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2. CONCEITO DE FORMAÇÃO E O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DA FORMAÇÃO NO CONTEXTO DE TRABALHO

2.1 A formação: noções

O primeiro teórico a realizar estudos sobre o termo “formação” foi Platão, para esse filósofo da Grécia Antiga, a educação consistia em um conjunto de mandamentos e preceitos morais (regras e normas de conduta social) e de conhecimentos profissionais (as regras e artes dos ofícios, chamadas de techne pelos gregos). A formação consistia, portanto, na lapidação interior do ser humano, tendo em vista a forma ideal.

Diferentes autores apontam que o termo formação constituiu-se como a busca de uma imagem ou forma (Bild, eidos) interior ideal ou arquetípica, claramente definida por cada cultura, relacionando a formação com a atitude interior do ser humano.

Gaston Pineau (1988) afirma que o termo formação surgiu na língua francesa, antes do termo “educação”, entre os séculos XII e XIV, e que desde o século XIX as acepções deste termo são muito amplas.

Cristine Josso (2010), sistematizando as definições atuais do conceito de formação, afirma que os diversos autores que refletiram sobre ele concordam com a ideia de que o aprendiz desempenha um papel decisivo em sua formação, e que esses processos formativos emergem de três perspectivas ou ênfases gerais: 1) as que pontuam a ação educativa, a aprendizagem de competências e os conhecimentos, e dão pouca atenção ao processo formativo do sujeito; 2) as que vão além da questão do processo de aprendizagem e tratam o conceito de formação como um processo de mudança; 3) aquelas que tratam o conceito de formação como um projeto de produção de vida com seu sentido.

Couceiro (2001) citando GOGUELIN, lembra que o campo semântico de “formar” constrói uma constelação original, praticamente independente da de “ensinar”. Formar evoca uma intervenção profunda e global que arrasta/provoca um desenvolvimento do sujeito nos domínios intelectual, físico e, ou moral, bem como, uma mudança nas estruturas que correspondem a estes domínios, de tal modo que esse desenvolvimento não é um mero acréscimo colado à estrutura já existente, mas integrado em novas estruturas. Para esse autor, o conceito de formar aponta para finalidades que “não se esgotam nem na aquisição de saberes, nem no incremento de competências técnicas e profissionais, nem mesmo no mero desenvolvimento das potencialidades da pessoa” (COUCEIRO, 2001, p. 15-16), mas

que a formação constitui-se através da globalidade da sua existência e de sua inserção nas diferentes esferas da vida. Nessa direção, Pineau (1988) afirma que formação é uma intervenção muito completa, muito profunda e muito global, na qual o ser e a forma são indissociáveis.

O sentido da formação resgatado por esses autores contemporâneos remete- me, de novo, ao conceito platônico de formação e ao conceito medieval alemão de

Bildung, retomados pelos romantismos germânico e geral apresentados a seguir.

Gadamer (1999) encontra a origem da palavra Bildung na mística medieval. Segundo ele, o termo continua presente, ao longo dos séculos, percebido por ele inclusive na mística barroca. No século XVIII, Herder a contextualiza quando a vincula ao conceito de cultura. Para ele, a formação é mais elevada e interior, é o modo de perceber que procede do conhecimento e do sentimento de toda a vida espiritual e ética que enriquecem a sensibilidade e o caráter.

A origem na mística medieval dá à noção de Bildung uma grande densidade filosófica, e esta equivale a imitação. No contexto espiritual é que ela encontra sua primeira inscrição, pois a Bildung está no centro da teoria da imagem de Deus. Ela designa o movimento pelo qual o cristão dá uma forma à sua alma, esforçando-se para nela imprimir Deus.

Para Sommerman (2003), foi a partir dessa origem místico-filosófica que o conceito de Bildung chegou aos pensadores alemães do fim do século XVIII: pensadores como Lessing, Herder, Humbolt, Schiller e outros que o transformaram, mas sem tirar dele essa dimensão de interioridade e profundidade. Voltaram, de algum modo, ao conceito platônico e pré-cristão de formação, e, assim, o universalizaram, dando-lhe uma dimensão transcultural. Wilhelm Von Humboldt (1767–1835), filósofo e educador alemão, foi considerado o grande teórico da

Bildung, mas pode ser afirmado que Herder, ao combater o racionalismo iluminista,

fez com que o conceito de formação (Bildung) se tornasse o pensamento maior do século XVIII, nos diz Sommerman.

Ainda para este autor (2003) foi Kant (1724–1804) que, ao resgatar o ideal pedagógico grego e reconhecer que o ser humano era o único ser vivo que poderia e precisava ser educado, dividiu esse processo em quatro etapas: cuidado, disciplina, instrução e formação. O cuidado refere-se às atenções que devem ser dadas ao recém-nascido (alimentação, higiene e amor). A disciplina é tratada como um processo de transformação do lado selvagem ou animal em humano, conduzindo

a criança a fazer uso da razão, a adquirir o autocontrole e seguir as normas sociais consideradas corretas. A instrução corresponde à educação básica, através da qual são transmitidas as técnicas e práticas que possibilitarão à pessoa se mover no contexto histórico-social em que está inserida. A última etapa, a da formação, corresponde ao ensinamento Kantiano que trata do processo de “moldagem” através do qual o educador procurará desenvolver no educando um “padrão de excelência”, ou seja, uma consciência moral, calcada na razão e na justiça.

