que aconteceu aos membros da família, quais os membros que foram deixados, como foi a saída das pessoas. Essas questões são importantes pois indicam o grau de sofrimento vivido pela família, além das ferramentas existentes para a adaptação e superação da situação deflagrada pela migração.

Além disso, é importante verificar os ganhos acarretados pela imigração, seja econômico, educacional, profissional, etc, uma vez que tais características podem ser importantes instrumentos para o fortalecimento familiar, já que no contexto migratório as perdas vividas são inevitáveis.

A importância desses fatores deve-se, principalmente, às conseqüências que acarretam, pois caso a separação da família implique no abandono dos filhos na terra natal, isso ocasiona um aspecto de estresse elevado, devido ao nível de sofrimento ocasionado aos pais, aos filhos que ficam e aos responsáveis pela educação e cuidados desses membros da família.

Quando a migração tem caráter temporário isso pode dificultar o processo de adaptação da família, pois diante disso, os esforços para estabelecer novos contatos sociais fica limitado, afinal, o provisório é vivido de uma forma mítica, no qual o retorno é visto como algo mais próximo temporalmente do que realmente é. Isso vale também para os

aspectos da vida social não são substituídos, levando em consideração a volta dos membros que partiram.

Além disso, a expectativa do retorno pode impedir os esforços da família para adaptar-se à nova situação, vivendo um enclave étnico no qual negam-se a aprender a nova língua e novos padrões culturais locais, enrijecendo e dificultando a adaptação cultural da família e dos seus membros.

As perdas vividas pelas famílias de migrantes não se restringem às questões relativas à rede social, mas temos que levar também em consideração o processo de desenraizamento vivido pelas famílias que buscam uma nova terra, pois segundo Mock (2003), as perdas referem-se inclusive, aos bens culturais, status social e outras fontes de identidade como a etnia, por exemplo. Tais perdas podem acarretar a distorção, destruição ou interrupção dos padrões de ciclo de vida da família, das normas e valores familiares que passam a ser questionadas e desafiadas diante das novas circunstâncias de vida impostas pela separação, provocando níveis de ajustamentos e aculturação diferentes daqueles vividos pela família até o momento da separação, afetando o processo de identidade cultural nos membros da família envolvidos no processo migratório.

Na terapia familiar, o conceito de cultura veste-se de importância à partir do momento em que compreendemos que nossa narrativas pessoais e familiares são definidas por narrativas culturais mais amplas, que adquirem significado e atribuem significado pessoal dentro do contexto histórico ao qual pertencemos, o que confere o caráter dinâmico à cultura, pois entendemos seu caráter dinâmico e mutável. Nesse contexto, compreendemos cultura como

uma construção individual e social, um conjunto de significados em constante evolução e mutação, que só pode ser entendida no contexto de um passado narrativo, um presente co-

interpretado e um futuro desejado. É sempre contextual, emergente, improvisada, transformadora e política; acima de tudo, é uma questão de lingüística e de linguagem, de discurso. (Laird, 2003, p. 33)

Portanto, é na interação com o contexto mais amplo e com as pessoas inseridas nesse conceito, podemos construir o nosso significado e o dos outros presentes nessa interação, de forma que a cultura constitui-se num ingrediente dessa experi6encia que nos fornece matéria-prima para realizarmos essa co-construção.

Quando falamos em co-construção queremos dizer que os aspectos culturais não são responsáveis apenas pela constituição de significados, mas também pela construção de novos significados que podem ser representados nessa co-relação entre cultura e indivíduo. Assim, “a cultura mais ampla, o grupo étnico, a família, nos oferecem símbolos, estereótipos e narrativas a partir das quais podemos escolher a forma em que nós, como numa bricolage, vamos nos constituir e reconstituir.” (Laird, 2003, p. 32)

Segundo McGoldrick (2003), a etnicidade diz respeito aos padrões desenvolvidos e construídos, ou seja,

nossa maneira de pensar, nossos sentimentos e nossos comportamentos de maneiras tão óbvias quanto sutis, desempenhando um papel preponderante na determinação do que comemos, como trabalhamos, como nos relacionamos, como celebramos os dias santos e rituais, e como nos sentimos sobre a vida, a morte e a doença.” (MCGOLDRICK, op. cit.,p. 25)

A cultura e a etnia são fatores que contribuem para a constituição pessoal, pois tanto o indivíduo como a família pertencem a um determinado contexto cultural e histórico que, nesse processo de co-construção nos fornece lentes com as quais podemos significar a realidade e, principalmente, a nós mesmos nessa realidade.

Num contexto migratório, principalmente naqueles em que o indivíduo passa a fazer parte de uma realidade cultural e étnica muito diversa daquela original, existe a ruptura com

mecanismos que promovem a identificação cultural, levando ao desenraizamento e perda de referência internas e externas temporárias, até que a família possa acionar mecanismos de adaptação à nova realidade e se restabelecer nessa nova situação gerada pela migração.