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Duas gestões: a vigência e a crítica do modelo

III. 1.1 As novas tecnologias

III.1.2 A formação das redes no Brasil e na América Latina

De qualquer forma, a instalação de terminais para o acesso de Medline em outras cidades brasileiras era a face tecnológica de resultados obtidos na constituição de relações cooperativas com bibliotecas e centros de documentação. Neghme deu início a esta empreitada tão logo tomou posse, recorrendo regularmente à Fepafem e às associações nacionais de escolas médicas como recursos de mobilização dos dirigentes das instituições de ensino. As frentes de atuação eram duas e a rigor simultâneas: a brasileira e a latino- americana, ainda que a primeira fosse explicitada como sendo o lugar de realização de experiências piloto, para o aperfeiçoamento de formas de operação e sua aplicação futura na sua contraparte latino-americana.

No front brasileiro, a Bireme utilizou-se de duas estratégias. A primeira delas consistiu em estabelecer uma rede de cooperação com bibliotecas de institutos especializados que já possuíam acervos de coleções de periódicos capazes de

111 Ver a crítica elaborada por Abraham Sonis ao processo de implantação de Medline mais adiante na seção

complementar de modo expressivo a capacidade de cobertura temática alcançada pelas coleções da Bireme. A primeira unidade a se integrar ao empreendimento colaborativo liderado pela Bireme, tornando-se o núcleo do que passaria a ser designado como um subsistema especializado, foi a Seção de Documentação Odontológica da Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo - USP, conveniada em junho de 1971. A segunda parceira foi a Seção de Documentação da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia. Quando em 1974, a Bireme apresentou ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT/Finep, um projeto para o fortalecimento da capacidade operacional de sua rede de unidades colaboradoras, esta já incluía também as bibliotecas do Conjunto de Química e da Escola de Enfermagem, ambas da USP; o Instituto de Estudos e Pesquisas de Gastroenterologia, de São Paulo; e duas unidades da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro: a Biblioteca do Instituto Oswaldo Cruz e a Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública, na época denominada Instituto Presidente Castelo Branco 112. (Bireme, 1974, p. 3-4 e Anexos).

A outra estratégia adotada foi a de constituição de uma rede de “subcentros regionais” que pretendia a cobertura do território brasileiro mediante a sua divisão em regiões e a aplicação do que seria o princípio da “descentralização coordenada”. Com este intuito, Neghme organizou na sede da Bireme, em setembro de 1970, um amplo seminário que contou com a participação dos reitores das universidades de Brasília e da Paraíba, este na condição de Presidente do Conselho Nacional de Reitores; dos diretores das faculdades de medicina do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco e Bahia; de representantes das diretorias de ensino superior das universidades federais do Ceará, da Bahia e do Rio Grande do Sul; do Superintendente de Planejamento, Avaliação e Programas Especiais (Pappe) do Ministério da Saúde; do Presidente do Conselho Federal de Biblioteconomia; assim como dos chefes das bibliotecas das instituições de ensino mencionadas. Juntaram-se a estes o chefe da Zona V da Opas, responsável pelas atividades no Brasil, o Presidente e a Diretora Executiva da Abem e a equipe de profissionais da Bireme. (Bol. Inform. 2 (5): 1).

Neghme, portanto, mobilizou muito do capital político ao seu alcance para imprimir à iniciativa a maior legitimidade institucional possível. Ao final da reunião definiu-se uma lista de subcentros regionais, baseada nas bibliotecas melhor supridas de acervos, recursos humanos e instalações em cada região, e na possibilidade de serem estabelecidos

112 Só foi possível implementar o projeto FNDTC/Finep a partir de novembro de 1976, de modo que ele veio

compromissos preliminares com as autoridades acadêmicas presentes (Bol. Inform. 2 (5): 1).

Com o mesmo objetivo, de conferir a maior legitimidade institucional possível à iniciativa de montagem da rede de subcentros, a Bireme realizou gestões junto ao governo brasileiro e à Opas para que uma emenda fosse aditada ao seu convênio de criação, tornando-a autorizada a operar como coordenadora da rede especializada de bibliotecas biomédicas brasileiras junto ao Sistema Nacional de Informação Científica e Tecnológica - Snict, instituído em 1972113 (Bol. Inform., 5(4): 24 )

Modelado com o auxílio da Unesco, o Snict era uma forma de expressão nacional das diretivas previstas na constituição do Unisist, um arranjo em escala global de sistemas nacionais ou de sistemas internacionais especializados, todos da área de informação científica e tecnológica, associados de forma voluntária e com alto grau de autonomia. (Unesco, 1971; Miranda, 1977). A preservação dos sistemas especializados e das suas áreas de competência, como já vimos, teria permitido à NLM aproximar-se um pouco mais da Unesco em assuntos programáticos. Em escala nacional, o Snict concedia os espaços necessários para a movimentação institucional da Bireme e, eventualmente, poderia ser mais um recurso para o seu fortalecimento.

