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SEÇÃO III: QUE FILOSOFIA É CAPAZ DE SUSCITAR INTERDISCIPLINARIDADE?

6. A Filosofia e o seu caráter interdisciplinar

A realidade do currículo escolar é fragmentada. Cada disciplina corresponde a uma parte deste currículo, que funciona como uma espécie de colcha de retalhos.

Segundo Japiassu (1976): ‘’Os especialista, voltados sobre si mesmos, não podiam questionar os limites de seus trabalhos nem situar suas pesquisas em relação ao horizonte global do conhecimento” (p. 202).

Mas, para haver a interdisciplinaridade é necessário transcender as barreiras que restringem cada conhecimento a um confinamento para colocar em diálogo pressupostos e resultados. Para Japiassu,

o papel da Filosofia consiste em manter a abertura do espaço mental epistemológico, criando um horizonte comum que se recusa a todo confinamento. Ela não pode estar a serviço de uma epistemologia qualquer, pois é a epistemologia de todas as epistemologias (JAPIASSU, 1976, p. 204).

Ser a epistemologia de todas as epistemologias traduz a característica extracientífica da Filosofia. Ela está acima da ciência, não por uma questão hierárquica, mas por uma questão metodológica que a torna um ramo do saber cuja propriedade é a sua abertura epistemológica que a faz transcender cada ciência particular.

Portanto, um saber sobre o homem, capaz de integrar todas as explicações propostas pelas diversas ciências, não pode prescindir da filosofia. As ciências, ao escolher um ponto de vista, excluem os outros, e mutilam, assim, o objeto que querem explicar. De tanto fragmentar a totalidade do humano em setores estreitos, de tanto elaborar, para explicá-los, hipóteses prematuras sobre a “natureza”

humana, as disciplinas positivas acabaram por não mais perceber suas funções reais e por substituir as totalidades concretas por ficções (JAPIASSU, 1976, p. 203).

Então, cabe à Filosofia o resgate desta totalidade da realidade através da sua natureza aberta à universalidade. Isso significa que, enquanto as disciplinas restringem-se aos campos e objetos marcados rigorosamente pelos seus métodos e desta forma, fornecem sobre o homem um discurso parcial, a Filosofia parte de uma visão englobante do homem pois está voltada ao absoluto, não às particularidades.

Diz Soares (2013):

A filosofia não é particular, mas absolutamente universal e se estende sobre o todo da vida humana, compreendendo, assim, qualquer atividade científica e pensante. O domínio da filosofia, ou seja, a sua particularidade, é a universalidade (SOARES, 2013, p. 70).

Mas, como se caracteriza este domínio do universal? Significa que a Filosofia se interessa por assuntos bastante diferenciados, por tudo e, principalmente, que ela busca o sentido das coisas todas. Ela vai atrás das respostas para as perguntas mais complexas e radicais, como: o que são as coisas, os porquês mais fundamentais e elabora conceitos. A elaboração de conceitos é um movimento voltado para o absoluto, na busca do sentido geral. Interessar-se pelo sentido é empreender um esforço de compreensão dos fundamentos da realidade, estabelecendo critérios.

O verdadeiro conhecimento do homem é o trabalho do pensamento racional que nos impele e nos faz sentir a necessidade e o sentido do conhecimento do humano. Neste domínio, nenhuma disciplina pode tomar o lugar da Filosofia (JAPIASSU, 1976, p. 200).

Ao mesmo tempo que nenhuma disciplina pode tomar o lugar da Filosofia, cada disciplina em particular reserva em si o seu lugar insubstituível dentro de um currículo integrado. Diz, Japiassu: “A filosofia e as ciências do homem se situam numa relação de interdependência, cada uma delas, necessitando da outra, definem uma complementaridade” (JAPIASSU,1976, p. 205).

Se o foco da interdisciplinaridade é a troca e cooperação entre as disciplinas para ampliar as possibilidades de entendimento é fulcral o exercício da atitude religativa entre os saberes, pois não existe o interdisciplinar se não houver o

"disciplinar". E “a Filosofia é, por sua natureza, participante de todos os esforços de conhecimento de todas as disciplinas. Ela é naturalmente interdisciplinar” (LORIERI, 2013, p. 53).

Mas, como que efetivamente, a Filosofia funcionaria dentro de um projeto de ensino integrado, através de uma didática interdisciplinar? Ou, que papel a Filosofia poderia desempenhar nessa busca da unidade dos conhecimentos? Ou ainda, qual seria o domínio e o método da Filosofia que suscita interdisciplinaridade?

