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O on: obrigações e devoção nas relações interpessoais da cultura japonesa

2. JAPÃO: ASPECTOS HISTÓRICOS E CULTURAIS

2.3 O on: obrigações e devoção nas relações interpessoais da cultura japonesa

A vida cotidiana do japonês está baseada no respeito à hierarquia, na ordenação das pessoas conforme sua classe, posição hierárquica, idade e sexo e pode-se afirmar que nessa cultura, a aceitação da posição que lhe cabe não ocorre por simples submissão no sentido da compreensão ocidental, não se trata de uma vontade individual, mas ao contrário, de um entendimento grupal no qual cada qual assume o seu lugar, desde o superior até o membro que ocupa o lugar de inferioridade nessa cadeia.

As virtudes universais dos japoneses são ensinadas e exercitadas na família e dela estendem-se a toda convivência social e tais regras sociais devem ser respeitadas, a despeito do despojamento dos interesses individuais. Nesse sentido, a

lealdade, devotamento e submissão aos interesses do grupo são aprendidos com os pais e, mais tarde, estas virtudes se transformarão facilmente em atitudes e até mesmo sentimentos que vão se estender aos superiores e ao Imperador. Não há diferença substancial entre as virtudes civis e familiais e, por isso mesmo, as últimas ganham grande importância porque definem o homem e o cidadão. (CARDOSO,1998, p. 104)

A concepção japonesa do código de respeito e lealdade assume um caráter de obrigação individual inevitável e absoluta, e o seu desrespeito caracteriza a perda da honra, portanto, da posição que lhe cabe na rede de relações. Assim, a verdadeira virtude concretiza-se no reconhecimento e retribuição dos débitos que se tem com os superiores, sejam os pais, o imperador, ou patrão e professores. Os superiores constituem-se sempre em credores, são considerados benfeitores, a quem se deve respeito, amor e lealdade e o pagamento do on, que em todos os seus significados aponta sempre para o sentido de “carga, débito, ônus que se carrega o melhor que seja possível. Recebe-se o on de um superior e o ato de aceitar o on de alguém que não seja de fato um superior ou igual ocasiona uma incômoda sensação de inferioridade.” (BENEDICT, 1972, p. 88)

Portanto, o on caracteriza-se numa dívida que precisa ser paga, pois o seu pagamento é uma virtude que simboliza a gratidão pelo crédito recebido.

O sentido do on é sempre utilizado com o da devoção, e o maior deles caracteriza-se pelo on imperial, o débito para com o imperador a quem se deve obrigação e gratidão, devido a tudo o que ele representa para a sociedade japonesa.

Existe também o on filial, que coloca os pais em posição de autoridade em relação aos seus filhos, que devem empenhar-se em quitar o débito que têm para com os seus pais, devendo-lhes obediência. Esse on consiste

nos próprios cuidados e preocupações diárias de que são investidos os pais e as mães. A limitação japonesa do culto aos ancestrais, a antepassados recentes e lembrados, traz essa ênfase sobre a efetiva subordinação na infância muito avante nos seus pensamentos, considerando-se o truísmo bastante óbvio em qualquer cultura de que todo homem e toda mulher foi outrora um bebê indefeso que não teria sobrevivido sem o cuidado dos pais, e durante anos, até ser um adulto, foi provido de lar, alimentação e vestuário. (Benedict, 1972, p. 90)

A fidelidade e a devoção15 dos filhos para com os pais representam o afeto de todo o on recebido, o reconhecimento de todos os sacrifícios realizados pelos pais e a retribuição

deste débito significa o amor filial. O pagamento do on aos pais também pode ser efetivado oferecendo-se aos seus filhos uma educação igual ou melhor àquela que recebeu de seus pais. O casamento também constitui uma forma de pagamento do on filial. Quando os pais escolhem a esposa ou esposo, os filhos aceitam sem discussão, e mesmo após o casamento, o pagamento continua, pois caso o filho seja o primogênito, deverá morar com os seus pais em sua velhice.

15 Apenas para ilustração do sentido e importância da devoção e fidelidade expressa no pagamento do on,,

iremos apresentar uma historieta apresentada por Benedict (1972, p. 89), intitulada “Não esqueça o seu on”, extraída de uma manual de leitura do segundo ano primário da escola japonesa.