Ao final da gestão de Neghme, em 1975, os subcentros para dez regiões brasileiras e para as duas principais áreas metropolitanas estavam todos definidos e conveniados 114. O sistema geral - com a integração de subcentros regionais e de subsistemas por especialidades à Bireme - foi conceituado como sendo um sistema ordenado pela

113 O Snict era parte do Plano Básico de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico, que por sua vez

integrava o I Plano Nacional de Desenvolvimento, também de 1972. Gerenciado pelo CNPq admitia a existência de centros autônomos funcionado como coordenadores de sistemas por especialidades. Ver o Capítulo II, segmento b. Sobre o Snict ver também Marcondes, 1998; Miranda, 1977 e Pinheiro, 1997.

114 Os subcentros e áreas regionais então definidos eram: Biblioteca Central da Universidade de Brasília, o

primeiro a conveniar-se, em 22 de agosto de 1972, para DF e GO; Biblioteca Central da Universidade Federal da Bahia, para BA e SE; Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (CE, PI e MA); Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (MG); Núcleo de Documentação da Universidade Federal Fluminense (RJ e ES); Biblioteca Central da Universidade Federal do Pará (PA e AP); Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Paraná (Hospital das Clínicas) (PR e SC); Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (PE, AL, PB, RN); Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS); Biblioteca Central da Universidade Federal do Amazonas (AM); Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, para a Região Metropolitana da capital do estado; e a Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, também para a Região metropolitana da capital. (Bireme, 1974, p. 3-4 e Anexos)

combinação dos princípios “escalar geográfico” e por especialidade115. Sua arquitetura, hierarquizada, estabelecia que cada subcentro ou subsistema coordenasse um conjunto de bibliotecas ou centros de documentação locais, estes sim as portas de entrada do usuário. Desta maneira, o funcionamento ideal, por exemplo, da organização escalar geográfica, previa que as possibilidades de atendimento de uma dada consulta fossem esgotadas, pela ordem: (1) na unidade de recepção da solicitação; (2) nas unidades de uma área vizinha mais ou menos imaginada, mediante consulta realizada pela unidade receptora116 ; (3) no subcentro regional, único autorizado a demandar a Bireme; (4) na Bireme; (5) nos demais subcentros, em uma operação mediada pela Bireme; (6) na National Library of Medicine , através exclusivamente da Bireme; e (7) em outras unidades internacionais, também via Bireme (Cordeiro, 1973, p. 7-9). Uma vez obtida a resposta, esta era envidada diretamente à unidade receptora. Em cada uma das passagens a demanda poderia ser transferida para um subsistema especializado, dependendo do seu teor.

No âmbito latino-americano a estratégia inicial de Neghme foi procurar apoio nos conselhos nacionais de ciência & tecnologia. Defendeu sistematicamente, nas páginas do Boletim Informativo da Bireme, em artigos e palestras, a criação e/ou fortalecimento de centros e sistemas nacionais de informação científica e tecnológica no âmbito dos conselhos ou sob sua chancela (Bol. Infor., 1 (4): 1; e 2 (1): 3).

Neghme imaginava poder reproduzir no continente a estratégia adotada na constituição da rede brasileira. Neste sentido, pretendia promover a criação de centros nacionais especializados em biomedicina, apoiados pelos conselhos de C&T e integrados programaticamente aos centros nacionais de informação científica e tecnológica, à semelhança do papel que a Bireme acumulava no Brasil, frente ao Sistema Nacional de Informação Científica e Tecnológica - Snict, paralelamente às suas responsabilidades internacionais. Nesta matéria, portanto, a aliança pretendida por Neghme novamente correspondia às expectativas da Unesco quanto aos formatos institucionais adequados de sistemas nacionais de informação científica e tecnológica, aproximando-os das burocracias nacionais de gestão de ciência & tecnologia, que foram criadas mundo afora por indução