Segundo Soares (2013) o domínio seria a realidade concreta e o método da Filosofia seria a lógica do diálogo.

Japiassu (1976) discorrendo a respeito da necessidade de diálogo entre as disciplinas para que seja construída a interdisciplinaridade, se pergunta e, na resposta dos seus questionamentos encontramos a defesa que coaduna com o que Soares defende acima, a respeito da importância da lógica do diálogo filosófico como um método para interdisciplinaridade:

ora, se cada disciplina deve dialogar com as outras em função de um objeto comum, quem irá conferir-lhe esse objeto, destacando-a das características próprias às demais disciplinas? Enquanto disciplina particular, uma ciência é incapaz de fazê-lo por si mesma. (...) devemos afirmar a necessidade de uma disciplina capaz de caracterizar-se por propriedades que se imponham a todas as outras, ao mesmo tempo que lhe permitam dialogar umas com as outras no discurso interdisciplinar (JAPIASSU, 1976, p. 145).

A capacidade de diálogo se faz presente como uma forte característica da Filosofia porque este ramo do saber tem a totalidade em sua mira e interessa-se pela generalidade, uma vez que não se limita a um aspecto parcial da realidade, mas busca a compreensão do contexto. Assim, como uma visão “de fora” da ciência, a Filosofia consegue visualizar os pontos de contato possíveis entre as diversas disciplinas, assim como também coordenar e estruturar as informações fornecidas pelas disciplinas.

A Filosofia é um campo do conhecimento que questiona o próprio conhecimento, suas condições, possibilidades e limites. Como epistemologia das epistemologias,

poderá postular e favorecer todas as espécies de colaborações possíveis entre as disciplinas, até as colaborações propriamente capazes de lançar pontes entre elas, de integrá-las, de tornar móveis suas fronteiras, de tal sorte que se realizem trocas recíprocas e se produza um enriquecimento mútuo (JAPIASSU, 1976, p. 202).

Através do diálogo aberto pelos questionamentos é possível realizar pontes entre os distintos ramos do saber provocando uma interação frutífera entre as diversas disciplinas.

O princípio da autocrítica da Filosofia pode auxiliar as ciências a descobrir os objetos que lhe são comuns. Essa interação é suscitada pela capacidade filosófica de realizar crítica. Criticar é ponderar, refletir sobre a realidade e provocar questionamentos, a fim de que se ampliem as conexões de entendimentos. A crítica também é importante para não se crer na possibilidade de totalizarmos conhecimentos científicos. Ou seja, para lembrar que os resultados da ciência não são herméticos e intransponíveis, mas precisam permanecer abertos.

A Filosofia fornece os elementos de crítica e justificação dos fundamentos da ciência, desempenhando o papel de instância crítica, em busca do sentido e da justificação. Assim, a Filosofia é por natureza, explicativa. Ela engendra esforço de compreensão dos fundamentos estabelecendo critérios em busca da validação daquele conhecimento.

A coerência discursiva é algo a ser perseguido pela Filosofia. É necessário estabelecer critérios para validação e fundamentação daquele conhecimento. De acordo com Soares (2013) a Filosofia é “este fundamento, este absoluto, posto em sua liberdade, decidida a ver sempre de novo a realidade na coerência do seu discurso” (p.76).

Ainda a respeito da importância da explicitação do discurso Soares, afirma:

o discurso não é simplesmente uma justaposição de perspectivas e de interpretações. O discurso é estruturado como a realidade. Quando se toma consciência desta realidade, vê-se que a estrutura das estruturas não é a estrutura. E, se ele age no estruturado, esta tarefa não é jamais acabada. Mas a compreensão do estruturado que é a realidade aparece sempre como parcial e particular à vontade de compreender o todo da realidade (SOARES, 2013, p. 76).

É partir desta perspectiva estrutural que a Filosofia é imprescindível no contexto de uma educação integrada, pois este ramo do saber, interessado nas questões mais radicais compreende o contexto através da sua característica absolutizante próprio do seu caráter extracientífico. Além de situar os conhecimentos variados conforme uma estrutura, a Filosofia questiona a estrutura criada, abrindo possibilidade de abertura

para a criação e ampliação de conhecimentos, além da criação de novas estruturas.

E, como a autora assevera acima, esta tarefa não é acabada, mas está sempre aberta a novas possibilidades de realização.

Um campo do saber voltado para o todo tem o diálogo como importante ferramenta para estruturar e questionar o discurso. Diz Soares: “Onde se emprega a lógica do diálogo não se pode atingir resultados certos, uma vez que o que parece evidente para um, representa para o seu interlocutor um resultado de eterna contradição. A contradição pertence à filosofia” (SOARES, 2013, p. 69).

