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2. CONCEITO DE FORMAÇÃO E O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA FORMAÇÃO NO CONTEXTO DE TRABALHO

2.4 A formação de professores no Brasil: trilhas e itinerâncias

A partir das reflexões construídas acerca da formação, numa caminhada originada no estudo epistemológico do termo, passando por sua construção histórica, sua polaridade e relação com o mundo do trabalho, discutirei, a seguir, as tendências político-pedagógicas da formação de professores. Meu objetivo com estes estudos foi analisar como, historicamente, as discussões a respeito do assunto foram se delineando no Brasil a partir da década de 1970. A escolha de iniciar estas

reflexões a partir dessa década se deu em razão de ser esse o período em que começou a se travar o debate mais denso a esse respeito.

Segundo Candau (1982), na década de 1970, a maioria dos estudos sobre formação de professores privilegiava a dimensão técnica, a partir da influência da psicologia comportamental e da tecnologia educacional. Assim sendo, a grande preocupação, no que se refere à formação de professores era a instrumentalização técnica. Concordando com esse posicionamento, Feldens (1984, p. 17) afirma que nesta época havia um caráter funcionalista de educação na qual a "experimentação, racionalização, exatidão e planejamento tornaram-se questões fundantes na formação de professores".

A partir da segunda metade da década de 1970 inicia-se um movimento de oposição e rejeição aos enfoques técnico e funcionalista então predominantes. Segundo Candau (1982), essa movimentação ocorreu por influência de estudos de caráter filosófico e sociológico sobre o papel da Educação, em que ela passa a ser vista como uma prática social em íntima conexão com o sistema político e econômico vigente. Feldens (1984) ratifica que essas teorias consideravam a escola como reprodutora das relações sociais. Essa discussão chega ao campo educacional influenciando a formação de professores por meio da literatura e das próprias instituições formadoras.

Nos últimos anos da década de1970, começa a aparecer um novo paradigma, influenciado pelos estudos marxistas, que considera a relação que se estabelece entre os determinantes históricos, políticos, sociais e a Educação

Esses estudos, na década de 1980, já apresentam uma forte crítica à forma neutra, isolada e desvinculada de aspectos político-sociais que vem fundamentando a formação de professores. Essa discussão ganha força e espaço no Brasil entre os educadores e estudiosos do campo educacional, acalorando o debate. Esse movimento passa a privilegiar dois princípios, o do caráter político da prática pedagógica e do compromisso do educador com as classes populares. Esses princípios expressam o próprio movimento, da sociedade brasileira, de superação do autoritarismo implantado a partir de 1964 e da procura por caminhos que levem à redemocratização do país.

Entendo que não se trata de trocar uma concepção de formação por outra e sim compreender que o movimento de formação de professores pode estar aliado, sempre, ao debate sobre as necessidades da educação. Neste sentido, o debate da

época era sobre a função mediadora da educação como prática social global. Nesta direção, Pereira (2006, p. 27) ressalta o caráter político da prática pedagógica dizendo que

[...] a importância do professor em seu processo de formação é conscientizar-se da função da escola na transformação da realidade social dos seus alunos e ter clareza da necessidade da prática educativa estar associada a uma prática social mais global.

Nessa dimensão, o fundamental era formar o educador, enfatizando o caráter político da formação desse profissional. Na segunda metade dos anos 1980 o debate presente foi a respeito da competência técnica versus compromisso político. Esse debate, um dos mais polêmicos do período, foi travado por meio das teses de doutorado dos professores Paolo Nosela e Guiomar Namo de Melo, ambos orientados pelo professor Dermeval Saviani.

Nesse contexto surgem os estudos do professor Miguel Arroyo, principalmente o texto "Quem de-forma o profissional do ensino", publicado em 1985, que trazem para o centro da discussão o ser professor, enquanto coletividade e singularidade, fazendo a denúncia do processo de (de)formação do professor brasileiro, destacando a desvalorização do seu trabalho, as condições objetivas de trabalho e a própria condição de vida desses profissionais, inclusive os baixos salários que recebem. O autor critica a ênfase dada à formação como maneira de garantir a qualidade do ensino, sem ao menos mencionar os processos "deformadores" e "desqualificadores" aos quais os profissionais estão submetidos. Não se discutem nos cursos de formação de professores, suas condições de trabalho e sua própria profissionalização.

Outra discussão relevante diz respeito à relação teoria e prática na formação do professor, recorrente até os dias de hoje. Na década de 1980, uma grande influência nesse debate foi o trabalho de Vázquez, de 1977, "Filosofia da Práxis". Além dele as autoras Candau e Lelis (1983), ao realizarem estudos referentes à relação teoria e prática, perceberam que a forma como isso tem ocorrido é sempre por meio da separação entre esses elementos. Eles, às vezes, podem ser considerados componentes isolados e mesmo opostos ou, conforme outros pontos de vista, polos separados, mas não opostos. As autoras ainda afirmam que essa

maneira dicotômica e hierarquizada de separar teoria e prática se relaciona, em última instância, com a perspectiva positivista de conceber o mundo.