“Haichi é um bonito cão. Ao nascer, foi adotado por um estranho e tratado como filho da casa. Por isso, até mesmo o seu corpo fraco tornou-se saudável e quando o dono ia para o trabalho todas as manhãs, acompanhava-o (ao dono) ao ponto dos bondes e à tarde voltava lá para esperá-lo.

No devido tempo, o dono morreu. Haichi, sabendo disso ou não, continuou procurando pelo dono todos os dias. Dirigindo-se ao habitual ponto, olhava para ver se o dono encontrava-se em meio ao grupo de pessoas que descia, quando o bonde chegava.

Além do on imperial e filial, existe o on para com o professor e o patrão, que de alguma forma colaboraram para a formação e o progresso do indivíduo, que poderá retribuir futuramente, quando esses ou alguns de seus parentes encontrarem-se em algum tipo de dificuldade.

Como o on constitui-se num débito que deve ser retribuído, os seus pagamentos são diferenciados. O gimu constitui-se naqueles débitos de pagamentos ilimitados e que dificilmente serão quitados na íntegra. O gimu congrega dois tipos de obrigações, o pagamento do on ao imperador, denominado chu, e o ko, que refere-se ao pagamento da dívida aos pais. O gimu é considerado absoluto e faz parte do destino universal do homem, e o seu pagamento é compulsório.

A obrigação ao pagamento do chu é o dever máximo de toda a atitude moral do japonês, pois é considerada a pedra angular da arcada moral, sendo superior ao giri.

O giri “é efetuado considerando-se o cálculo matemático do favor recebido e, ainda, levando-se em conta o fator tempo.” (HASHIMOTO, 1998, p. 29), e possui duas divisões, o giri para o mundo e o giri para o nome. Segundo as regras, deve-se pagar estritamente aquilo que recebeu sem ultrapassar o prazo, pois do contrário, a dívida acumula e o seu não pagamento leva à desonra.

O giri para o mundo é constituído pelos pagamentos dos deveres aos semelhantes, como parentes, chefes e pessoas não aparentadas, e o giri para o nome resulta na obrigação japonesa em manter o nome limpo. Por isso, todo japonês deve respeitar as regras de etiqueta e polidez (cortesia), dominar as demonstrações de emoção e não admitir o fracasso profissional, impedindo que tais atitudes coloquem em risco a sua reputação. Além disso, deve-se limpar o nome diante de um insulto ou uma provocação, pois o ajuste de contas ou vingança, nessas circunstâncias, não é considerado agressão.

Mas talvez, a forma mais difundida de honrar o nome esteja voltada para o suicídio. Segundo BENEDICT (1972, p. 142), a “...ação agressiva mais extrema compreendida por um japonês moderno contra si mesmo é o suicídio. O suicídio adequadamente executado, de acordo com os seus princípios, limpa o nome e reabilita a memória.”

Diante do giri, percebemos a vulnerabilidade dos japoneses em situações de fracasso, rejeições e insultos, e antes da agressão externa, normalmente a agressão é auto- dirigida. Por isso, todo o sistema meticulosamente hierarquizado das regras sociais e do sistema familiar reduzem ao máximo a competição na vida dos japoneses, vivido como vergonha e desonra e caso ocorra, atinge o giri para o nome.

A existência do on e de seus devidos pagamentos, incide diretamente sobre a idéia de felicidade individual e de busca de satisfação dos desejos. Os japoneses consideram o cumprimento das próprias obrigações a tarefa primordial da vida e para atingi-la aceitam o fato de sacrificar seus desejos e prazeres pessoais, atendendo aos princípios nipônicos nos quais os sentimentos humanos não devem interferir no cumprimento de suas obrigações, separando o território pertencente ao prazer daquele das obrigações.

Sabem que suas vidas podem tornar-se difícil e dura para que possa atender a todas as prerrogativas do chu, ko e giri, porém, os japoneses são preparados para enfrentar as dificuldades, afinal, a força de vontade pode se considerada a virtude mais admirada no Japão. Para atingir o grau de virtude e cumprimento de suas obrigações, deve-se recorrer ao treino da autodiscipina para desenvolver a boa conduta.

Isso não quer dizer que não se entreguem aos prazeres, pois isso não se constitui em algo proibido. No Japão, a natureza humana é considerada boa e digna de confiança, mas é necessário limpar as janelas da alma para que se possa agir com a propriedade necessária

em todas as ocasiões. O prazer e a felicidade são momentos aos quais os japoneses se permitem quando podem, sem colocar em risco suas obrigações.