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Como assinalei ao final do Capítulo II, a gênese da Bireme resulta na instalação na América Latina de uma biblioteca regional médica segundo os exatos moldes preconizados pela National Library of Medicine. Isto feito, o que se seguiu foi a história de uma recepção. Uma remodelagem em dois tempos do conceito ou do desenho original, segundo as aspirações e convicções daqueles que tiveram a oportunidade e a responsabilidade conduzir o projeto institucional da Bireme. Estas aspirações e convicções se constituíram e manifestaram segundo as circunstâncias e de seu tempo e as possibilidades de cada personagem.

As circunstâncias do tempo, como vimos, tiveram a ver com a afirmação e o declínio da confiança no poder libertador do desenvolvimento, como um processo cumulativo, irremediável e distribuído; capaz de proporcionar condições crescentemente melhores de vida à população do planeta, no rastro da transferências de capitais, conhecimentos e técnicas, da generalização da industrialização e da urbanização.

Conhecimento e tecnologia - no caso da saúde - experimentaram sua forma particular de declínio. Por um lado tornaram-se visíveis as quimeras em torno do poder preventivo dos artefatos biomédicos e da pretensão de domar o mundo da natureza pela erradicação generalizada de doenças; de outro, quando os artefatos curativos se mostraram particularmente eficazes, o fizeram de forma socialmente iníqua. Numa terceira face, se tornou patente que a simples transferência de equipamentos e processos de base tecnológica, de cunho modernizador, se mostrou insuficiente para modificar estruturas reprodutoras de desigualdades.

Na saúde, um outro componente contribuiu para um certo sentimento de frustração ao final do período coberto por este trabalho, em oposição ao otimismo desenvolvimentista de caracterizara o seu início: o Estado, de quem se esperava um protagonismo definitivo na melhoria das condições de vida das populações, viu esgotadas as suas fontes de

financiamento. A crise do endividamento e o ajuste fiscal empurrariam a Saúde para Todos no ano 2000 em direção aos constrangimentos de uma razão de mercado.

Tal como a saúde e a ciência & tecnologia em saúde, também a informação em ciências da saúde percorreu a seu modo esta curva de transição do movimento mais geral do desenvolvimento. Da mesma forma a Bireme na condição composta de aparato e arena.

Como aparato a Bireme foi instrumento e manifestação de uma vontade, de uma autoridade e uma competência em vastíssima medida originárias “do centro”. Não apenas porque residia na NLM os estoques e os recursos de conhecimento, métodos e tecnologias necessários. Como assinalei, era o próprio fluxo do sistema de informação que possuía uma natureza centrífuga, da mesma forma que os valores e significados subjacentes ao regime de informação realimentavam o centro como lugar de poder.

Como aparato, a Bireme foi também “um centro”, na media em que a partir dela ações e missões de indução - de “teaching” como sugere Marta Finnemore - foram empreendidas no sentido de produzir a sua capilaridade nas regiões brasileiras e nos países da América Latina. Como aparato a Bireme emitia uma norma: todas as bibliotecas médicas ou de saúde deveriam participar do sistema de informação, integrar o arranjo em forma de rede e tornarem-se capazes de proporcionar aos seus usuários uma informação útil porque atualizada e proveniente dos mais avançados centros produtores de conhecimento. Este mandato - de fazer “vingar” a norma -, como vimos, esteve presente em todo o período narrado. E presente como estratégia central e crise, uma crise que em última instância poderia comprometer a permanência do projeto enquanto tal.

Como arena - mas sem perder a condição de aparato - a Bireme foi lugar de expressão de ideologias, poderes, concepções, anseios, interesses, cujas manifestações culminaram por produzir na concepção do projeto tanto ajustes, quanto reconfigurações de sensível radicalidade. As fontes primárias destes componentes (ideologia, interesses, etc.) foram localizadas nas instituições, no movimento mais geral da saúde, na sua expressão no âmbito das posições presentes no movimento da educação médica e nas concepções sobre assistência, cooperação técnica e adequação de tecnologias.

A história da recepção, da remodelagem, sobre as quais falei na abertura destas considerações finais, foi em boa medida uma história da captura, por esta inscrição na saúde latino-americana, da elaboração discursiva sobre o projeto, antes determinada pela autoridade da NLM, como instância de poder técnico e político. Esta mudança no plano

discursivo fez-se acompanhar, no terreno prático, de uma efetiva modificação da agenda programática e técnica da Bireme. Ela resultou, ainda, em alterações importantes na composição do núcleo de referencias políticas na condução institucional do projeto. Neste caso implicou, por um lado, em um nítido deslocamento da NLM para uma posição de menor protagonismo e, de outro, no virtual afastamento da Fepafem de qualquer posição de influência.