115 A conceituação foi feita por Mário Chaves, Diretor adjunto da Fepafem e membro do Comitê Científico

Assessor da Bireme. Ele elaborou um quadro esquemático que foi fartamente utilizado em publicações oficiais, projetos e artigos assinados pelo Diretor e alguns de seus técnicos. Ver e. g. Bol. Inform. 7 (1): 7; 4 (2) : 1; Cordeiro, 1973, anexo; .

persistente da própria Unesco117. Ao mesmo tempo, Neghme reservava para a Bireme o papel de coordenadora de um sistema internacional latino-americano no campo específico da informação em medicina e ciências biomédicas (Bol. Inform. 3 (2): 1).

Com esta orientação, Neghme visitou, no primeiro semestre de 1970, os presidentes dos conselhos da Argentina, do Chile, da Venezuela e do Peru. No segundo semestre patrocinou a realização de seminários conjuntos de bibliotecários e docentes de medicina em Montevidéu e Cali. No mesmo ritmo, reuniões idênticas foram realizadas no ano seguinte na Argentina, no Chile, e na Venezuela, um movimento que se repetiu nos anos imediatamente posteriores, com a realização de segundos e terceiros encontros nestes países. Em junho de 1974 a série de seminários alcançou o México (Neghme, 1975, p. 176 e Bol. Inform. 2 (1): 4; e 3 (2): 2).

Em 1971, mais uma vez recorrendo ao movimento associativo de escolas médicas como via de mobilização de docentes e instituições, a Bireme promoveu a realização de um estudo que pretendia dar início ao estabelecimento de um diagnóstico sobre as condições existentes nas principais bibliotecas médicas do continente, repetindo um procedimento que já havia sido feito no Brasil no último trimestre de 1970, com o auxílio da Associação Brasileira de Escolas Médicas. Os resultados alcançados na pesquisa revelaram uma já esperada coleção de debilidades: acervos monográficos desatualizados, número de assinaturas de periódicos e de obras de referência inadequado, coleções incompletas, instalações antigas e mal equipadas, pessoal reduzido, sem formação profissional ou treinamento 118.

No mesmo ano, a Opas e a Bireme apresentaram ao Pnud, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, um ambicioso projeto destinado a produzir o respaldo financeiro para um movimento de reforço institucional e operacional dos centros nacionais de informação biomédica. O apoio à Bireme, no entanto, só foi aprovado pelo Pnud no início de 1974, em valores muito aquém do inicialmente projetado e com um plano de investimentos concentrado no Brasil. Os termos do plano de 1971 evidenciam, no entanto, de que maneira a rede latino-americana pretendia repetir em cada país o modelo “escalar geográfico” adotado no Brasil. A diferença era que neste caso a Bireme desempenharia

117 Este tema foi tratado em mais detalhes no Capítulo I, segmento 3, aprofundando no terreno da

Informação em C&T a análise realizada por Marta Finnemore (1992).

118 Não foi encontrado o relatório completo destes levantamentos. Sínteses parciais estão disponíveis em

apenas o papel de coordenador latino-americano, sem as funções nacionais que exercia no Brasil (Bireme, 1971, p. 21-29) 119.

Em 1975, em sua última edição na gestão de Neghme, o Boletín Informativo da Bireme (7(4): 3-4) apresentou um panorama sobre a construção da rede latino-americana. A estratégia de aproximação com conselhos nacionais de pesquisa havia resultado na assinatura de um acordo formal entre a Opas e os governos nacionais do Chile, da Venezuela, do Uruguai e do Peru, definindo-se como centros nacionais, respectivamente, as bibliotecas da Faculdade de Medicina da Universidade do Chile (sede norte), do Instituto de Medicina Experimental da Universidade Central da Venezuela, da Faculdade de Medicina da Universidade da República do Uruguai e o Centro Nacional de Informação Biomédica do Colégio Médico do Peru. Noticiou-se que se encontravam em fase final de redação e assinatura os convênios com os governos da Colômbia, do Equador, da Argentina, da Bolívia e do Paraguai. Na Argentina o papel de coordenação caberia à Biblioteca da Faculdade de Medicina da Universidade de Buenos Aires; na Bolívia ao Centro Nacional de Documentação Científica e Tecnológica e no Paraguai à Biblioteca da Faculdade de Ciências Médicas. No Equador e Colômbia permanecia uma indefinição.