Segundo Pereira (2006), no início dos anos 1990 as mudanças ocorridas no cenário internacional influenciaram o pensamento educacional e, mais especificamente, a questão da formação de professores. Novos paradigmas surgem, voltando-se crescentemente para a compreensão dos aspectos microssociais, destacando e focalizando o papel do agente-sujeito. Neste contexto, privilegia-se a formação do professor pesquisador, ou seja, ressalta-se a importância da formação do profissional reflexivo, aquele que pensa-na-ação, cuja atividade profissional se alia à atividade de pesquisa. Neste sentido, novos debates se impõem, dentre eles o sobre a relação ensino-pesquisa na formação de professores.

Vários autores defendem a formação do professor pesquisador, podendo ser destacadas as contribuições de Donald Schön (1992), que afirma que o profissional que "reflete na ação" torna-se um pesquisador no contexto prático. Nessa direção, as autoras Ludke e André (1986) defendem a ideia de que a pesquisa não se realiza em uma estratosfera situada acima da esfera de atividades comuns e correntes da vida do ser humano. Soares (1993) destaca a necessária interação, na formação do professor, entre a produção do conhecimento (pesquisa) e a socialização do conhecimento (ensino). Essa interação, quando refletida e tensionada, produz um novo conhecimento a respeito da prática.

Uma das marcas dos anos 1990 foi o crescimento dos estudos acerca do cotidiano escolar, nos quais estão explícitos os saberes escolares, saber docente e formação prática do professor. Esses estudos voltaram-se para as análises sobre o saber docente, e se direcionam para o estudo dos processos através dos quais se desenvolve a formação prática do professor durante o desempenho de sua atividade profissional. Eles buscam compreender como, no cotidiano da escola, no dia a dia de sua atividade, o professor vai adquirindo um saber sobre sua profissão. Nesta direção o trabalho de Tardif (2002, p. 228) esclarece que esses saberes

[...] formam um conjunto de representações a partir das quais os(as) professores(as) interpretam, compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as suas dimensões. Eles constituem, poder-se-ia dizer, a cultura docente em ação.

Essa tendência considera a atuação do professor uma questão central e passa a valorizar os processos de formação que asseguram a “voz ao professor”, buscando identificar os seus saberes, a construção de sua identidade profissional e a constituição de sua profissionalização. Nesta direção Nóvoa (1992) enfatiza o quanto o modo de vida pessoal interfere na prática profissional. Para ele, esse movimento surgiu "[...] num universo pedagógico, numa amálgama de vontades de produzir outro tipo de conhecimento, mais próximo das realidades educativas e do cotidiano dos professores” (1992, p.16).

Esses estudos me levam ao encontro de duas “compreensões” até então pouco divulgadas pela academia. A primeira reconhece que o trabalho do professor tem uma especificidade que não pode ser reduzida à sua função técnica e funcionalista. Como afirma Perrenoud (1993, p. 25), ensinar é fabricar artesanalmente os saberes, tornando-os ensináveis, exercitáveis e passíveis de avaliação no quadro de uma turma, de um ano, de uma comunicação e um lugar. Fica claro, para mim, que o profissional que produz esse conhecimento é o professor que, no seu dia a dia, vai produzindo esses saberes.

A segunda compreensão é a percepção do sujeito professor enquanto ator social que, na medida em que vai construindo um conhecimento a respeito do seu trabalho, vai desenvolvendo a capacidade de se ver diante do mundo e tenta, no seu tempo-espaço, reconfigurar sua própria existência.

Estas constatações me desafiaram a pensar que os processos formativos precisam considerar a prática pedagógica como lócus de construção/desconstrução de saberes profissionais, e na qualidade dos conhecimentos, atitudes e práticas que vêm sendo trabalhados nos cursos de formação inicial. Não basta considerar que os professores “sabem alguma coisa”, é preciso ir adiante, procurando conhecer o que eles já sabem, para então estabelecer uma relação com os seus saberes, e a influência de diferentes fatores presentes na sua formação.

Percebi que, a partir da década de 1990, estudiosos brasileiros têm desenvolvido pesquisas a respeito de temas relacionados à pratica docente, ao processo ensino-aprendizagem e à relação teoria e prática no cotidiano escolar.

Neste movimento vou me aproximando da ideia de que os professores produzem saberes em suas práticas baseados em suas experiências e nos contextos em que atuam.