Como pode ser visto, o conceito de Bildung, para Kant, não tem uma acepção tão forte como teve o de formação para Platão e para os místicos alemães do século XIII, que forjaram o termo Bildung, e para vários outros autores do romantismo, uma vez que, para eles o termo se apoia numa cosmologia, numa antropologia e, consequentemente, numa epistemologia menos amplas ou menos multidimensionais.

Os ideais suscitados por esse conceito de formação inspirou um “novo” gênero literário: o Bildungsroman, o romance de formação. O romance Wilhelm

Meister6, de Goethe, é um exemplo paradigmático desse gênero literário. Segundo Bárbara Freitag (2001, p. 85),

A Bildung não se refere aqui a um simples desenvolvimento de aptidões e faculdades do herói; a formação refere-se a um processo de construção e realização de um Eu em ascensão, esforçando-se em adquirir consciência do mundo e de apreendê-lo em sua essência. Em outras palavras, trata-se da busca incansável do homem pela proximidade com o seu Criador, no esforço de desvendar o porquê e para que da vida.

Veja o quão próxima essa noção de Bildung está dos romances de formação do século XVIII, e também da concepção platônica de formação do ser humano em direção à união com a sua forma arquetípica. Essa mímesis, essa imitatio, para a qual o Bildungsroman serve de suporte, é análoga àquela da formação grega antiga, mítica e mística, através das quais se buscava imitar os heróis arquetípicos para chegar ao mundo totalmente dominado pela virtude e pelo bem – o mundo dos deuses, aquele das formações heróicas, dos iniciados, vividos pelos membros das

6

O romance é dividido em oito livros, dos quais cinco remetem a uma peça teatral (Theatralische Sendung). Essa remessa teatral surgiu entre 1777 e 1786, mas apenas vinte anos depois foi publicado como romance.

cavalarias do Ocidente e do Oriente, daqueles que tomam a obra do monge alemão Tomás de Kempis, século XV, Imitação deCristo, como exemplo. Há, em todas elas,

um modelo, um herói que venceu as provas, que atravessou os níveis de realidade e de percepção perdidos pela humanidade “comum”, que reencontrou a estatura do homem perfeito (ou é a encarnação do homem perfeito, como no caso de Cristo) e pôde entrar de novo no Paraíso, cujo caminho, portanto, deve ser imitado pelo nobre, pelo cavaleiro, pelo monge ou pelo artesão.

Essas breves considerações a respeito da formação me permite ver, por um lado, a profundidade do processo formativo que pode ser estimulado pelo conceito de formação, que abarca diferentes níveis do sujeito e, por outro, perceber as consequências inadequadas dos processos formativos que se apoiam em conceitos de formação demasiadamente estreitos e reducionistas, ou que remetem a modelos ou ideais a serem imitados. Tal fato tem sido constatado, por exemplo, nas políticas de formação de professores, na qual se percebe claramente a presença de uma formação apoiada apenas na instrução, no ensino e nas ideologias reducionistas.

Sommerman (2003) afirma que Max Horkheimer critica a Bildung, enquanto formação da personalidade voltada para a interiorização afirmando que esta formação repele o vínculo com a civilização, o social, e reforça o individualismo. E que Horkheimer postula um caminho contrário ao da Bildung, pois não nos tornamos cultos, formados, apenas pelo que fazemos de nós mesmos, e sim pela dedicação à coisa, seja no trabalho intelectual, seja na práxis consciente de si mesma, de modo que a formação de si só ocorreria, de fato, pelo outro, seja este outro uma coisa, um indivíduo ou a sociedade.

Historicamente, como vimos, o conceito de formação como busca de uma imagem ou forma (Bild, eidos) interior ideal ou arquetípica, claramente definida por cada cultura, está mais relacionada com a dimensão interior. Vejo que a profundidade da dimensão interior do ser humano foi se modificando, ao longo da história, conforme a concepção cosmológica e antropológica de cada cultura e de cada pensador. Portanto, o conceito de formação de Paidéia e de Bildung é tanto mais forte quanto mais se apoia em cosmologias e antropologias estruturadas em níveis ontologicamente cada vez mais altos e psicologicamente mais profundos.

Acredito que uma cosmologia e uma antropologia materialistas darão lugar a um conceito de formação advindo de uma cosmologia e uma antropologia tradicionais ou platônicas. Num extremo, umas irão colocar o foco da formação na

profissão, se o homem for visto como reduzido à sua dimensão física; no outro extremo, se o ser humano for visto como composto de múltiplos níveis, correspondentes a múltiplos níveis do cosmo, o foco da formação será sua formação/transformação profunda e global, que o levará à união com sua forma arquetípica. Para umas, a utilidade da lapidação ou da disciplina da formação é exterior; para outras sua utilidade é a forma interior ideal, a beleza interior decorrente dessa lapidação.

Nesse sentido, os diferentes polos do processo formativo definidos por Gaston Pineau (1988), como auto, hetero e ecoformação, ajudam-me a perceber os diferentes níveis de formação e a entender que quanto mais níveis cada um desses três polos forem incluídos na formação do sujeito, mais profundo e amplo será o resultado e menos riscos haverá, de um lado, de hipertrofia do individualismo e de egocentrismo, e de outro, de empobrecimento da dimensão interior do sujeito, com seu consequente aprisionamento a ideologias e a visões reducionistas da realidade.