Esta captura, estes deslocamentos, todavia, não se fizeram de modo uniforme no tempo. Minha narrativa sugere que no período de Amador Nehgme, seus vínculos com a Fepafem, sua adesão à corrente da Medicina Integral em seus matizes mais estritamente liberias, sua percepção da biblioteca (da Bireme e da biblioteca no interior da faculdade de medicina) como infra-estrutura docente, produziu um ambiente de recepção conservadora do modelo da NLM. No mesmo sentido, sua visão sempre positiva acerca das aquisições da ciência e tecnologia no campo biomédico, transferida para a esfera das tecnologias da informação, o fizeram perseguir a implantação de Medline como a uma espécie de cálice mítico.

Isto não significa, como procurei assinalar, que Neghme não tenha empreendido iniciativas que tencionaram as limitadas fronteiras do modelo concebido em Washington. Estas iniciativas apenas não foram capazes de produzir modificações especialmente relevantes na concepção original, a ponto de alterar um possível impacto da Bireme frente ao funcionamento do regime de informação em ciências da saúde. Este continuaria sendo, grosso modo, aquele já descrito ao final do Capítulo II.

Por outro lado, Neghme pode ser designado aqui, sem favor algum, um tenaz combatente pela montagem das redes nacional e internacional de bibliotecas colaboradoras. Ao final da sua gestão, o progresso no Brasil era visível. Na América Latina, militância não faltou e a Fepafem foi sistematicamente acionada como instância catalisadora de apoios vários. No âmbito regional, o seu poder de indução, de promoção da norma, de “teaching” se mostrou relativamente eficaz pelo número de acordos formais assinados e em negociação. Era a mesmíssima situação, porém, algo como seis anos depois, ao final da gestão de Abraham Sonis. Pouco se avançara além do ponto alcançado por Neghme.

Muito provavelmente, a incapacidade de expandir a implantação de Medline para os outros países - além das dificuldades no Brasil - reduziu o poder de convencimento em

torno de um sistema de informação conceitualmente dependente deste tipo de tecnologia. Era a tecnologia como drama. Anos mais tarde, na segunda metade da década de 80, quando a Bireme já desenvolvia suas próprias metodologias e tecnologias e dava início à sua transferência aos paises da região, o componente tecnológico voltaria a ser uma solução.

Na gestão de Abraham Sonis - e nos resultados produzidos pelo Long-Range Group, sobretudo a partir das contribuições de José Roberto Ferreira e Kerr White -, a recepção ao modelo da NLM assumiu indiscutivelmente cores mais radicais.

A proximidade de Sonis ao tema da integração entre a docência e atenção à saúde; a sua concepção crítica acerca do papel da tecnologia; sua compreensão sobre as relações de assistência/cooperação técnica internacional; a sua reiterada afirmação da atenção em saúde e da capacidade de transformação das condições de saúde da população como sentido último das estratégias que concebeu; seu desejo de integrar - de fato e radicalmente - a informação em ciências da saúde relativa à pesquisa, à docência, à atenção e à gestão de serviços; e a sua compreensão universal dos públicos produtores e consumidores de informação a serem incluídos no sistema (algo claro principalmente em relação aos trabalhadores e gestores da saúde, mas que não deixou de mencionar - pelo menos uma vez - os usuários), são os elementos que proporcionaram a formulação de enunciados e diretrizes que introduziam alterações radicais na concepção do sistema de informação a ser desenvolvido sob a liderança da Bireme.

A radicalidade da proposição produziria, quando implementada, uma profunda alteração no regime de informação em ciências da saúde e indiquei estas transformações potenciais ao longo do Capítulo III. Nesta conclusão, vale reiterar que as principais alterações - de conteúdo, dos públicos, de lugares e sujeitos, de processos e da própria base técnológica - eram elas mesmas percebidas como parte de uma estratégia maior dirigida à transformação do setor saúde em seu conjunto.

A formulação de Kerr White tornou mais acabada a analogia entre os níveis de complexidade na atenção à saúde e as necessidades de informação em saúde. E esta analogia é, em si mesma, uma poderosa indicação de como era um imperativo produzir um enquadramento da informação em ciências da saúde nos termos da meta de Saúde para Todos no ano 2.000 e da estratégia da atenção primária à saúde. De como esta orientação governava as percepções e os anseios.

Documentos de arquivo e outras fontes