A capacidade dialógica da Filosofia se dá graças a sua natureza aberta é fundamental para o desenvolvimento do ensino integrado que tenha na interdisciplinaridade a metodologia de implementação. Mas, o diálogo filosófico é desenvolvido por meio de uma lógica. A lógica do diálogo filosófico considera desenvolver as ideias através de uma estrutura de pensamento ordenada, tendo na argumentação uma ferramenta importante de validação dos discursos.

No entanto, a lógica do diálogo filosófico é constituída de contradições e estas contradições, longe de deslegitimar a Filosofia como um campo do saber sem validade epistemológica, caracteriza a Filosofia enquanto um lugar potente onde se aprende a argumentar através do embate de ideias divergentes. Por isso, a autora afirma acima que “a contradição pertence à Filosofia”.

Entretanto, a contradição não se configura em falta de coerência interna.

Longe de ser incoerente, o discurso filosófico tem uma coerência interna. Mesmo que, entre cada Filosofia se pense diferente, e até mesmo se contradigam, o discurso de cada Filosofia é coerente em si mesmo. Ou seja, cada Filosofia tem a sua coerência interna.

Ainda que existam várias Filosofias com ideias, teses e argumentos bem distintos é possível dialogar e debater criando uma contradição. Este diálogo entre as diferentes formas e ideias é um solo frutífero para o surgimento de conexões entre os saberes e para o surgimento de novos saberes.

Assim, a lógica do diálogo não visa estabelecer resultados herméticos e intransponíveis, mas sim, proporciona o horizonte de abertura para o diferente. Desta forma, os saberes se interligam através da comunicação.

A Filosofia, tendo a lógica como método de explicitação do sentido, traz uma grande contribuição ao ensino que busca a integração entre os saberes, porque na

busca da conexão entre os conhecimentos realiza uma crítica dos mesmos, ampliando as possibilidades de interação, uma vez que aponta para o fato de que estes conhecimentos não são herméticos e acabados e que possuem brechas a serem exploradas por outras áreas e métodos, a fim de que ampliemos estes conhecimentos.

Mas, além de propiciar questionamentos radicais sobre os conhecimentos apresentados por cada ramo do saber através da crítica, para realizar esta crítica com potencialidade de provocar conexões são necessários critérios lógicos para ordenação e sistematização das ideias.

Desta forma, mais uma vez, a Filosofia apresenta sua contribuição ao contexto de uma educação voltada à integração dos saberes quando, além de servir para criticar os conhecimentos, apontando possibilidades de interações, ela serve para prezar pela construção de discursos que explicitem a justificação da coerência da interação entre as disciplinas.

Segundo Soares,

a filosofia é a busca de um discurso coerente que se dirige sobre o todo da realidade; o discurso filosófico não é nunca acabado; o ser finito e razoável que se decide a filosofar é interessado de modo determinado; que é a realidade a ser compreendida, é estruturado, compreensível; que a filosofia tem a ver com o que é sem exclusão alguma e sem preconceitos” (SOARES, 2013, p. 78).

O inacabamento do discurso filosófico é uma característica da sua natureza aberta tão salutar para suscitar a interação entre os saberes. Ao interessar-se pelo todo, uma vez que não se restringe a partes isoladas, a Filosofia atua como uma instância extra científica e crítica que provoca a conexão da realidade.

Embora tenhamos visto que a Filosofia tem um papel fundamental no trabalho do desenvolvimento de um ensino integrado, Japiassu assevera que:

O papel da filosofia não poderá jamais ser considerado como o de uma instância superior que viria ditar às ciências humanas as leis de seu método e de sua fundação interdisciplinar. Não compete a ela, trazer de fora, às pesquisas interdisciplinares, um conjunto de conceitos transdisciplinares já prontos (JAPIASSU, 1976, p. 205).

Todas essas capacidades da Filosofia não dão à ela uma posição hierárquica superior às demais disciplinas. Dentro de um trabalho interdisciplinar, as disciplinas

têm um grau de importância equivalente. Por isso, não caberia à Filosofia o papel de

“instância superior”, que dita autoritariamente as “leis e métodos de fundação interdisciplinar”. Ela não é uma disciplina supradisciplinar que traz do exterior os conceitos e métodos já prontos.

O princípio de interação é o carro chefe de todo o trabalho interdisciplinar que visa colocar as disciplinas para trabalharem fundamentadas em um projeto integrador entre os saberes. Este método integrativo é bastante frutífero para a construção de conhecimentos que façam mais sentido para os estudantes e que instiguem neles a vontade de saber mais.